“Ele queria que o povo fosse feliz. Ele lutou para isso”,
diz Clara Charf, do alto de seus 92 anos de vida de “guerreira pela paz, pela
justiça e pela liberdade”, como foi chamada em uma das tantas homenagens que
recebeu nos últimos anos. Colher o depoimento da viúva de Carlos Marighella foi
o momento mais emocionante de minha jornada desta última segunda-feira, em que
corri em memória do grande líder comunista.
A breve conversa com Charf, que já foi chamada de “Viúva
Vermelha” aconteceu pouco depois do encerramento da tradicional homenagem a
Marighella feita a cada quatro de novembro, aniversário de sua morte, na
alameda Casa Branca, local em que foi assassinado em São Paulo há 48 anos.
Neste ano, a celebração passou para o dia seis e reuniu algumas dezenas de
pessoas, de tarimbados militantes de cabelos brancos e cicatrizes de torturas a
jovens entusiasmados pela luta pela democracia, por um Brasil livre e soberana.
Para lá, a arborizada e sofisticada rua dos Jardins, que
dirigi o percurso de minha Corrida Carlos Marighella. É o jeito que tenho de
homenagear os que deram a vida por nós, agradecer ao amor sem peias dos
revolucionários –“Não há amor maior do que dar a vida pelo seu irmão”. Neste
ano, já corri por Ísis de Oliveira, por Carlos Lamarca e pelos trabalhadores
que fizeram, em 1917, aqui em São Paulo, a primeira greve geral da história do
Brasil.
Depois de alguns quilômetros, cheguei ao primeiro marco das
lembranças de Marighella, o encontro da avenida Rebouças com as ruas Capote
Valente e Oscar Freire. Ele esteve ali na tarde de três de novembro de 1969, véspera
de sua morte, sem saber que naquelas mesmas horas estavam sendo torturados os
frades com quem deveria se encontrar no dia seguinte.
Das cinco e meia da tarde às oito da noite circulou por ali,
usando uma peruca como disfarce, segundo conta o repórter Mário Magalhães na
monumental biografia “Marighella – O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo”. Como
planejado, encontrou-se com vários militantes. A um deles, Gilney Viana,
confidenciou: “Nós estamos com problemas”.
Mal sabia ele que o torniquete já se fechava, cevado com
sangue. Apesar de consciente do cerco, talvez imaginasse ser possível escapar –afinal,
não seria a primeira vez.
Em 1964, poucos meses depois da sua espetacular prisão, foi
entregue de novo à liberdade graça a um habeas corpus impetrado pelo grande
jurista Sobral Pinto. Detido que estava no DOPS de São Paulo, por aqui mesmo
encontrou abrigo para recompor o corpo das durezas da prisão.
Ficou hospedado na avenida Angélica, esquina com a rua
Coronel José Eusébio, segundo marco de meu percurso, organizado com a preciosa
ajuda do já citado Mário Magalhães, a quem agradeço a colaboração. Do quartinho dos fundos do apartamento no
décimo andar, Marighella tinha por vista o arvoredo e as tumbas do cemitério da
Consolação, inspiração para um de seus poemas, que reproduzo a seguir.
VISÃO DA CIDADE DE SÃO PAULO AMANHECENDO
SOBRE O CEMITÉRIO DA CONSOLAÇÃO
Ah! São Paulo Gigante!
Monstro-cidade amanhecendo,
estruturas inacabadas,
esqueletos, edifícios imensos, erguidos
desengonçados
como braços clamando.
Enormes caixas descomunais
recobertas de lençóis brancos da névoa da manhã
--fantasmas espiando este cemitério.
Esta quadra estendida
entre casas e ruas que já despontam para o trabalho,
criptas, mausoléus, monumentos
e cruzes,
cedros e ciprestes,
espectros, sombras, paisagem funérea
--o cemitério que eu vejo de cima deste apartamento
na fria manhã da Paulicéia.
Túmulos sem fim,
alinhados em quadra,
a visão impressionante
do branco das tumbas
em contraste com o verde dos cedros e ciprestes.
Sepulcros recobertos de geada,
a visão espantosa de um cerco hediondo
de gorilas,
aos milhares,
os braços em torno da morada dos mortos,
gorilas raivosos na sua nudez,
almas penas espantando a metrópole-proletária,
trogloditas tentando parar o progresso...
Anos mais tarde, Marighella voltaria à mesma avenida
Angélica, uma dúzia de quarteirões abaixo, para comandar o assalto à agência do
banco Leme Ferreira que fica na esquina com a alameda Barros, terceiro ponto de
meu percurso. A ação de desapropriação aconteceu assim, conforme relato no
livro de Mário Magalhães:
“Pouco depois do meio-dia de 1º de julho de 1968, três homens circulavam pela rampa do conjunto comercial onde se situava o Leme Ferreira. Marighella vestia terno azul-marinho e carregava um revólver 38, como o de Elinho, que se disfarçava com óculos escuros e boné.
De japona escura, Marquito segurava um saco xadrez recheado com uma metralhadora. Antônio Flávio se certificou dentro do banco de que o numerário chegara, saiu, informou a Marighella e se foi a pé. Feito um bandido sinistro, Marighella entrou ao lado de Elinho, ergueu o braço com a arma e engrossou a voz, bem no instante em que Marquito desembrulhou a metralhadora e se juntou à dupla: “Isto é um assalto! Todos de mãos para cima!”
Os quatro presentes se apavoraram quando Marighella ameaçou: “Quem sair leva bala!”
Elinho ordenou que as pessoas fossem para o banheiro, evitando que do lado de fora
flagrassem o que ocorria. Obrigou o caixa Ernesto a pôr as mãos atrás do pescoço e amarrou
seus pulsos com uma corda fina. A cliente Elaine chorou, e Elinho a acalmou: “Não está acontecendo nada.”
Marighella e Marquito limparam os caixas, nos quais arrecadaram 23 mil cruzeiros novos, ou 124 mil reais atualizados. Sem disparar um tiro, os três fugiram com o motorista que os esperava no automóvel de motor ligado.”
A ordem de meu caminho não segue a estrada do tempo; salto
de novo para o passado chegando até o prédio onde hoje funcionam a Estação
Pinacoteca (dita Pina) e o emocionante, imprescindível Museu da Resistência.
No
tempo da ditadura, o prédio abrigou o Dops (Departamento de Ordem Política e
Social), masmorras de tortura e celas que receberam combatentes da liberdade,
como Marighella.
Avanço algumas centenas de metros para encontrar a estação
da Luz. Foi ali que, em 15 de agosto de 1968, militantes da ALN pegaram o trem que
os levou até Piraporinha, onde tomaram os transmissores da rádio Nacional, e
colocaram no ar uma gravação de manifesto escrito por Marighella (a voz não era
dele).
O texto denunciava os crimes da ditadura militar e
apresentava os objetivos do movimento guerrilheiro: “1) derrubar a ditadura
militar, anular todos os seus atos desde 1964, formar um governo revolucionário
do povo; 2) expulsar do país os norte-americanos, expropriar firmas, bens e
propriedades deles e dos que com eles colaboram; 3) expropriar os
latifundiários, acabar com o latifúndio, transformar e melhorar as condições de
vida dos operários, dos camponeses e das classes médias, extinguindo ao mesmo
tempo e definitivamente a política de aumento de impostos, dos preços e
aluguéis; 4) acabar com a censura, instituir a liberdade de imprensa, de
crítica e de organização; 5) retirar o Brasil da condição de satélite da
política externa dos Estados Unidos e colocá-lo, no plano mundial, como uma
nação independente, reatando ao mesmo tempo laços diplomáticos com Cuba e todos
os demais países socialistas.”
O texto divulgado naquela ação foi depois gravado pelo
próprio Marighella e distribuído pela Rádio Libertadora, com introdução de Iara
Xavier Pereira. Eis o áudio, na íntegra:
Dei as costas para a estação da Luz e comecei a correr para
o tempo presente, o hoje, para encontrar a turma que, àquela altura, já tinha
começado a homenagem a Carlos Marighella na alameda Casa Branca.
Rodei pelo centro velho, subi a Augusta, cruzei a Paulista e
enfim consegui chegar a tempo, antes do final da celebração. Pude ouvir parte
do discurso de Clara Charf, que mais tarde me concedeu entrevista exclusiva. E
gritei com todos: “Carlos Marighella, PRESENTE! PRESENTE PRESENTE!
Antes da dispersão, consegui conversar com o filho do líder
revolucionário, também ele de nome Carlos. Ele contou um pouquinho do drama
vivido pela família para simplesmente conseguir prantear Marighella.
As palavras de Carlos, filho, apontam para o futuro, para a continuação
da luta pela democracia. Esse é o legado do líder revolucionário, avalia Adriano
Diogo, que também militou na ALN e hoje é secretário nacional de direitos
humanos do Partido dos Trabalhadores.
Homenagear o combatente do passado não é apenas um momento
de lembrar um herói; acima de tudo, é buscar inspiração, é “recarregar as
baterias”, como disse o advogado Aton Fon Filho, outro veterano militante
presente à celebração na alameda Casa Branca.
Depois de ouvir a todos eles, segui pelo asfalto em meu
caminho de volta para casa, num trajeto que teria, ao final, dezenove quilômetros.
Foi suado, foi dolorido, foi gostoso, emocionante. E acumulei quilometragem no
meu périplo para completar, ao longo deste ano, distância equivalente à de
sessenta maratonas, forma que encontrei para festejar meu sexagenário.
Ainda falta mais de cem quilômetros. É bastante, mas muito
menos do que faltava quando eu comecei.
VAMO QUE VAMO!!
Percurso da Corrida Carlos Marighella, realizada em seis de
novembro de 2017
19,10 quilômetros percorridos em 2h56min04
Acumulado no projeto 60M60A
2.394 quilômetros percorridos em 425h36
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