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31.1.17

ÍSIS DIAS DE OLIVEIRA, comunista e guerrilheira, presente, agora e sempre!

Deusa do amor e da magia, da maternidade e da fertilidade, Ísis foi a primogênita do deus da Terra, Geb, e da deusa do Firmamento, Nut, segundo acreditavam os antigos egípcios. É a deusa da simplicidade, protetora dos mortos e das crianças de quem "todos os começos" surgiram, a senhora dos eventos mágicos e da natureza.

Religiões à parte, Ísis foi o nome que seu Edmundo e dona Felícia escolheram para sua única filha mulher, caçula da família de três irmãos, nascida em 29 de agosto de 1941. Comunista e guerrilheira, pianista e atiradora emérita, Ísis Dias de Oliveira foi assassinada sob tortura em 31 de janeiro de 1972. Seu corpo nunca foi encontrado.

Retrato de Ísis Dias de Oliveira - Arquivo Pessoal de José Luiz Del Roio


Quarenta e cinco anos depois de seu desaparecimento, celebramos sua memória, sua luta e sua vida com a CORRIDA POR ÍSIS, que hoje passou por locais importantes da trajetória da jovem paulistana, filha de um casal de classe média, uma das heroínas brasileiras tombadas na luta contra a ditadura militar.

Mergulho na memória e na história, nossa corrida começou nos altos do Sumaré e foi despencando morro abaixo, descendo do espigão da Paulista em direção a Higienópolis, onde faríamos nossa primeira parada em frente ao primeiro marco da vida política de Ísis: o histórico prédio da USP (Universidade de São Paulo) na rua Maria Antônia.

Formada no clássico no tradicional colégio Santa Marcelina, Ísis chegou à faculdade dona de ampla cultura. Era pianista, pintava, também se dedicava à escultura e ao estudo de idiomas –inglês, francês e espanhol.

Ingressou no curso de ciências sociais da USP em 1965 e descobriu o movimento estudantil. Acabou entrando no Partido Comunista Brasileiro pelas mãos de José Luiz Del Roio.

Sete meses mais novo que Isis, Del Roio participava das lutas estudantis havia quase dez anos. Atuara na reconstrução da União Paulista dos Estudantes Secundaristas na segunda metade da década de 1950. No início dos anos 1960, já como militante do PCB, chegou a atuar na área do sindicalismo rural.

Depois do golpe militar, sofre um processo, tem contra si um Inquérito Policial Militar em que é acusado de ter participado do comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, apoiando e aplaudindo o discurso reformista de João Goulart.

Apesar de fichado como comunista, Del Roio volta à ativa, atuando na direção do movimento estudantil. É quando conhece Ísis.

Corrida por Ísis - parada em frente ao prédio  da
USP na rua Maria Antônia (fotos Alexandre Maciel)
“Tinha uma companheira do Partido, a Sônia, Sônia Carmo, que era de base da Ciências Sociais. E deve ter sido no final de 1964, ou início de 1965, não me recordo, que ela me apresentou a Ísis, uma amiga sua. Uma pessoa segura, que poderia entrar na sub-base do Partido Comunista Brasileiro. Foi assim que eu a conheci. Eu conheci, rigorosamente, na Maria Antônia, mesmo. Nas minhas passagens por lá. Isis foi morar no Crusp (Conjunto residencial da USP, alojamento para estudantes na Cidade Universitária), que tinha sido recém reformado, custava pouco, custava quase nada. E nós ficamos juntos quase desde o início.”

Em entrevista dias antes da CORRIDA POR ÍSIS, Del Roio lembra aqueles primeiros momentos de namoro, de parceria, de vida em comum.

“Ela era belíssima, mas isso não queria dizer nada em si. Era muito simpática. Muito dedicada. Em tudo. Mais ou menos. Para ela, foi até bastante injusto ficar comigo.  Ela tinha uma grande capacidade de comunicação de massa, ela já teria que ser um quadro, tinha muito contato com o meio intelectual, era amiga de Mário Schenberg [1914-1990, físico, crítico de arte, político], ela era também uma artista plástica. Então, ela deveria ter sido um quadro de massa, uma liderança de massa. Não foi porque ficou restringida pela minha causa. Porque eu, com muitos contato clandestinos, não podia estar com uma pessoa que fosse muito visada.”

Cm isso, os dois, Isis e Del Roio, acabaram enfronhados nos trabalhos partidários. Chegou a trabalhar diretamente com Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira –com eles, participaria da criação da Ação Libertadora Nacional, a ALN.

“Ela fazia os pontos [locais de encontros]. Marcava coisas. Se organizava e tinha alguns contatos também com os Comitês de Zona, operários, da periferia. Isso a fez se recolher. Eram contatos bastantes sérios, com as gráficas, coisa muito importante na comunicação à época. Era a coisa mais secreta.”

Juntos na militância, os dois também atuavam juntos na atividade de fachada, o cursinho pré-vestibular Pré-USP, ali mesmo na rua Maria Antônia. Por ali passavam figuras importantes do partido, ali eram feitas discussões políticas que ajudaram a definir o rumo da luta democrática de resistência ao golpe militar.

Não só ali como também num outro ponto de encontro de Ísis e Dele Roio: o apartamento no bairro de Santa Cecília onde foram morar como jovem casal devidamente e oficialmente casado.

A cerimônia ocorreu no fórum da Lapa, bairro onde a família morava – a casa dos pais de Ísis era na rua Albion, pertinho da praça que hoje leva o nome da guerrilheira.

Casamento de Ísis e Del Roio em 8 de abril de 1967


“Foi um casamento normal, pequeno burguês, só que a canalha, meus amigos do PCB, do movimento estudantil, descobriram, foram lá em massa, criando uma saia justa. Não era para fazer isso, não, porque nós atuávamos na clandestinidade. Ainda era 1967, abril 1967”.

A turma bebeu um pouco demais, passaram a cantar músicas da Revolução Espanhola... “Nem todos sabiam sabiam que que eu estava ligado à direção do Partido, ligado a um esquema clandestino pesado, e ela também. Não sabiam disso. Mas foi terrível. Foi uma saia justa”, reclama Del Roio, com ares mais divertidos do que repressores.

O casal vivia em um pequeno apartamento no edifício Cotovia, na rua das Palmeiras –segundo ponto de parada de nossa CORRIDA POR ÍSIS.

“Era quarto, sala, cozinha, banheiro. Era um apartamentinho de nada. Com móveis até bonitinhos, porque acho que foram comprados pelo meu pai, da Associação dos Ferroviários de Bragança Paulista. Eles tinham um setor de marcenaria, cada sindicato tinha uma sessão que fazia móveis. Muito bons”, lembra Del Roio.

Corrida por Ísis -- Ana Claudia, dos Corredores Patriotas
 Contra o Golpe, e Ana Paula, do GT da Vala de Perus
O apartamento era local de encontros políticos assim como os cursinhos em que os dois trabalhavam. Ambos estão ligados aos dirigentes comunistas que, ainda naquele ano de 1967, seguem Marighella para construir uma nova forma de resistência à ditadura, com ações armadas.

Biógrafo de Marighella, o jornalista Mário Magalhães destaca a importância de Del Roio e Ísis para a construção da guerrilha. Diz que o casal de militantes da ALN “animava um cursinho pré-vestibular que foi o segundo pé do grupo armado de Marighella”.

No livro “Marighella, o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”, Magalhães cita Ísis em ainda outra passagem:

“Um dos alunos [do cursinho Pré-USP] que se incorporaram à ALN foi Maurice Politi, que Marquito [Marcos Antonio Braz de Carvalho, comandante do primeiro grupo de fogo da ALN em São Paulo] levou com a linda Ísis e outros quatro vestibulandos a uma marcha de mais de dez quilômetros e exercícios com um revólver velho. Só a pontaria dela mereceu aplausos, e os demais foram deslocados para o aparelho logístico.”



“Desde o início”, diz Del Roio, “Ísis participou de ações de agitação e propaganda bastante pesadas”.

Não chegou, naquela época, a ter enfrentamento com a repressão.

Um exemplo foi a série de manifestações realizadas pela ALN em solidariedade ao povo vietnamita e comemoração da Ofensiva do Tet, em janeiro de 1968, momento decisivo para a vitória sobre as forças norte-americanas.

“Nós, na organização, decidimos fazer manifestações muito demonstrativas, pequenas bombas, de pólvora, não fazia mal para ninguém, mas sujava que era uma beleza. Para pôr em locais que pudessem simbolizar o imperialismo americano, como o Consulado. Era uma ação só demonstrativa, porque a gente achava que era necessário dar solidariedade ao Vietnam, não só ao Vietnam, mas ao próprio movimento estudantil, juvenil, que estava nascendo nos Estados Unidos contra a guerra no Vietnam. Era isso. Fizemos uma série de coisas assim, também distribuição de material em fábricas, essas coisas...”


Del Roio na homenagem realizada na manhã de hoje - foto Genira Chagas
A situação no Brasil foi ficando cada vez pior, a repressão cada vez mais dura e violenta. Mesmo quem tinha atuação protegida por fachada legal, como Del Roi e Ísis, precisou cair na clandestinidade total. Não dava mais para sobreviver no país.

“Ela foi para Cuba. Alguns meses depois eu fui também.”

Os dois participaram de treinamento com os cubanos, mas já não eram mais um casal. “A situação estava difícil. As quedas aqui estavam sucessivas, havia o problema de voltar ou não voltar. Quem volta, para onde vai? Nós chegamos à conclusão de que não existia essa possibilidade de ficarmos juntos. Será o que Deus quiser. A última vez que eu a vejo foi em 1970, em Havana.”

Del Roio vai para o Peru, onde sopravam ares progressistas com o governo de Juan Velasco Alvarado. Ísis volta para o Brasil e passa a atuar no Rio de Janeiro.

“Ela é deslocada para atuar fora da cidade dela, porque é mais fácil. É mais fácil porque não corre o risco de encontrar gente conhecida na rua. É mais difícil porque você conhece menos o território. Então é uma coisa bastante discutível. O que é melhor? Ela atua por um ano, um ano e meio, basicamente no Rio. Embora viaje bastante para São Paulo. Ela era um excelente quadro militar. Excelente atiradora. Muito corajosa. Muito decidida.”

O sequestro e o assassinato de Ísis até hoje não estão completamente esclarecidos. No documento final da Comissão Nacional da Verdade, registra-se o seguinte:

“Izis Dias de Oliveira desapareceu no dia 30 de janeiro de 1972. Com ela, também desapareceu Paulo Cesar Botelho Massa. Na época, viviam juntos em um “aparelho” da Ação Libertadora Nacional (ALN), na cidade do Rio de Janeiro.”

Os fatos relativos à sua prisão e sua morte nunca puderam ser apurados e totalmente esclarecidos; por muito tempo, não foi encontrado nenhum documento oficial sobre o caso.

Foto Eleonora de Lucena

Para Del Roio, Ísis foi assassinada no dia 31 de janeiro de 1972, conforme registro no texto oficial da Comissão nacional da Verdade que investigou mortes e desaparecimentos durante a ditadura militar:

“Outra possibilidade para o desaparecimento de Izis pode ser levantada a partir da leitura do documento nº  4057/16/1975/ASP/SNI, de 11 de setembro de 1975, expedido pelo Serviço Nacional de Informações (SNI); [trata-se de] uma lista com nomes de militantes, cada qual 
associado a uma data e uma sigla. É possível inferir que as datas grafadas referem-se à data da morte de cada um. Nesse documento aparece o nome de “Isis de Oliveira Del Rey”, referindo-se, provavelmente, ao nome de casada de Izis. Associada a ela aparece a data do dia 31 de janeiro de 1972 e “estado da Guanabara”. Segundo esse documento, imagina-se, Izis teria falecido no dia seguinte à prisão...”

A desinformação sobre o que havia acontecido com Ísis, as mentiras e os engodos covardes foram uma maneira de a ditadura militar seguir punindo a família da guerrilheira, torturando a mãe e o pai.

De amarelo, á esq., dona Felícia Dias de Oliveira, com Ísis e Del Roio - Arquivo Pessoal

“Ditadura enganou mãe que procurava filha desaparecida, diz advogada” é o título de texto publicado em blog do jornal “O Estado de S. Paulo” pelo repórter Roldão Arruda.

Ele cita depoimento de Eny Raimundo Moreira, advogada da família de Ísis, registrado no livro “Advocacia em Tempos Difíceis”:

“Em sua entrevista, a advogada lembra que os pais de Ísis dedicaram o resto de suas vidas a procurar informações sobre o paradeiro dela. Seu Edmundo teve dois infartos seguidos. Dona Felícia largou tudo para se dedicar exclusivamente às buscas. Passava a semana no Rio, correndo atrás de qualquer fiapo de informação que obtinha, só retornando nos finais de semana à sua casa, em São Paulo. Escrevia cartas endereçadas a políticos e autoridades do regime, visitava todos os lugares onde sabia existirem presos políticos, além de hospitais e cemitérios. Foi a treze cemitérios do Estado do Rio verificar listas de pessoas enterradas.”

Em 2004, dona Felícia relatou à repórter Natália Suzuki seu último encontro com Ísis. Foi no Rio de Janeiro, no dia em que a jovem guerrilheira completou 30 anos.

“Era um domingo e tudo estava fechado, Pegamos um circular e fomos num lugar longe, lá em Copacabana. Entramos numa lanchonete que encontramos aberta. Apesar da minha crise de vesícula, eu ainda comi uma tortinha de morango com creme de chantilly naquele dia. Não devia…”

Chegada da Corrida Por Ísis: Alexandre Maciel, que nos acompanhou de bicicleta, eu, Ana Paula e Ana Claudia -- foto Genira Chagas

No início de 1972, dona Felícia novamente viajou para o Rio. Sentada dos fundos da igreja da Candelária, esperou pela filha –era a terceira vez em que a moça não comparecia a um encontro marcado. A definitiva.

Costureira nascida em Miranda, em Mato Grosso do Sul, ela buscou durante anos a verdade sobre o caso. Em 1974, chegou a ir a Londres para confirmar um boato de que Isis estava vivendo por lá.

Em 1999, dona Felícia (1917-2010) inaugurou no final da  rua Albion, na Lapa, a praça Ísis Dias de Oliveira, destino de nossa corrida de hoje, que teve pouco mais de doze quilômetros (com esse trecho, superei hoje a marca de 500 quilômetros percorridos desde o dia 14 de novembro; se nenhum imprevisto acontecer, vou conseguir completar o desafio de inteirar seiscentos quilômetros antes mesmo de meu aniversário de 60 anos, no dia 14 de fevereiro próximo).

Minúscula, a praça triangular tem um perímetro inferior a cinquenta metros. Conta, porém, com três enormes figueiras, cujas raízes se emaranham sobre a terra. Abandonada, é ponto de depósito de lixo e bugigangas –os companheiros que chegaram à praça hoje de manhã para esperar os corredores  tiveram de fazer uma limpeza geral da área para que ficasse mais visível o monumento em homenagem a Ísis.

É apenas uma pedra simples em que se destaca a frase “Quando eu não puder mais falar, vocês falarão por mim”, trecho de uma carta que ela escreveu para a mãe.

Laura Lucena e Del Roio, Lavínia (filha de Del Roio), Ana Claudia, Jacy, Ana Paula, Genira, eu e Alexandre - foto Eleonora de Lucena

Ali depositamos flores, e Del Roio falou um pouco sobre Ísis, como você pode ver no vídeo que registrou nossa homenagem.


A celebração foi para Ísis. Em nome dela, homenageamos todos os que combateram a ditadura militar e que, com seu sangue, ajudaram a construir a democracia no Brasil, hoje novamente ameaçada.

Que eles sirvam de inspiração para que continuemos todos a luta por uma nação livre, justa e soberana.

VAMO QUE VAMO!!!!


Percurso do dia 31 de janeiro de 2017
12,09 km percorridos em 2h08min04

Acumulado no projeto 600 aos 60
501,59 km percorridos em 101h03min44

Acumulado no projeto 60M 60A
278,39 km percorridos em 54h04min51

























1 comment:

  1. Belo texto, belíssima homenagem. Fico comovido, mas agradeço por informações de não tinha sobre a Isis.

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