Deusa do amor e da magia, da
maternidade e da fertilidade, Ísis foi a primogênita do deus da Terra, Geb, e
da deusa do Firmamento, Nut, segundo acreditavam os antigos egípcios. É a deusa
da simplicidade, protetora dos mortos e das crianças de quem "todos os
começos" surgiram, a senhora dos eventos mágicos e da natureza.
Religiões à parte, Ísis foi o nome que
seu Edmundo e dona Felícia escolheram para sua única filha mulher, caçula da família
de três irmãos, nascida em 29 de agosto de 1941. Comunista e guerrilheira,
pianista e atiradora emérita, Ísis Dias de Oliveira foi assassinada sob tortura
em 31 de janeiro de 1972. Seu corpo nunca foi encontrado.
Retrato de Ísis Dias de Oliveira - Arquivo Pessoal de José Luiz Del Roio |
Quarenta e cinco anos depois de seu
desaparecimento, celebramos sua memória, sua luta e sua vida com a CORRIDA POR
ÍSIS, que hoje passou por locais importantes da trajetória da jovem paulistana,
filha de um casal de classe média, uma das heroínas brasileiras tombadas na
luta contra a ditadura militar.
Mergulho na memória e na história,
nossa corrida começou nos altos do Sumaré e foi despencando morro abaixo,
descendo do espigão da Paulista em direção a Higienópolis, onde faríamos nossa
primeira parada em frente ao primeiro marco da vida política de Ísis: o
histórico prédio da USP (Universidade de São Paulo) na rua Maria Antônia.
Formada no clássico no tradicional
colégio Santa Marcelina, Ísis chegou à faculdade dona de ampla cultura. Era
pianista, pintava, também se dedicava à escultura e ao estudo de idiomas –inglês,
francês e espanhol.
Ingressou no curso de ciências sociais
da USP em 1965 e descobriu o movimento estudantil. Acabou entrando no Partido
Comunista Brasileiro pelas mãos de José Luiz Del Roio.
Sete meses mais novo que Isis, Del Roio
participava das lutas estudantis havia quase dez anos. Atuara na reconstrução
da União Paulista dos Estudantes Secundaristas na segunda metade da década de
1950. No início dos anos 1960, já como militante do PCB, chegou a atuar na área
do sindicalismo rural.
Depois do golpe militar, sofre um
processo, tem contra si um Inquérito Policial Militar em que é acusado de ter
participado do comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, apoiando e
aplaudindo o discurso reformista de João Goulart.
Apesar de fichado como comunista, Del
Roio volta à ativa, atuando na direção do movimento estudantil. É quando
conhece Ísis.
Corrida por Ísis - parada em frente ao prédio da USP na rua Maria Antônia (fotos Alexandre Maciel) |
“Tinha uma companheira do Partido, a Sônia, Sônia Carmo, que era de base da Ciências Sociais.
E deve ter sido no final de 1964, ou início de 1965, não me recordo, que ela me
apresentou a Ísis, uma amiga sua. Uma pessoa segura, que poderia entrar na sub-base
do Partido Comunista Brasileiro. Foi assim que eu a conheci. Eu conheci,
rigorosamente, na Maria Antônia, mesmo. Nas minhas passagens por lá. Isis foi
morar no Crusp (Conjunto residencial da USP, alojamento para estudantes na
Cidade Universitária), que tinha sido recém reformado, custava pouco, custava
quase nada. E nós ficamos juntos quase desde o início.”
Em entrevista dias antes da CORRIDA POR
ÍSIS, Del Roio lembra aqueles primeiros momentos de namoro, de parceria, de
vida em comum.
“Ela era belíssima, mas isso não queria
dizer nada em si. Era muito simpática. Muito dedicada. Em tudo. Mais ou menos. Para
ela, foi até bastante injusto ficar comigo. Ela tinha uma grande capacidade de comunicação
de massa, ela já teria que ser um quadro, tinha muito contato com o meio intelectual,
era amiga de Mário Schenberg [1914-1990, físico, crítico de arte, político], ela
era também uma artista plástica. Então, ela deveria ter sido um quadro de
massa, uma liderança de massa. Não foi porque ficou restringida pela minha
causa. Porque eu, com muitos contato clandestinos, não podia estar com uma
pessoa que fosse muito visada.”
Cm isso, os dois, Isis e Del Roio,
acabaram enfronhados nos trabalhos partidários. Chegou a trabalhar diretamente
com Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira –com eles, participaria da
criação da Ação Libertadora Nacional, a ALN.
“Ela fazia os pontos [locais de
encontros]. Marcava coisas. Se organizava e tinha alguns contatos também com os
Comitês de Zona, operários, da periferia. Isso a fez se recolher. Eram contatos
bastantes sérios, com as gráficas, coisa muito importante na comunicação à
época. Era a coisa mais secreta.”
Juntos na militância, os dois também
atuavam juntos na atividade de fachada, o cursinho pré-vestibular Pré-USP, ali
mesmo na rua Maria Antônia. Por ali passavam figuras importantes do partido,
ali eram feitas discussões políticas que ajudaram a definir o rumo da luta
democrática de resistência ao golpe militar.
Não só ali como também num outro ponto
de encontro de Ísis e Dele Roio: o apartamento no bairro de Santa Cecília onde
foram morar como jovem casal devidamente e oficialmente casado.
A cerimônia ocorreu no fórum da Lapa,
bairro onde a família morava – a casa dos pais de Ísis era na rua Albion,
pertinho da praça que hoje leva o nome da guerrilheira.
Casamento de Ísis e Del Roio em 8 de abril de 1967 |
“Foi um casamento normal, pequeno
burguês, só que a canalha, meus amigos do PCB, do movimento estudantil,
descobriram, foram lá em massa, criando uma saia justa. Não era para fazer
isso, não, porque nós atuávamos na clandestinidade. Ainda era 1967, abril 1967”.
A turma bebeu um pouco demais, passaram
a cantar músicas da Revolução Espanhola... “Nem todos sabiam sabiam que que eu estava
ligado à direção do Partido, ligado a um esquema clandestino pesado, e ela
também. Não sabiam disso. Mas foi terrível. Foi uma saia justa”, reclama Del
Roio, com ares mais divertidos do que repressores.
O casal vivia em um pequeno apartamento
no edifício Cotovia, na rua das Palmeiras –segundo ponto de parada de nossa
CORRIDA POR ÍSIS.
“Era quarto, sala, cozinha, banheiro.
Era um apartamentinho de nada. Com móveis até bonitinhos, porque acho que foram
comprados pelo meu pai, da Associação dos Ferroviários de Bragança Paulista.
Eles tinham um setor de marcenaria, cada sindicato tinha uma sessão que fazia
móveis. Muito bons”, lembra Del Roio.
Corrida por Ísis -- Ana Claudia, dos Corredores Patriotas Contra o Golpe, e Ana Paula, do GT da Vala de Perus |
O apartamento era local de encontros
políticos assim como os cursinhos em que os dois trabalhavam. Ambos estão
ligados aos dirigentes comunistas que, ainda naquele ano de 1967, seguem
Marighella para construir uma nova forma de resistência à ditadura, com ações
armadas.
Biógrafo de Marighella, o jornalista
Mário Magalhães destaca a importância de Del Roio e Ísis para a construção da
guerrilha. Diz que o casal de militantes da ALN “animava um cursinho
pré-vestibular que foi o segundo pé do grupo armado de Marighella”.
No livro “Marighella, o Guerrilheiro
que Incendiou o Mundo”, Magalhães cita Ísis em ainda outra passagem:
“Um dos alunos [do cursinho Pré-USP]
que se incorporaram à ALN foi Maurice Politi, que Marquito [Marcos Antonio Braz
de Carvalho, comandante do primeiro grupo de fogo da ALN em São Paulo] levou com
a linda Ísis e outros quatro vestibulandos a uma marcha de mais de dez
quilômetros e exercícios com um revólver velho. Só a pontaria dela mereceu
aplausos, e os demais foram deslocados para o aparelho logístico.”
“Desde o início”, diz Del Roio, “Ísis
participou de ações de agitação e propaganda bastante pesadas”.
Não chegou, naquela época, a ter
enfrentamento com a repressão.
Um exemplo foi a série de manifestações
realizadas pela ALN em solidariedade ao povo vietnamita e comemoração da
Ofensiva do Tet, em janeiro de 1968, momento decisivo para a vitória sobre as
forças norte-americanas.
“Nós, na organização, decidimos fazer
manifestações muito demonstrativas, pequenas bombas, de pólvora, não fazia mal
para ninguém, mas sujava que era uma beleza. Para pôr em locais que pudessem
simbolizar o imperialismo americano, como o Consulado. Era uma ação só
demonstrativa, porque a gente achava que era necessário dar solidariedade ao
Vietnam, não só ao Vietnam, mas ao próprio movimento estudantil, juvenil, que
estava nascendo nos Estados Unidos contra a guerra no Vietnam. Era isso. Fizemos
uma série de coisas assim, também distribuição de material em fábricas, essas
coisas...”
A situação no Brasil foi ficando cada
vez pior, a repressão cada vez mais dura e violenta. Mesmo quem tinha atuação
protegida por fachada legal, como Del Roi e Ísis, precisou cair na
clandestinidade total. Não dava mais para sobreviver no país.
Del Roio na homenagem realizada na manhã de hoje - foto Genira Chagas |
“Ela foi para Cuba. Alguns meses depois
eu fui também.”
Os dois participaram de treinamento com
os cubanos, mas já não eram mais um casal. “A situação estava difícil. As
quedas aqui estavam sucessivas, havia o problema de voltar ou não voltar. Quem
volta, para onde vai? Nós chegamos à conclusão de que não existia essa
possibilidade de ficarmos juntos. Será o que Deus quiser. A última vez que eu a
vejo foi em 1970, em Havana.”
Del Roio vai para o Peru, onde sopravam
ares progressistas com o governo de Juan Velasco Alvarado. Ísis volta para o Brasil
e passa a atuar no Rio de Janeiro.
“Ela é deslocada para atuar fora da
cidade dela, porque é mais fácil. É mais fácil porque não corre o risco de
encontrar gente conhecida na rua. É mais difícil porque você conhece menos o
território. Então é uma coisa bastante discutível. O que é melhor? Ela atua por
um ano, um ano e meio, basicamente no Rio. Embora viaje bastante para São
Paulo. Ela era um excelente quadro militar. Excelente atiradora. Muito corajosa.
Muito decidida.”
O sequestro e o assassinato de Ísis até
hoje não estão completamente esclarecidos. No documento final da Comissão
Nacional da Verdade, registra-se o seguinte:
“Izis Dias de Oliveira desapareceu no dia
30 de janeiro de 1972. Com ela, também desapareceu Paulo Cesar Botelho Massa.
Na época, viviam juntos em um “aparelho” da Ação Libertadora Nacional (ALN), na
cidade do Rio de Janeiro.”
Os fatos relativos à sua prisão e sua
morte nunca puderam ser apurados e totalmente esclarecidos; por muito tempo,
não foi encontrado nenhum documento oficial sobre o caso.
Foto Eleonora de Lucena |
Para Del Roio, Ísis foi assassinada no
dia 31 de janeiro de 1972, conforme registro no texto oficial da Comissão
nacional da Verdade que investigou mortes e desaparecimentos durante a ditadura
militar:
“Outra possibilidade para o desaparecimento de Izis pode ser levantada a partir da leitura do documento nº 4057/16/1975/ASP/SNI, de 11 de setembro de 1975, expedido pelo Serviço Nacional de Informações (SNI); [trata-se de] uma lista com nomes de militantes, cada qual associado a uma data e uma sigla. É possível inferir que as datas grafadas referem-se à data da morte de cada um. Nesse documento aparece o nome de “Isis de Oliveira Del Rey”, referindo-se, provavelmente, ao nome de casada de Izis. Associada a ela aparece a data do dia 31 de janeiro de 1972 e “estado da Guanabara”. Segundo esse documento, imagina-se, Izis teria falecido no dia seguinte à prisão...”
A desinformação sobre o que havia
acontecido com Ísis, as mentiras e os engodos covardes foram uma maneira de a
ditadura militar seguir punindo a família da guerrilheira, torturando a mãe e o
pai.
De amarelo, á esq., dona Felícia Dias de Oliveira, com Ísis e Del Roio - Arquivo Pessoal |
“Ditadura enganou mãe que procurava
filha desaparecida, diz advogada” é o título de texto publicado em blog do
jornal “O Estado de S. Paulo” pelo repórter Roldão Arruda.
Ele cita depoimento de Eny Raimundo
Moreira, advogada da família de Ísis, registrado no livro “Advocacia em Tempos
Difíceis”:
“Em sua entrevista, a advogada lembra
que os pais de Ísis dedicaram o resto de suas vidas a procurar informações
sobre o paradeiro dela. Seu Edmundo teve dois infartos seguidos. Dona Felícia
largou tudo para se dedicar exclusivamente às buscas. Passava a semana no Rio,
correndo atrás de qualquer fiapo de informação que obtinha, só retornando nos
finais de semana à sua casa, em São Paulo. Escrevia cartas endereçadas a
políticos e autoridades do regime, visitava todos os lugares onde sabia
existirem presos políticos, além de hospitais e cemitérios. Foi a treze
cemitérios do Estado do Rio verificar listas de pessoas enterradas.”
Em 2004, dona Felícia relatou à
repórter Natália Suzuki seu último encontro com Ísis. Foi no Rio de Janeiro, no
dia em que a jovem guerrilheira completou 30 anos.
“Era um domingo e tudo estava fechado,
Pegamos um circular e fomos num lugar longe, lá em Copacabana. Entramos numa
lanchonete que encontramos aberta. Apesar da minha crise de vesícula, eu ainda
comi uma tortinha de morango com creme de chantilly naquele dia. Não devia…”
Chegada da Corrida Por Ísis: Alexandre Maciel, que nos acompanhou de bicicleta, eu, Ana Paula e Ana Claudia -- foto Genira Chagas |
No início de 1972, dona Felícia
novamente viajou para o Rio. Sentada dos fundos da igreja da Candelária,
esperou pela filha –era a terceira vez em que a moça não comparecia a um
encontro marcado. A definitiva.
Costureira nascida em Miranda, em Mato
Grosso do Sul, ela buscou durante anos a verdade sobre o caso. Em 1974, chegou
a ir a Londres para confirmar um boato de que Isis estava vivendo por lá.
Em 1999, dona Felícia (1917-2010)
inaugurou no final da rua Albion, na
Lapa, a praça Ísis Dias de Oliveira, destino de nossa corrida de hoje, que teve
pouco mais de doze quilômetros (com esse trecho, superei hoje a marca de 500
quilômetros percorridos desde o dia 14 de novembro; se nenhum imprevisto
acontecer, vou conseguir completar o desafio de inteirar seiscentos quilômetros
antes mesmo de meu aniversário de 60 anos, no dia 14 de fevereiro próximo).
Minúscula, a praça triangular tem um
perímetro inferior a cinquenta metros. Conta, porém, com três enormes
figueiras, cujas raízes se emaranham sobre a terra. Abandonada, é ponto de
depósito de lixo e bugigangas –os companheiros que chegaram à praça hoje de
manhã para esperar os corredores tiveram
de fazer uma limpeza geral da área para que ficasse mais visível o monumento em
homenagem a Ísis.
É apenas uma pedra simples em que se
destaca a frase “Quando eu não puder mais falar, vocês falarão por mim”, trecho
de uma carta que ela escreveu para a mãe.
Laura Lucena e Del Roio, Lavínia (filha de Del Roio), Ana Claudia, Jacy, Ana Paula, Genira, eu e Alexandre - foto Eleonora de Lucena |
Ali depositamos flores, e Del Roio falou um pouco sobre Ísis, como você pode ver no vídeo que registrou
nossa homenagem.
A celebração foi para Ísis. Em nome
dela, homenageamos todos os que combateram a ditadura militar e que, com seu
sangue, ajudaram a construir a democracia no Brasil, hoje novamente ameaçada.
Que eles sirvam de inspiração para que
continuemos todos a luta por uma nação livre, justa e soberana.
VAMO QUE VAMO!!!!
Percurso do dia 31 de janeiro de 2017
12,09 km percorridos em 2h08min04
Acumulado no projeto 600 aos 60
501,59 km percorridos em 101h03min44
Acumulado no projeto 60M 60A
278,39 km percorridos em 54h04min51
Belo texto, belíssima homenagem. Fico comovido, mas agradeço por informações de não tinha sobre a Isis.
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