Escrevo
sentado em minha confortável cadeira de rodinhas, modelo Diretoria, com assento
e encosto reguláveis e fundilhos devidamente acolchoados. Minha perna esquerda
está regularmente dobrada em um ângulo de noventa graus, e o pé da mesma perna
se apoia no chão, fazendo leve força
para tentar manter o corpo erguido e um tantinho só inclinado para a frente. A
perna direita, não: estende-se para a frente, semidobrada em ângulo aberto, de
modo que o pé que é seu complemento fique inclinado, com os dedos apontando
para a diagonal à direita, e não para cima, como seria o mais natural; o pé se
apoia sobre pano de chão dobrado em quatro, que reduz a intensidade do calor
emanado de bolsa de água quente colocada sobre um banco, que é o apoio de todo
o conjunto –perna, pé, pano e bolsa.
Trata-se de
medida profilática para tentar reduzir a dor e contribuir para a recuperação de
tecidos esgarçados no lado de fora do tornozelo, fruto de entorse enquanto
corria em ondulado circuito de mil metros no agradável e sombreado bosque da Cidade
Universitária.
Que eu me
lembre, é a primeira vez que torço o pé desde que comecei a correr, no final do
último milênio. A bem da verdade, tanto quanto a memória seja confiável, é a
primeira vez que torço o pé, ponto.
As torções
são pesadelo para corredores. Dependendo do local, do grau, da intensidade, recuperar-se
de uma delas leva mais tempo do que regenerar-se de uma fratura por estresse ou
mesmo de alguns procedimentos cirúrgicos. E dói.
Não uma dor
permanente; episódica, vem sem ser chamada, surpreende e maltrata. Sabendo a
área atingida, a vítima –eu, neste caso--, trata de pisar com cuidado,
movimentar-se quase em câmara lenta para evitar o estresse do território
machucado. No instante em que se esquece, porém, lá vem a dor.
Sabia que
havia risco. Em qualquer trilha há risco. O terreno é irregular pela própria
natureza, há saliências e reentrâncias, vegetação, folhas caídas escondendo
raízes traiçoeiras que caprichosamente serpenteiam pelo caminho dos humanos. Um
delas, mimetizada entre as cores do chão, foi a vilã.
Quando
pisei, senti que tinha virado vítima. A torção foi dolorida, uma fração de
segundo, mas o corpo todo agiu para puxar o pé do perigo, e a passada seguinte
foi firme e forte. Mantive o trote e segui.
Era minha
corrida de aniversário. No dia 14 de fevereiro, saí de casa para correr e
caminhar 14 quilômetros, numa solitária e particular celebração em que me
reencontrei com caminhos trilhados por São Paulo nestes quase vinte anos de
corrida.
Com a
corrida, conquistei uma cidade que jamais descortinara antes. Fui para
territórios distantes, embrenhei-me por vielas, subi pirambeiras, desci ameaçadores
peraus, encontrei cidadãos que não frequentam nem leem páginas de jornal e mergulhei
na memória das lutas de nosso povo por democracia, independência e melhores
condições de vida.
Por isso,
celebro a corrida e a homenageio com mais corrida.
Rio Pinheiros; do lado esquerdo, aquele verde todo é a Cidade Universitária |
Fui embora
pela zona oeste, caminhando lomba acima e rampa abaixo até chegar a lugar em
que pudesse correr com menor risco de fustigar meu joelho esquerdo, quem vem
desde novembro passado em arrastado processo de recuperação de uma fratura por
estresse.
Corro
pouquinho, apenas meio quilômetro de cada vez, seguido por outros quinhentos
metros caminhados. Os períodos de trote, porém, me enchem de alegria, é quando
me permito soltar o corpo, observar as pernas se mexendo, olhar para mim mesmo
como se eu fosse um extraterrestre a observar o estranho vivente lá embaixo, no
solo, deslocando-se no asfalto para incerto destino.
“Quem corre
chega mais rápido a lugar nenhum” é uma frase que vi escrita em muro, num
desses lambe-lambes que trazem poesia impressa. Talvez o dito, que, imagino, pretendia
combinar humor com algum sentido outro, hermético ou contraditório, fosse
grafado diferente; o texto aqui escrito é o que me vem à memória, ainda que
eventualmente não seja o certo, preciso, gravado com tinta sobre papel colorido
colado no corrimão protetor de um viaduto na rua Oscar Freire.
Não
importa. Quem escreveu não imagina os desejos de quem corre. Talvez o corredor nem
chegar queira, basta o correr; a travessia já é, a seu modo, a chegada, pois de
chegança são todos os instantes da vida, assim como de partida, de quietude e
de semovente.
Filosofando
pelo asfalto, cheguei à Cidade Universitária e fui surpreendido pela mudança da
entrada lateral que costumava usar. Acesso secundário ao terreno de mais de sete
milhões de metros quadrados, custava ser apenas uma simples portinhola no
alambrado, guardada por vigilante instalado em modesta guarita. Pois virou uma
obra de envergadura, até com calçada ampliada, refeita e arrumada, tudo muito
bonitinho.
Impressionado,
adentrei o asfalto do território da cultura e da sabedoria, seguido pelo retão
da raia, que, em maio de 1998, foi palco da primeira corrida de rua em que
participei.
Era uma
prova de oito quilômetros, se bem me lembro, com duas voltas completas por
trecho demarcado no dito retão, que tem por nome oficial avenida Professor
Mello Moraes. A chegada, gloriosa, ocorreu na pista do estádio da USP, sob
aplauso da turma das arquibancadas -um público modesto, mas maravilhoso.
Naquele
dia, eu só queria alcançar a primeira curva, que parecia tão distante, lá no
final do segundo quilômetro de muitíssimos metros.
Depois do
primeiro retorno, passei a lutar contra a certeza de que jamais conseguiria chegar
à metade da prova, não naquele ritmo insano que empreendia.
A solução
foi tentar ser ainda mais rápido, procurando encontrar alvos entre os rivais,
quem sabe algum corredor que eu pudesse perseguir, alcançar, vencer.
O que me
importava em suar e seguir, completar, conquistar. Exausto e satisfeito, fui
abraçado e beijado por minha mulher e minhas filhas, então pitoquinhas chegando
à adolescência. Elas me entregaram um troféu que haviam especialmente decorado.
Foi fantástico.
Agora, no
dia em que entrei no mundo dos idosos, no meu aniversário de sessenta anos,
percorria de novo aqueles caminhos.
Percurso de minha corrida aniversário |
Foi também
buscando os escaninhos da memória que me embrenhei no bosque, cenário de tantas
caminhadas com minha e mulher e as crianças desde muito antes que eu começasse
a correr. Nós pulávamos por lá, experimentávamos os equipamentos de exercícios,
inventávamos brincadeiras, cheirávamos flores, sentíamos o perfume daquilo que parecia
uma floresta...
Lembrar é
um dos prazeres dos velhos –pelo menos, enquanto a memória está viva, pulsante,
contando os instantes que se foram, colorindo as cenas do percurso.
Quero ter a
alegria das lembranças, mas quero também construir mais história.
Por isso
sigo.
Meu
percurso de aniversário inclui a subida da Biologia, rampa de mais de um
quilômetro que enfrento com galhardia e satisfação, recordando as tantas vezes
que já cruzei por ali, as centenas de treinos que fiz naquelas alamedas.
O mais sensacional
talvez tenha sido a última etapa de minha preparação para minha primeira
ultramaratona. Fiz quatro vezes a “volta da USP”, percurso encabritado de dez
quilômetros que inclui a dita subida. Uma corrida solitária, em que tive o
apoio da Eleonora, minha mulher muito amada, a me entregar água a cada cinco quilômetros, incentivando
sempre e enfrentando, como eu, o sol que tomava a manhã depois de uma amena madrugada.
Daquela vez
descobri a música na corrida. Não ouvindo canções em fones de ouvido simples ou
gigantes, coisa de que não gosto: prende os sentidos e dificulta a apreensão do
mundo. Cantei sem cantar, só deixando o som rolar na memória. Fiz de uma canção
de Djavan meu hino de então candidato a ultramaratonista:
“Vou andar, vou voar, pra ver o mundo; nem
que eu bebesse o mar encheria o que tenho de fundo.”
De fato,
sabe-se lá.
Atravesso o
portão principal da USP, estou de novo na rua, rodando o trecho final de meu
percurso de aniversário. Termino em frente a um estação de metrô, onde vou
testar um dos poucos benefícios que a idade dá: viajar sem pagar pelos trens
urbanos de São Paulo.
Não tem
burocracia. O agente Miquéas conferiu meu RG, até me cumprimentou pelo
aniversário, e liberou a passagem, pela catraca.
Minha
corrida tinha terminado, mas eu iniciava um novo percurso.
Quando
cliquei o botão de encerramento das atividades de meu relógio com GPS naquele
dia também encerrei a primeira etapa deste meu projeto
jornalístico-esportivo-cultural que faz da corrida instrumento para debater
questões de saúde, qualidade de vida e inserção social dos maiores de sessenta
anos.
Terminei
ali, de fato, a meta de inteirar seiscentos quilômetros no dia de meu
aniversário, contando desde três meses anos, em jornada iniciada em 14 de
novembro de 2016.
A
festa-corrida foi no dia 12, quando suplantei os seiscentos quilômetros com a
gloriosa companhia de grandes corredores, cidadãos do mundo e do meu coração.
Agora foi o
encerramento, solitário como o dia da largada.
O projeto 600
aos 60 durou 93 dias, sendo nove deles de descanso. Nos 84 dias de ação,
percorri um total de 621.360 metros, que exigiram esforço ao longo de 122
horas, 42 minutos e 32 segundos.
O ganho de
elevação (diferença entre o total de subidas e o acumulado de descidas em longo
de todo o percurso) chegou quase ao topo do Aconcágua: 6.737 metros, contra os
6.962 metros do maior pico do Ocidente.
Minha
velocidade média foi de pedestrianíssimos 5,1 km/h –segundos abaixo de doze
minutos por quilômetro, que é a velocidade calculada na linguagem dos
corredores. Obtive esse ritmo dando em média 55 passos por minuto.
O projeto
600 aos 60 se embrenha em outro plano, o de percorrer, ao longo deste ano de
2017, distância equivalente à de sessenta maratonas, o que totaliza 2.532
quilômetros. Trata-se do projeto 60
MARATONAS AOS 60 ANOS, que acaba de ganhar marca especial criada pelo meu
irmão caçula, João de Lucena.
É um
objetivo inédito para mim. Na maior parte de minha vida corrida, completei em
média 2.400 quilômetros por ano; nesta década, o volume total caiu bastante,
ficando em torno dos 1.900 quilômetros por anos, chegando mesmo a mirrados
1.800 quilometrozinhos em uma certa feita.
Apesar
disso, acho que dá para conseguir –confiança que é compartilhada por meu
treinador, Alexandre Blass, e os amigos e apoiadores da Força Dinâmica e do
Instituto Vita.
É bem verdade
que a torção no pé direito assusta, incomoda e me obriga a ter inesperado dias
de descanso antes da retomada dói projeto. Apesar disso, ontem tratei de voltar
ao asfalto, fazendo minha primeira caminhada depois do aniversário, a primeira
jornada no entrudo da Terceira Idade.
Foi até o
serviço municipal que cuida do Bilhete Único do Idoso, passaporte para maiores
de sessenta anos andarem gratuitamente de ônibus por São Paulo. Só o terei
dentro de vinte dias –pelo menos, essa foi a promessa da simpática atendente.
Tomara que
chegue logo, pois esse é um dos tantos direitos dos veteranos da vida que estão
ameaçados do Brasil de hoje, mantido sob o tacão de um governo golpista e
entreguista, que trabalha para destruir as riquezas da pátria e as condições de
sobrevivência do nosso povo.
Lutar
contra isso é um dos objetivos da vida deste novo velho brasileiro.
VAMO QUE
VAMO!!!
Percurso de
dia 15 de fevereiro de 2017
6,69 km
percorridos em 1h20min25
Acumulado
no projeto 600 aos 60, iniciado em 14 de novembro de 2016 e encerrado em 14 de
fevereiro de 2017
621,36 km
percorridos em 122h42min32
Acumulado
no projeto 60 Maratonas aos 60 Anos desde 1º de janeiro de 2017
404,84 km
percorridos em 77h04min04
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