Dar um abraço corrido na escola Amorim Lima foi o
objetivo de minha jornada de ontem, cheia de lembranças gostosas e sofridas,
todas elas enriquecedoras de vida.
Logo de início de meus muitos quilômetros até o coração
do Butantã, passei em frente a uma escolinha muito querida, a Alecrim. Para
mim, o nome é música da infância – “alecrim, alecrim dourado, que nasceu no campo
sem ser semeado”.
Na infância de minhas filhas, elas por várias vezes
tiveram encontros com outras crianças na Alecrim, ainda que nunca tivessem
estudado lá. Era o ponto de reunião, de partida para viagens, atividades
culturais ou simplesmente uma festinha de fim de semana sem a participação de
[muitos] pais.
Ainda sorria por dentro, para mim mesmo, me lembrando
delas, quando tangenciei os costados do cemitério São Paulo, onde algumas vezes
estive em velórios e enterros. São talvez as cerimônias mais doloridas em que
alguém pode participar; ao mesmo tempo, ensejam encontros de gente por muito
tempo apartada, abraços e sorrisos de amizade, solidariedade e comunhão como
talvez também nenhuma outra celebração.
Reflexões um tanto pesadas para minhas passadas, mas é
assim que o pensamento voa enquanto a gente caminha ou corre pelo mundo. Tal
como diz a música, o pensamento é volúvel e vai pousando onde encontra um galho
qualquer mais sólido.
Para o corredor urbano, esse suporte pode ser
simplesmente uma esquina. Como a esquina, já no coração de Pinheiros, do
quarteirão onde fica (ou ficava) um restaurante que eu costumava frequentar
quando estava em melhores condições financeiras.
Pedia sempre a mesma coisa, um risoto de linguiça fina
de carneiro, bem temperada. Comia com satisfação e um sentimento de antecipação
de prazer glutão, pois logo viria a sobremesa, também ela sempre a mesma: torta
de creme de avelãs com sorvete de creme, tudo empapuçado de grossa calda de
chocolate, servida, como é de lei, em quantidade exagerada.
Na vida real, porém, a alimentação do corredor não
passa de adocicada pasta contida em pacotinhos coloridos –os sachês de gel de
carboidrato, cada vez mais variados em sabor e composição. Engulo um, regado em
água pura, gelada, enquanto prossigo a jornada.
Atravesso a marginal, corro acima das águas fétidas do
rio Pinheiros e entro nas alamedas da Cidade Universitária.
Sempre é bom sentir o ar da sabedoria, ainda que apenas
por umas centenas de metros –é assim que conto minhas corridas, pois sigo aos soluços,
em blocos de oitocentos metros corridos, duzentos metros caminhados, uma
tentativa de cobrir quilômetros e propiciar rápida recuperação ao corpo já
entrado na Terceira Idade.
Já estou nos intestinos da São Paulo que fica do outro
lado da marginal, fora do centro expandido. Penetro no Butantã, chego perto de
meu destino proposto, mas ainda há tempo, caminho, asfalto e quilômetros para
fazer outra descoberta.
Correndo na contramão, me vejo do outro lado da rua de
onde ficam as instalações da Amorim Lima. Por poucos metros, não há cinza nem a
feiura costumeira das grandes artérias de trânsito da periferia: é uma praça, a
praça Elis Regina.
Ela me conquistou antes mesmo de eu
saber seu nome,
pois foi oásis de verde e sombra na minha caminhada. Quando encontrei Elis na
placa, deixei que a gauchice tomasse conta, até mesmo acelerei a passada para
percorrer os quase 400 metros do perímetro da praça, em um primeiro abraço da
manhã.
Pois é assim que corredor abraça seus entes queridos,
as praças, as ruas, os hospitais, escolas, parques, prédios solenes e trágicos:
corre em volta deles, uma vez, duas vezes, três vezes, deixando em vermelho, no
mapa virtual internético, a marca virtual de suas passadas, demonstração de
carinho em pegadas.
Foi o que fiz em seguida com a Escola Municipal de
Educação Fundamental Desembargador Amorim Lima, nome completo da Amorim, como é
chamada por pais, amigos, professores, amigos, líderes comunitários.
O conjunto, pintado em tons diversos –os muros vêm em
cor de terra, talvez, em combinação com laranja e rosa, sei lá--, dá as costas
para a Corifeu de Azevedo Marques, a tal avenida cheia de som e fúria de
ônibus, carros, caminhões.
Em contrapartida, é abraçada de frente por uma ruela
sem saída, calma e tranquila, que serve de estacionamento para visitantes e
vizinhos.
Pioneira em avanços pedagógicos, a Amorim é uma espécie
de trincheira de liberdade para crianças, pais e professores. O projeto da
escola “visa um compromisso coletivo em que todos os seus agentes se engajem
sempre mais num processo de aprimoramento cultural e pessoal de todos, de forma
integral, e na construção de uma intencionalidade educativa clara,
compartilhada e assumida por todos”.
É o que está escrito no sítio internético da Amorim
(CLIQUE AQUI). É uma página muito bem construída, repleta de informações sobre
a vida comunitária, a pedagogia e a democracia no aprendizado, sem descuidar de
curiosidades: ensina, por exemplo, que o desembargador em questão foi carioca,
neto do poeta Luiz Delfino e “pregador notável da ordem jurídica e da soberania
da lei”.
Para a Amorim, descobre mesmo quem a visita pela
primeira vez, o ensino tem a ver com a vida comunitária, e a escola abre suas
portas para o encontro com a população de seu entorno.
Quando fui abraçá-la, encontrei pregado no portão uma
folhinha com a programação da escola para o mês de abril. Nesta segunda, haverá
assembleia dos pais; na próxima terça-feira, o prédio vai abrigar reunião do
Mami Butantã, que é um Grupo de Apoio à Gestação e ao Parto.
Na última terça-feira, dia 18, a escola foi palco para
uma comovente, emocionante e didática celebração de encontro, de paz, de
solidariedade entre os povos e entre os grupos oprimidos. Organizado pelo grupo
Judeus Progressistas Brasileiros, aconteceu ali o Seder de Pessach “Liberdade e
Justiça Para Todos”.
Pessach, a Páscoa Judaica, é a celebração da libertação
do povo judeu da escravidão sob o governo egípcio. Tem a ver, portanto, com mudança, retorno, solidariedade, gratidão. Esse grupo de judeus brasileiros
palestinos (JuProg, como aparecem nas redes sociais; CLIQUE AQUI para sabermais) considerou esse o momento apropriado para ampliar o debate sobre o
significado prático, real, concreto de todos esses termos no mundo de hoje.
“Hoje nós somos o Faraó, nós somos o opressor em
relação ao povo palestino”, afirmou Sergio Storch, um dos organizadores do
evento, em entrevista que fiz com ele na véspera da celebração (abaixo).
Ele e todos os responsáveis pela celebração trabalham com a noção de que não pode haver liberdade para alguém, uma pessoa, um povo, uma nação, se for à custa da liberdade de outra pessoa, outro povo, outra nação.
Ele e todos os responsáveis pela celebração trabalham com a noção de que não pode haver liberdade para alguém, uma pessoa, um povo, uma nação, se for à custa da liberdade de outra pessoa, outro povo, outra nação.
Eles integram a corrente planetária Siso, um
movimento criado por judeus que proclama: “Salvemos Israel, Acabemos com a
Ocupação [da Palestina] –é o significado da sigla em inglês (saiba mais CLICANDOAQUI).
Entendem o Seder como uma celebração de
caráter universalista que projeta para o presente e o futuro a ética e a
história ancestrais, defendendo a liberdade para as lutas de todos os povos e
grupos sociais, inclusive liberdade e justiça para os palestinos sob opressão
israelense.
E assim foi.
Sentados em imensa roda em uma quadra coberta na
Amorim, algumas dezenas de mulheres, homens e crianças compartilharam seus
desejos de democracia, assim como sua insatisfação com os golpes contra a
liberdade, no Brasil e no mundo.
Convidados de todas as cores, tamanhos e credos tiveram
direito à palavra, depois que a cerimônia foi aberta com uma breve e emocionada
participação da anfitriã, a professora Ana Elisa Siqueira, diretora da escola e
impulsionadora do movimento de transformação da Amorim.
Contou que via o encontro ali em andamento como a
concretização de tudo o que os educadores, pais e alunos da Amorim vinham
construindo ao longo dos anos. Uma demonstração de que é possível mesmo a
grupos beligerantes a busca de objetivos comuns.
Isso ficou ainda mais claro poucos minutos depois,
quando a celebração já estava em andamento, e oradores representantes de vários
movimentos sociais e grupos judaicos se revezavam ao microfone.
Mais um visitante apareceu à porta, e logo foi
conduzido ao lugar de fala pelo fisioterapeuta Marcelo Semiatzh (foto abaixo), que compartilhava
o comando da cerimônia (que, de fato, foi bem pouco cerimoniosa).
Era Fábio Bosco, da Frente de Defesa do Povo Palestino,
que vinha falar ao grupo que fazia uma celebração judaica. Assim que ele foi
anunciado, houve um silêncio de expectativa na roda, dava para perceber certa
tensão, mas não beligerância nem agressividade.
Sem diplomacia nem meias palavras, Bosco descreveu a
visão de seu povo sobre a situação na Palestina, o sofrimento sob o opressor
israelense e seu desejo de paz. Uma paz que só pode ocorrer se fundada em dois
princípios elementares, no dizer do ativista: o direito ao retorno e o direito a
todos serem iguais perante a lei.
Foi aplaudido com entusiasmo (talvez também com
esperança, mas isso não se enxerga nem se ouve nas palmas). E a expressão que
tanto sublinhou, “direito ao retorno”, foi ainda usada várias vezes ao longa da
celebração, dessa vez por ativistas de grupos judaicos.
Falaram, por exemplo, da questão dos refugiados, que
aflige o mundo. E muitos se referiram à própria experiência do povo judeu que,
durante séculos –milênios—não teve para onde voltar, viveu sem pátria, sem
local de encontro.
Ali na reunião, no Seder de Pessah, havia ainda outros
representantes de grupos que lutam por seu local de encontro, por sua terra,
pelo reconhecimento de sua identidade e respeito aos seus usos e costumes, como
quilombolas e comunidades indígenas, coletivos de mulheres e de LGBT.
A luta por liberdade e justiça passa pela luta por teto
e terra, pontuaram as falas de representantes do MST (Movimentos dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra) e de um coletivo de sem teto da região central da cidade.
Representantes de grupos da comunidade judaica
progressista e militantes judeus também tomaram a palavra, deixando claras
visões diferentes sobre o sionismo, mas afirmando a convergência no sentido do
respeito mútuo e do desejo do socialismo.
No conjunto, o que emergiu da celebração foi o
sentimento de que outro mundo é possível, e que é necessário, imprescindível,
lutar por ele, enfrentando as poderosas forças do reacionarismo, do atraso, do
belicismo, do racismo, do fascismo.
É possível viver em paz e conversar em paz e partir o
pão em paz. Foi o que fizemos todos ao final do encontro, sentando todos a uma
mesa comum (às vezes imaginária, pois muitos circulamos com pratinhos na mão).
O pão ázimo, uma folha quadrada crocante, foi a base.
Houve a sopa de kneidleh, feita com a farinha de matza (do pão ázimo) e várias
versões de hummus –com berinjela, cenoura, beterraba, cada uma mais gostosa do
que a outra. A salada era uma espécie de vinagrete com pepino e tomate –salada
judaica.
Cada comida tem um significado especial na celebração.
A sobremesa, por exemplo, uma combinação de tâmaras amassadas com nozes (ai,
ai, ai, só comi uma colherinha!!!), lembra a argamassa das construções do
Egito.
E assim, felizes, satisfeitos e de barriga cheia,
saímos todos, emocionados, esperançosos, dispostos a seguir na luta por
liberdade e justiça para todos.
VAMO QUE VAMO!!!
Percurso de ontem, 20 de abril de
2017
13,12 km percorridos em 2h14min06
Acumulado no projeto 60M60A
905,77 km percorridos em 164h24min26
PS.: Se viva fosse, minha mãe estaria fazendo hoje 87
anos. CECÍLIA RECKZIEGEL DE LUCENA estaria, como sempre esteve ao longo de sua trajetória, firme e forte
na luta por liberdade e justiça para todos.
Agora que entendi que você foi correndo até lá!
ReplyDeleteIncrível, emocionante! Minha filha plantou uma árvore há 20 anos na Elis, deve estar linda. Fui muito feliz nos 15 anos de Butantã, filhas pequenas, bairro, escola pública. Que época feliz, né? Não fui ao Seder por estar doente por ser Sede ntária...:(