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5.7.17

35 maratonas e uma deliciosa corrida ao pôr do sol

Pouco antes do meio-dia de hoje, na avenida Sumaré, em frente à praça que homenageia a psicóloga Ana Maria Poppovic, passei a marca das trinta e cinco maratonas, um momento significativo de meu projeto de sexagenário, em que me proponho correr neste ano distância equivalente à de sessenta maratonas.
Ainda estou longe de completar os tais dois mil, quinhentos e trinta e dois quilômetros de corridas e caminhadas, que é o objetivo de meu projeto. Mas falta menos do que quando comecei. A soma atingida hoje, de mil, quatrocentos e setenta e nove quilômetros e duzentos e setenta metros, me dá alento para prosseguir.
Não tem sido fácil. Ao contrário, a cada dia parece que fica mais difícil sair da cama –especialmente com a friaca que tem acontecido ultimamente em São Paulo.
Não é apenas a preguiça que ganha forças e se torna um adversário cada dia maior; o próprio exercício, caminhar e correr pelas ruas da cidade e por onde me for possível, carrega energias do corpo, mina músculos, atinge tendões e solapa a ossatura.
A intensidade de tudo é multiplicada pelas cobranças da idade, que torna mais demorada a recuperação. Apesar disso, há que voltar ao asfalta para manter o olho na meta proposta. 
Com solzinho meio meio, treino de hoje foi uma delícia
Há contrapartidas. Se o exercício é deletério, também é animador, contagiante, entusiasmante, recompensador. O corpo que a corrida solapa também é fortalecido por ela –são as contradições da vida, a dicotomia do viver: tese, antítese, síntese, tudo se encontra e embaralha no asfalto, no sangue, nas células, nos músculos, no suor.
Filosofias à parte, esses quase mil e quinhentos quilômetros já percorridos neste ano, com cerca de cinco sessões semanais de treino, oferecem estatísticas curiosas. Para mim, assustadoras até.
A mais impactante: somando todos os metros percorridos nos 131 dias de atividade corredística deste ano, houve um ganho de elevação de 15.678 metros.
Dito assim, parece não significar nada. O que é “ganho de elevação”.
Explico: trata-se da diferença, calculada em metros, entre as distâncias percorridas “para baixo” e as distâncias percorridas “para cima”. Não necessariamente ladeiras, montes ou montanhas, apenas descidas e subidas, leves, fortes, poderosas ou mirrecas.
Somando todos os percursos que fiz em subida neste ano e tirando do total a soma de todos os trajetos feitos em descida, ainda sobre uma montanha de metros de diferença.
Altura do Everest é menos da metade de meu
"ganho de elevação" neste anos
É uma montanha mesmo: o tal ganho de elevação, se transformado em acidente geográfico, interrupção da paisagem, seria um morrinho maior do que o Kilimanjaro empilhado sobre o Everest. É pouco ou quer mais?
Foram raras, neste etapa, as corridas “de verdade” em que participei. Preferi rodar sozinho, pensar na vida, conversar ao longo do caminho com convidados especiais.
Mas escolhi algumas provas, sim, para pontuar meu caminho, testar as forças ou simplesmente aproveitar a jornada.
No último fim de semana de maio e nos dois primeiro de junho, realizei um miniprojeto que chamei de Trio de Meias Maratona, participando de três meias maratonas em três fins de semana seguidos.
Meu objetivo, além de desfrutar de corridas muito especiais, em cenários esplendorosos e de alto conteúdo histórico, era avaliar se conseguia manter o mesmo nível de desempenho –por pior que fosse— numa sequência de provas exigentes.
Ainda tenho dúvidas quanto à resposta; em contrapartida, tenho absoluta certeza de que foi uma delícia correr as provas escolhidas.

Pôr do sol em Veneza, foto tirada do barca em que a gente volta para Cavallino Treporti, 

A primeira delas foi em um subúrbio de Veneza, a cidade de Cavallino Treporti, que fica na periferia da lagoa de Veneza, uma península comprida e magrinha entre a lagoa e o continente.
Trata-se de localidade muito antiga –há sinais de ocupação romana em alguns pontos do município. Nos séculos 18 e 19, foi usada como área de lazer pelos nobres venezianos, que também souberam aproveitar as terras férteis da região para produzir de um tudo por lá.
Hoje, a cidade vive principalmente do turismo, que é reforçado por eventos como o que eu participei, a Moonlight Half Marathon –-o nome da prova é assim mesmo, em inglês, e significa meia maratona ao luar.
Há algumas semanas, escrevi para o site da “O2” um relato da prova. O material publicado é base para o texto que reproduzo a seguir.

Pôr do sol, lagoa e balada
em meia maratona
nos arredores de Veneza

O sol das oito da noite brilhava firme e forte sobre o lombo dos quase cinco mil corredores espalhados na alameda do dique de Punta Sabbioni, no exato encontro das águas da lagoa de Veneza com o mar Adriático.
No final da primavera italiana, os dias se alongam cada vez mais; a temperatura é alta para corridas, mas, quando o sol finalmente dá lugar ao lusco-fusco que anuncia a noite, uma brisa fresca facilita a vida de quem se movimenta com energia.
Está tudo pronto para a largada da Moonlight Half Marathon, cujo nome é uma contradição em termos: promete a luz da lua, mas oferece, na partida, um sol ainda poderoso.

Confira no mapa a localização de Veneza, que é uma ilha, e de Cavallino, uma península entre a lagoa e o mar 

Concentrados, os corredores cumprem a liturgia do momento, cada um com suas manias. Há grupos conversando em altos brados, outros em fofoca miúda, há gargalhadas e sorrisos, há gente em silêncio, de olhos fechados, enquanto outros executam os últimos alongamentos, rodam joelhos, movimentam calcanhares.

Corredores relaxam antes da largada; à dir., com o barquinho, é a lagoa de Veneza; a praia ao fundo, à esq., é banhada pelo Adriático

Parecem não dar atenção ao cenário que pintam de tantas cores. Ao nosso lado esquerdo, o azul profundo da lagoa de Veneza; para trás, o mar, a praia ampla, de areias finas; à direita, campos e mais campos, áreas silvestres, ou de bangalôs de recreio.
De costas para o Adriático, ouvimos a corneta da largada, e lá vamos nós penetrar o litoral e a vida selvagem ma non tropo de Cavallino Treporti, península ao norte de Veneza que oferece ao turista o melhor de dois mundos: de um lado, esportes náuticos na bela e aparentemente limpa lado; do outro, quinze quilômetros de praia.
Atrativos que fazem do litoral cavallinesco um dos mais buscados da Itália na época das férias –segundo o site oficial da cidade, recebe seis milhões de turistas por ano, o que é uma enormidade, considerando que a população local nem chega a quinze mil pessoas.


Plana, planíssima, a região também é ótima para o ciclismo e, claro, para corredores que tentam eternamente bater seus recordes particulares.
O início, porém, não é muito alvissareiro. O sol ainda é forte, saímos com os termômetros passando dos 23 graus, e corredores mais lerdos logo sentem o quentume.
É apenas o começo, estamos todos descansados, empolgados com o terreno e os cenários, o azul da lagoa acalma, ainda que o sol teime em castigar nossos olhos e se recuse a cair horizonte abaixo.

Ao fundo, ruínas de antiga propriedade rural

Vai, porém, perdendo sua cor laranja tão vigorosa, flamejando, enquanto desce aos pontos para ir beijar as águas da lagoa. E se oferece em por do sol quando chegamos à altura do quilômetro quatro, logo depois de uma curva.
Para o corredor que bebe da paisagem, é um momento quase de oração, concentração, deslumbramento. O céu ganha riscos multicoloridos, e o sol se transmuda em laranja, amarelo, vermelho, roxo...


Dá para seguir por muitos quilômetros embalado apenas por essa visão. Para melhorar ainda mais, uma leve brisa vem refrescar o corpo.
Seguimos pelo litoral da lagoa, onde de quando em quando há pequenas marinas, áreas de diversão, um boteco ou outro, recantos de pescadores.
O silêncio é quase absoluto, a tranquilidade é imensa, e o corredor só não entra em transe zen-budista porque consulta o relógio a cada instante ou confere a distância que o separa do competidor mais próximo...
Manter o ritmo, acelerar, forçar um pouco mais, essas são as exigências da competição, mesmo nesse território tão convidativo ao repouso.


E assim fazemos todos, agora beijados pela luz da lua –fraquinha, é verdade, num céu bem estrelado. Ainda bem que há iluminação artificial para nos orientar pelo percurso.
Nessa balada, os quilômetros passam quase sem nos darmos conta. Numa breve incursão urbana, cruzamos a periferia do centro de Cavallino, e uma banda nos espera para animar para a metade derradeira da prova. A iluminação da igreja, obra multicentenária concluída em 1750, gera sombras fantasmagóricas no asfalto.
Longo chegamos ao ponto apresentado como o mais difícil da corrida, travessia da ponte sobre o rio Sile... Na verdade, nem sequer queima as panturrilhas...
Finalmente, estamos em Lido di Jesolo, que é onde se concentra a vida noturna da região, bares recheados, restaurantes e baladas.
Para entrar no clima de festa, os últimos quilômetros da prova são por uma alameda que combina lojas sofisticadas como as que paulistanos encontram na rua Oscar Freire com a multidão de bares, restaurantes e sorveterias tal qual as do Bixiga.
Tudo ladeado por grandes árvores, de copas generosas que se encontram, transformando a avenida em um túnel vegetal, uma galeria de verde que leva os atletas até o ponto final da Moonlight Half Marathon, a Meia Maratona do Luar.


Depois, é festa na praia e balada na praça Mazzini –os anunciados sete mil participantes do evento (meia maratona e 10 km) receberam cupons de desconto para o consumo em algumas das baladas locais, e bares na praça oferecem a primeira bebida de graça para os corredores.
Quem prefere comer logo e descansar também é atendido: logo depois de receber a medalha, o atleta chega a uma enorme barraca onde há comida à vontade: frutas, biscoitos, sucos, energéticos... Até água tem.   
Apesar do clima baladeiro, a corrida é de alta competitividade, com a onipresente participação de atletas africanos. O vencedor foi o queniano Julius Kipngetich, que completou em 1h04min08. Também do Quênia, a vencedora da prova feminina foi Pauline Eapan, com 1h15min22.
Eu terminei beeem depois deles.
Mas não tem problema. Quando comecei a participar de maratonas, tinha um critério particular para avaliar se eu havia me saído bem ou mal em tal ou qual prova: se eu tivesse feito menos do que o dobro do tempo do vencedor, estava ótimo; se não, podia melhorar...
A gente sempre pode melhorar. É preciso saber reconhecer, porém, o que “melhorar” significa para cada um de nós. O tempo é apenas uma medida, ainda que muito significativa e muito usada por nós; afinal, mesmo os lerdos como eu estão participando de um esporte competitivo, e o objetivo é fazer o melhor possível.
Hoje em dia, o meu “melhor possível” é superior ao dobro do tempo do vencedor da prova. Mas também não faço nenhum esforço grandioso –ou menos que grandioso—para mudar isso; ao contrário, para nas corridas para bater fotos, aproveito uma música, presto atenção na paisagem.
E acelero, quando tenho vontade ou vejo que é possível ou quero me desafiar ou quero acelerar.
VAMO QUE VAMO!!!


PERCURSO de cinco de julho de 2017
13 km percorridos em 2h10min11

PERCURSO ACUMULADO no projeto 60M60A
1.479,27 quilômetros percorridos em 259h04min51

PS.: Se você quiser saber mais sobre a vida e o trabalho de Ana Poppovic, clique neste link AQUI.


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