Agarrado ao violão, que trazia abraçado ao torso nu, o
rapaz seguiu dedilhando as cordas, de olhos fechados, o rosto oferecido ao sol
primaveril, ouvindo apenas a si mesmo.
Minutos antes, ele pulara o cercado de ferro que
protegia o túmulo, deitara ao lado da tumba, sentara em uma das bordas,
erguera-se próximo às inscrições, saltara sobre as flores, fizera poses para
fotos e agora, enfim, maltratava o violão enquanto cantava em voz baixa, que
chegava até nós, tão próximos dele, apenas como um murmúrio.
Era alguma canção de Jim Morrison, por certo.
Estávamos no cemitério de Pére Lachaise, local de
descanso eterno de heróis do povo francês, artistas, escritores, políticos,
cantores e milhares de homens e mulheres comuns.
Naquele Dia dos Namorados, caminhava ao lado de minha
namorada pelas alamedas da Casa dos Mortos para homenagear a vida: haveríamos
de completar, nas ruas de Paris, metade do trajeto que me impus percorrer ao
longo deste 2017 em que cheguei aos sessenta anos e entrei oficialmente para a
comunidade dos velhos deste mundo.
No total, serão 2.532 quilômetros, cada metrinho –ou seria
metrozinho?—devidamente computado, caminhado, corrido, suado, sofrido.
Ao longo do trajeto, vou assuntando sobre os assuntos
dos veteranos, saúde, qualidade de vida, inserção social –o que somos, quem
somos, o que podemos e o que queremos, nós todos, homens e mulheres chegados à
Terceira Idade, muitos de nós aposentados, desempregados e, mesmo assim, arrimo
de família.
É quase um despertar para uma nova idade adulta. Ao
longo da vida de trabalho, muitos de nós sonhamos com esse momento, em que
enfim seremos independentes, em que enfim teremos tempo para cuidarmos de nós
mesmos, para ler, estudar, viajar, aprender mais um idioma, encontrar novas parecerias
ou reaquecer os amores de sempre.
Nem sempre isso acontece. Na vida, como na corrida –ou seria
o contrário?--, os tropeços são muitos, muitos deles muito doloridos. Há
sempre, como percebeu o poeta, uma pedra no meio do caminho.
O corredor passa por ela, pula por sobre ela ou esbarra
nela, mas, como os viventes todos, segue seu trajeto.
É o que venho fazendo desde o dia primeiro de janeiro
deste ano. Os tais dois mil, quinhentos e tantos quilômetros prometidos para o
ano se dividem em meses, semanas, dias.
Quase todos os dias saio para enfrentar um trajeto,
cumprir uma distância, encontrar alguém que fale sobre a velhice ou a corrida,
caminhando juntos para descobrirmos mais um pouco sobre nós mesmos.
Em média, consigo completar pouco mais de cinquenta
quilômetros por semana, faço no mês em torno de duzentos e vinte quilômetros,
distância que pode ser impossível para alguns ou mamão-com-açúcar para outros.
Para mim, é algo inédito. Quando, pouco depois dos
quarenta anos, comecei a correr e me apaixonei pelas longas distâncias, maratonas
e ultramaratonas, costumava fazer em torno de dois mil e quatrocentos
quilômetros por ano.
Assim foi por mais de uma década, até que a vida
começou a cobrar a fatura em dores musculares, hérnias daqui e dali, fraturas,
estresse, inflamações, torsões, preguiça e desânimo. Nos últimos dez anos, mal
tenho passado dos mil quilômetros a cada doze meses; nos anos bons, chego a mil
e oitocentos quilômetros e festejo muito.
Vai daí que as tais sessenta maratonas aos sessenta
anos são um desafio e tanto para este corpo cansado e um tanto maltratado, para
este espírito teimoso, esperançoso, mas também muitas vezes triste, cansado, submisso
à preguiça, à falta de vontade, ao desencontro.
Apesar de tudo, sigo e persigo. A soma dos quilômetros
é prova disso. E chegar à metade do percurso já é uma conquista, uma medalha de
honra ao mérito –ok, meia medalha de honra ao mérito...
Festejei a meia-meta com muita correria. De uma só vez,
participei de três meias maratonas em três semanas seguidas –um estresse
considerável para este corpo gordo e cansado. Foi muito legal, e cada prova há
de merecer um relato especial, particular e ilustrado.
Mas a metade do percurso, de verdade, só fui atingir
depois delas, dessas três corridas muito especiais. Foi em Paris, no Dia dos
Namorados.
Ainda falta muito para o final, mas bem menos do que
faltava quando comecei. Em contrapartida, o corpo já mostra sentir o esforço
até agora desempenhado.
Pode ter sido essa a razão de minha desatenção em um treino,
no início de maio, quando tropecei numa falha de calçada e fui ao chão em queda
violenta e espetacular, que quebrou vários ossos de dois dedos da minha mão
direita e ainda rachou um dos ossos do antebraço.
Pode ser também o estresse, o treino que o corpo
considera excessivo, causa de alguns sinais deletérios na minha pressão e no
comportamento do coração.
Por causa disso, por precaução, para manter a saúde,
respeitar os avisos do corpo e os limites que a idade impõe, vou procurar dar
uma reduzida na intensidade com que me dedico aos treinos.
Sonhava em fazer uma maratona no segundo semestre;
abortei a ideia. Mas mantenho o compromisso de seguir na média de volume
semanal necessária para completar 2.532 quilômetros até o final do ano.
Serei talvez ainda mais lento. Mas são compromissos,
negociações que precisamos fazer com o corpo para que ele continue feliz, a
gente siga vivo e, na medida do possível, feliz e satisfeito.
VAMO QUE VAMO!!!
Treino do Dia dos Namorados de 2017
9,53 quilômetros percorridos pelas ruas de Paris em
2h30min04
Distância acumulada no projeto 60 MARATONAS AOS 60 ANOS
1.368,69 quilômetros percorridos em 240h16min11
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