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16.2.17

Mesmo com pé torcido, jornalista agora sexagenário persegue meta de sessenta maratonas

Escrevo sentado em minha confortável cadeira de rodinhas, modelo Diretoria, com assento e encosto reguláveis e fundilhos devidamente acolchoados. Minha perna esquerda está regularmente dobrada em um ângulo de noventa graus, e o pé da mesma perna se  apoia no chão, fazendo leve força para tentar manter o corpo erguido e um tantinho só inclinado para a frente. A perna direita, não: estende-se para a frente, semidobrada em ângulo aberto, de modo que o pé que é seu complemento fique inclinado, com os dedos apontando para a diagonal à direita, e não para cima, como seria o mais natural; o pé se apoia sobre pano de chão dobrado em quatro, que reduz a intensidade do calor emanado de bolsa de água quente colocada sobre um banco, que é o apoio de todo o conjunto –perna, pé, pano e bolsa.
Trata-se de medida profilática para tentar reduzir a dor e contribuir para a recuperação de tecidos esgarçados no lado de fora do tornozelo, fruto de entorse enquanto corria em ondulado circuito de mil metros no agradável e sombreado bosque da Cidade Universitária.
Que eu me lembre, é a primeira vez que torço o pé desde que comecei a correr, no final do último milênio. A bem da verdade, tanto quanto a memória seja confiável, é a primeira vez que torço o pé, ponto.
As torções são pesadelo para corredores. Dependendo do local, do grau, da intensidade, recuperar-se de uma delas leva mais tempo do que regenerar-se de uma fratura por estresse ou mesmo de alguns procedimentos cirúrgicos. E dói.
Não uma dor permanente; episódica, vem sem ser chamada, surpreende e maltrata. Sabendo a área atingida, a vítima –eu, neste caso--, trata de pisar com cuidado, movimentar-se quase em câmara lenta para evitar o estresse do território machucado. No instante em que se esquece, porém, lá vem a dor.
Sabia que havia risco. Em qualquer trilha há risco. O terreno é irregular pela própria natureza, há saliências e reentrâncias, vegetação, folhas caídas escondendo raízes traiçoeiras que caprichosamente serpenteiam pelo caminho dos humanos. Um delas, mimetizada entre as cores do chão, foi a vilã.
Quando pisei, senti que tinha virado vítima. A torção foi dolorida, uma fração de segundo, mas o corpo todo agiu para puxar o pé do perigo, e a passada seguinte foi firme e forte. Mantive o trote e segui.
Era minha corrida de aniversário. No dia 14 de fevereiro, saí de casa para correr e caminhar 14 quilômetros, numa solitária e particular celebração em que me reencontrei com caminhos trilhados por São Paulo nestes quase vinte anos de corrida.
Com a corrida, conquistei uma cidade que jamais descortinara antes. Fui para territórios distantes, embrenhei-me por vielas, subi pirambeiras, desci ameaçadores peraus, encontrei cidadãos que não frequentam nem leem páginas de jornal e mergulhei na memória das lutas de nosso povo por democracia, independência e melhores condições de vida.
Por isso, celebro a corrida e a homenageio com mais corrida.

Rio Pinheiros; do lado esquerdo, aquele verde todo é a Cidade Universitária

Fui embora pela zona oeste, caminhando lomba acima e rampa abaixo até chegar a lugar em que pudesse correr com menor risco de fustigar meu joelho esquerdo, quem vem desde novembro passado em arrastado processo de recuperação de uma fratura por estresse.
Corro pouquinho, apenas meio quilômetro de cada vez, seguido por outros quinhentos metros caminhados. Os períodos de trote, porém, me enchem de alegria, é quando me permito soltar o corpo, observar as pernas se mexendo, olhar para mim mesmo como se eu fosse um extraterrestre a observar o estranho vivente lá embaixo, no solo, deslocando-se no asfalto para incerto destino.
“Quem corre chega mais rápido a lugar nenhum” é uma frase que vi escrita em muro, num desses lambe-lambes que trazem poesia impressa. Talvez o dito, que, imagino, pretendia combinar humor com algum sentido outro, hermético ou contraditório, fosse grafado diferente; o texto aqui escrito é o que me vem à memória, ainda que eventualmente não seja o certo, preciso, gravado com tinta sobre papel colorido colado no corrimão protetor de um viaduto na rua Oscar Freire.
Não importa. Quem escreveu não imagina os desejos de quem corre. Talvez o corredor nem chegar queira, basta o correr; a travessia já é, a seu modo, a chegada, pois de chegança são todos os instantes da vida, assim como de partida, de quietude e de semovente.

Filosofando pelo asfalto, cheguei à Cidade Universitária e fui surpreendido pela mudança da entrada lateral que costumava usar. Acesso secundário ao terreno de mais de sete milhões de metros quadrados, custava ser apenas uma simples portinhola no alambrado, guardada por vigilante instalado em modesta guarita. Pois virou uma obra de envergadura, até com calçada ampliada, refeita e arrumada, tudo muito bonitinho.
Impressionado, adentrei o asfalto do território da cultura e da sabedoria, seguido pelo retão da raia, que, em maio de 1998, foi palco da primeira corrida de rua em que participei.
Era uma prova de oito quilômetros, se bem me lembro, com duas voltas completas por trecho demarcado no dito retão, que tem por nome oficial avenida Professor Mello Moraes. A chegada, gloriosa, ocorreu na pista do estádio da USP, sob aplauso da turma das arquibancadas -um público modesto, mas maravilhoso.
Naquele dia, eu só queria alcançar a primeira curva, que parecia tão distante, lá no final do segundo quilômetro de muitíssimos metros.
Depois do primeiro retorno, passei a lutar contra a certeza de que jamais conseguiria chegar à metade da prova, não naquele ritmo insano que empreendia.
A solução foi tentar ser ainda mais rápido, procurando encontrar alvos entre os rivais, quem sabe algum corredor que eu pudesse perseguir, alcançar, vencer.
O que me importava em suar e seguir, completar, conquistar. Exausto e satisfeito, fui abraçado e beijado por minha mulher e minhas filhas, então pitoquinhas chegando à adolescência. Elas me entregaram um troféu que haviam especialmente decorado. Foi fantástico.
Agora, no dia em que entrei no mundo dos idosos, no meu aniversário de sessenta anos, percorria de novo aqueles caminhos.

Percurso de minha corrida aniversário
Foi também buscando os escaninhos da memória que me embrenhei no bosque, cenário de tantas caminhadas com minha e mulher e as crianças desde muito antes que eu começasse a correr. Nós pulávamos por lá, experimentávamos os equipamentos de exercícios, inventávamos brincadeiras, cheirávamos flores, sentíamos o perfume daquilo que parecia uma floresta...
Lembrar é um dos prazeres dos velhos –pelo menos, enquanto a memória está viva, pulsante, contando os instantes que se foram, colorindo as cenas do percurso.
Quero ter a alegria das lembranças, mas quero também construir mais história.
Por isso sigo.
Meu percurso de aniversário inclui a subida da Biologia, rampa de mais de um quilômetro que enfrento com galhardia e satisfação, recordando as tantas vezes que já cruzei por ali, as centenas de treinos que fiz naquelas alamedas.
O mais sensacional talvez tenha sido a última etapa de minha preparação para minha primeira ultramaratona. Fiz quatro vezes a “volta da USP”, percurso encabritado de dez quilômetros que inclui a dita subida. Uma corrida solitária, em que tive o apoio da Eleonora, minha mulher muito amada, a me entregar água a cada cinco quilômetros, incentivando sempre e enfrentando, como eu, o sol que tomava a manhã depois de uma amena madrugada.
Daquela vez descobri a música na corrida. Não ouvindo canções em fones de ouvido simples ou gigantes, coisa de que não gosto: prende os sentidos e dificulta a apreensão do mundo. Cantei sem cantar, só deixando o som rolar na memória. Fiz de uma canção de Djavan meu hino de então candidato a ultramaratonista:
Vou andar, vou voar, pra ver o mundo; nem que eu bebesse o mar encheria o que tenho de fundo.”
De fato, sabe-se lá.
Atravesso o portão principal da USP, estou de novo na rua, rodando o trecho final de meu percurso de aniversário. Termino em frente a um estação de metrô, onde vou testar um dos poucos benefícios que a idade dá: viajar sem pagar pelos trens urbanos de São Paulo.


Não tem burocracia. O agente Miquéas conferiu meu RG, até me cumprimentou pelo aniversário, e liberou a passagem, pela catraca.
Minha corrida tinha terminado, mas eu iniciava um novo percurso.
Quando cliquei o botão de encerramento das atividades de meu relógio com GPS naquele dia também encerrei a primeira etapa deste meu projeto jornalístico-esportivo-cultural que faz da corrida instrumento para debater questões de saúde, qualidade de vida e inserção social dos maiores de sessenta anos.
Terminei ali, de fato, a meta de inteirar seiscentos quilômetros no dia de meu aniversário, contando desde três meses anos, em jornada iniciada em 14 de novembro de 2016.
A festa-corrida foi no dia 12, quando suplantei os seiscentos quilômetros com a gloriosa companhia de grandes corredores, cidadãos do mundo e do meu coração.
Agora foi o encerramento, solitário como o dia da largada.
O projeto 600 aos 60 durou 93 dias, sendo nove deles de descanso. Nos 84 dias de ação, percorri um total de 621.360 metros, que exigiram esforço ao longo de 122 horas, 42 minutos e 32 segundos.



O ganho de elevação (diferença entre o total de subidas e o acumulado de descidas em longo de todo o percurso) chegou quase ao topo do Aconcágua: 6.737 metros, contra os 6.962 metros do maior pico do Ocidente.
Minha velocidade média foi de pedestrianíssimos 5,1 km/h –segundos abaixo de doze minutos por quilômetro, que é a velocidade calculada na linguagem dos corredores. Obtive esse ritmo dando em média 55 passos por minuto.
O projeto 600 aos 60 se embrenha em outro plano, o de percorrer, ao longo deste ano de 2017, distância equivalente à de sessenta maratonas, o que totaliza 2.532 quilômetros. Trata-se do projeto 60 MARATONAS AOS 60 ANOS, que acaba de ganhar marca especial criada pelo meu irmão caçula, João de Lucena.
É um objetivo inédito para mim. Na maior parte de minha vida corrida, completei em média 2.400 quilômetros por ano; nesta década, o volume total caiu bastante, ficando em torno dos 1.900 quilômetros por anos, chegando mesmo a mirrados 1.800 quilometrozinhos em uma certa feita.
Apesar disso, acho que dá para conseguir –confiança que é compartilhada por meu treinador, Alexandre Blass, e os amigos e apoiadores da Força Dinâmica e do Instituto Vita.
É bem verdade que a torção no pé direito assusta, incomoda e me obriga a ter inesperado dias de descanso antes da retomada dói projeto. Apesar disso, ontem tratei de voltar ao asfalto, fazendo minha primeira caminhada depois do aniversário, a primeira jornada no entrudo da Terceira Idade.
Foi até o serviço municipal que cuida do Bilhete Único do Idoso, passaporte para maiores de sessenta anos andarem gratuitamente de ônibus por São Paulo. Só o terei dentro de vinte dias –pelo menos, essa foi a promessa da simpática atendente.
Tomara que chegue logo, pois esse é um dos tantos direitos dos veteranos da vida que estão ameaçados do Brasil de hoje, mantido sob o tacão de um governo golpista e entreguista, que trabalha para destruir as riquezas da pátria e as condições de sobrevivência do nosso povo.
Lutar contra isso é um dos objetivos da vida deste novo velho brasileiro.
VAMO QUE VAMO!!!


Percurso de dia 15 de fevereiro de 2017
6,69 km percorridos em 1h20min25

Acumulado no projeto 600 aos 60, iniciado em 14 de novembro de 2016 e encerrado em 14 de fevereiro de 2017
621,36 km percorridos em 122h42min32

Acumulado no projeto 60 Maratonas aos 60 Anos desde 1º de janeiro de 2017
404,84 km percorridos em 77h04min04



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