“Começou a circular o Expresso 2222 da Central do Brasil,
que parte direto...” Pois se tivesse um
dois a menos, bem que a música de Gilberto Gil poderia estar se referindo aos
meus treinos neste ano: completei hoje 222 dias de caminhadas e corridas na jornada
para totalizar antes do final do ano distância equivalente à de sessenta
maratonas.
Estou chegando perto de somar os mais de dois mil e
quinhentos quilômetros necessários. De fato, na ponta do lápis e auxiliado pela
calculadora e por sensacionais programas de controle e fiscalização de
quilômetros percorridos, faltam apenas 171 quilômetros para atingir a meta. O
número não é muito elegante, lembra escroques, fraudes e fraudadores, mas aqui
não tem nada disso não, é músculo semovente e suor no asfalto.
Se nenhuma desgraça acontecer, completarei meu desafio
com uma semana de vantagem sobre o planejado. A ideia era fazer os 2.532
quilômetros ao longo deste ano, mas cortei quatro semanas para que ficassem de
reserva, em caso de gripes ou outros incômodos que me dificultassem ou
impedissem a corrida.
Assim, os cálculos feitos com o apoio de meu treinador,
Alexandre Blass, dividiram a distância total por 48 semanas. Se tudo correr
bem, terminarei em 47 semanas. O que mostra que velhos fora de forma, desde que
consigam se dedicar e manter a saúde, são aptos a fazer coisas tidas como
improváveis para os veteranos da vida.
Não são. E não falo por mim, mas sim pelos tantos idosos
esportistas que tenho encontrado pelas minhas corridas a fora.
Esses dias mesmo, correndo no Ibirapuera e já quase
mancando de cansado, vejo um velhinho bem mais velhinho do que eu, talvez uns
quinze anos a mais, mandando ver, correndo num ritmo inimaginável para mim.
No olhômetro, diria que o sujeito, puro osso e músculo,
um pouco mais baixo que eu, estava num ritmo perto de cinco minutos por
quilômetro, talvez cinco e meio por quilômetro no mínimo. Além de admirar o
velhinho, fiquei um uma boa dose de raiva do sujeito e uma vontade incontida de
lhe socar umas porradas.
Mas é assim, cada um com seu cada qual.
Naquele dia mesmo, da inveja mortífera, eu estava caindo
pelas tabelas. Tinha começado um treino de blocos de 2.700 metros correndo e
300 metros caminhando. Era para eu fazer seis blocos, mas no terceiro já estava
não apenas com a língua de fora, mas com dores por tudo que fosse abaixo do
umbigo.
É assim: tem o “psoas”, que é um músculo sacaninha que se
esgueira pelo lado da asa do quadril e vai descendo, ligando a coluna às pernas.
Curto, inserido nas profundezas, é o maior estabilizador do corpo humano e o
carregador do piano quando a gente se movimenta.
Pois o desgramado às vezes dói, às vezes não dói. Quando
dói, é um sufoco. A gente vai se curvando, se remexendo, remoendo,
encasmurrando; é uma droga. Se não dói, beleza, vamo que vamo!
Naquele dia, doeu. Hoje não doeu, e eu treinei que foi
uma beleza, corri quase duas horas para completar com satisfação este dia 222
de minha jornada.
Repeti o número para voltar à música do Gil que, como
sabemos, tem um dois a mais. Mas a inspiração para a criação, conta-nos o
próprio Gil, era tal e qual o meu número de hoje:
“Da infância até a idade adulta eu fiz muita viagem de
trem, que era um dos meios de transportes fundamentais para nós da Bahia. Os
trens da Companhia Leste Brasileira --e outros-- saindo e entrando nas
estações, em Salvador, em Ituaçu, em Nazaré das Farinhas, me marcaram. Não sei
por que cargas d'água, essa repetição do 2 era algo de que eu estava
impregnado; alguma locomotiva, de número 222, que eu vi, ficou na minha cabeça
e, quando comecei a letra, a primeira imagem que me veio foi dela."
Apesar de quase verão, hoje fez tempo bom para correr:
céu nublado, temperatura até altinha, mas o vento compensava, equilibrava. Nem
suei muito, nem sofri, foi um bom dia.
Um dia de festejar um quase aniversário: amanhã, Dia dos
Mortos, este blog completa onze anos.
Nasceu diferente, com outro nome, “+Corrida”,
e nasceu pioneiro: foi a primeira publicação do gênero em um grande portal de
notícias, pendurado que estava no braço internético na “Folha de S. Paulo”,
onde eu trabalhava na época como editor do caderno de Informática.
Tinha uma irmã gêmea, uma coluna publicada uma vez por mês
no jornal impresso, no caderno Equilíbrio. Também ela pioneira –o extinto “Jornal
do Brasil”, de saudosa memória, chegou a ter uma seção sobre corridas de rua,
mas o espírito da publicação era diferente.
Os dois, coluna e blog, tiveram um filho espevitado e
marrento. Em 2009, depois de três anos de muitas entrevistas bacanas,
reportagens, dicas, opiniões e reflexões sobre o que é a corrida na minha vida,
na vida de cada um, nasceu o livro “+Corrida”, editado pela Publifolha.
Mais do que orgulho, tenho muita satisfação de ter
produzido essas coisas todas e continuar na labuta de produzir informações,
divulgar fatos, contar histórias.
A de hoje, construída em meu treino sem dor, é gerada a partir
do olhar de corredor.
Fiquei dando voltas na parte alta da avenida Sumaré,
girando qual hamster em sua rodinha, olhando para onde caísse meu olhar.
Vi pichações e muitos cartazes, o que a turma chama de
lambe-lambe. Um dos mais divertidos oferecia “cola para corações quebrados”.
Era arte de uma cara que se apelida MaickNuclear. Há uns
tantos anos, cruzei com ele, fiz uma entrevista com o sujeito. Publicado em
2012, o texto informava: “Por trás da identidade do
tal MaickNuclear, está um rapaz que completa 31 anos neste mês, atende por
Maick Thiago Lenin. É morador do Parque Edu Chaves, zona norte, paulistano da
gema, "filho da terra da garoa", como ele diz” (CLIQUE AQUI para ler
o texto completo).
Há mais nos muros que margeiam a Sumaré. Não muros;
pilastras de viaduto, muretas de proteção de viadutos. Alguns são assinados com
orgulho. Outros permanecem anônimos, com os rostos que apresentam, colados
entre o asfalto e o céu, ondas no mar de edifícios da zona oeste da Pauliceia.
É com eles que eu vou, esses rostos, essas pinturas,
esses desenhos, esses dizeres. Palavras todas com que sigo construindo minha
jornada, empoderando meus quilômetros, dando sustância ao meu caminho.
Por isso eu digo, sigo dizendo e, se houver mais quem
diga, diremos juntos:
VAMO QUE VAMO!!!
(e FORA TEMER!)
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