22.8.17

Arte na favela, sapatos sem dono e homem dos panos em 20 km de rolê na Paulicéia sem chuva

“Ei, ei, ei, oi aí, ô Barba! Que tá fazendo? Tá tirando foto do quê?
A voz marrenta e não sem um tom de ameaça vinha de um rosto protegido por capuz de um casaco de moletom que um dia fora cor de vinho, agora amarronzado pelo tempo e a sujeira. O dono da voz era um sujeito magro, pelo que entrevi, e estava com um parceiro, mais forte, vestido com roupas escuras. Com as mãos na cintura, deram um ou dois passos em minha direção, mas pararam enquanto eu respondia.
Eu sabia que entrar na favela envolvia algum risco, ainda mais correndo, mas, quando vi, já estava lá no meião. Eu sabia que correr com o celular na mão era arriscado, mas tinha visto o que me parecia ser uma foto imperdível. Cem metros antes, eu não sabia que aquilo ali era uma favela. Nem que aquela podia ser minha última foto (não foi, claro, menos drama, por favor).
Corria pela rua na periferia paulista. Começara larga, mas fora se estreitando, assim como as frentes das casas, que antes tinham porta e janela, às vezes duas janelas, agora só uma portinhola. Rodando na calçada –seguir pela rua estreita seria suicídio, considerando a velocidade com que os carros chispavam por ali--, quase atropelei uma senhora que abria a porta do seu casebre (de alvenaria, mas caindo aos pedaços).
Tudo cinza, apertado, feio, fedido.
Por isso me entusiasmei quando vi, mais à frente, o que parecia um sobrado verde; na frente dele, um amarelo, cores no cinza, e ainda com roupas estendidas em varais, imagem clássica nas ruas italianas, aqui em São Paulo símbolo de apertume e pobreza. Mas com seu apelo visual.
Pensando na foto, já peguei o celular na mão, pensando em deixar a câmera preparada. Era só um clique e seguir, sem perder meu tempo de corrida: hoje eu estava correndo bastante, cumprindo blocos de 2.700 metros corridos por 30 metros de caminhada, uma combinação que não fazia havia muito tempo.
Então percebi que tinha entrado numa favela. Não há perigo, mas há. Do lado direito da rua, em frente a um barraco que fazia às vezes de bar, alguns homens estavam parados, conversando, olhando o movimento. Cachorros em volta deles, no meio da rua, à minha frente, por todo o lado.
Resolvi parar até o trote, pensando em seguir a passo pelo menos até deixar para trás a cachorrada, que talvez não estivesse acostumada com alguém correndo entre eles. Também decidi seguir com o celular em mãos, não tinha mais mesmo o que fazer àquela altura, mas decidi não tirar foto de nada, pelo menos não depois de passar a homarada.
Os caras me olharam de revesgueio, eu levantei o braço em cumprimento, nada, nenhum problema. Os cachorros me ignoraram solenemente.
Foi aí que eu vi aquela coisa sensacional, uma verdadeira obra de arte no coração da favela. Não havia opção, tinha de parar e fotografar o Mercadinho da Paz, que compensa seu espaço minguado colocando na rua mesas e banquetas para os convivas.

Elas é que são o máximo. Os banquinhos são suportados por estrutura em formato de violão, e as mesas são enormes pandeiros, também eles suportados por violões esculpidos com arte em madeira.
“Tô fotografando o bar, aqui!”, gritei de volta para a dupla que me inquiria e mostrei o cenário de pura arte na rua.
“Não vai fazer foto da favela!”, advertiu o voz marrenta vinda do capuz amarronzado. Não fizeram ameaça nem chegaram perto, mas não precisava.
“Sem problema”, disse eu, correndo na direção deles, que me avaliavam. “Eu corro por tudo e tiro fotos, não tem quaisquaisquais”, expliquei ao passar, imaginando que fossem me parar, querer ver as imagens, sei lá. Na favela todo mundo é trabalhador, mas também tem a turma que atua em serviços alternativos...
Ninguém falou nada, eu segui em frente, nem entrei no mercadinho para tentar descobrir o autor dos artísticos móveis. Melhor não. Alguém gritou na minha direção: “Vai, Bin Laden!” (é uma das coisas que ouço, assim como Rei Leão, Selvagem de Bornéu e outras tantas).  Ergui os braços, acenei os dedões em sinal de positivo e fui embora.
Quer dizer: imaginava que estava indo embora. A rua central da favela tem só dois quarteirões, e calculei que poderia atravessar o terreno e sair em local mais conhecido, de modo que pudesse seguir em frente e construir outro caminho menos conturbado.
Nananina. Caí numa rua sem saída, com cerca de ferro e muro. Não havia alternativa senão voltar pelo mesmo caminho, cruzar de novo pelos donos da favela. Será que eles iriam pensar que era provocação?
Cruzei pelos dois valentões de novo, mas nem deram bola, já entretidos com qualquer outra coisa. E eu já estava parça dos moradores. Um gordão, saindo de um barraco, saudou o exercício (“Bom para a saúde”, disse, ou qualquer coisa assim), eu o chamei para correr junto. Todo mundo de bom humor, alguma criança ao longe gritou “Papai Noel” para minhas barbas brancas, e as tensões se esfarelaram nas minhas passadas.

De volta às ruas cinzas, apertadas, movimentadas. Já tinha, àquela altura, percorrido quase doze quilômetros, estava feliz da vida com meu rolê no primeiro dia de estiagem depois de mais de uma semana de chuva fria, incessante, molhada, chatonilda na cidade de São Paulo.
Com todos os problemas que enfrentei neste ano, tombo no asfalto, dedo quebrado, costas coloridas, joelho esfubecado, articulações enferrujadas e inflamações várias, nunca tinha ficado tanto tempo sem correr como nestes últimos dez dias.
Comecei a ficar preocupado, até, porque preciso contabilizar quilômetros em penca para conseguir chegar ao final do ano cumprindo galhardamente distância total equivalente à de sessenta maratonas somadas –esse é o meu desafio e meu presente de aniversário neste ano em que completei sessenta anos e entrei oficialmente na velhice. Velho, corro como nunca corri na vida.
Com o frio e o vento e a chuva fria, manhã depois de manhã, tarde depois de tarde, fui tomando gosto pelas cobertas, o chocolate quente, maratonas diferentes, domésticas, assistindo a séries cinematográficas... Ao mesmo tempo, me atazanava: Será que, quando chegar a hora, vou saber correr de novo?
Pois olha, sei.
Me desentrevei daquelas ruelas e, num pedaço de concreto, vi perdidos, abandonados, um pé de sandália e um pé de tênis, engruvinhados, fazendo parzinho. Eram de criança, parecia, e agora estavam ali, abandonados, solitários, perdidos, um estranho casal no chão de São Paulo.

O tempo passava e os quilômetros também, já ia me cansando, mas ainda estava longe do caminho de volta e do retorno que eu queria, passando por uma figura que me parecera simpática, interessante, alguém com quem eu queria falar, queria que me contasse uma história.
“Sou o homem dos panos”, ele tinha me dito horas antes, quando eu desci para o outro lado da Marginal. Encostada numa árvore de canteiro de avenida, havia uma bicicleta, meio caída, meio apoiada, cercada de panos, papéis, sacos, sacolas. Imagem curiosa, me pareceu, e fotografei na corrida, imaginando que talvez o dono não gostasse...


Era o senhor Vantuir, que respondeu a meu “bom dia!” perguntando qual que era a história, e eu expliquei “nada não, corro por aí e faço fotos”. “Beleza!”, ele disse, e eu fui me embora.
Mas achava que ele tinha mais a me contar, falar do trabalho dele. E voltei pelo mesmo caminho para tentar uma entrevista com ele. “Outro dia”, prometeu, mas não se furtou a conversar rapidinho, falando do seu trabalho e resumindo a crise de nosso país:
“É tipo vender o almoço para pagar a janta.”

Dei adeus e vim me embora, agora sim, quase embicando no caminho das pedras, rumo de volta à casa. Não sem antes testemunhar mais um dos perrengues diários de nossa cidade, abandona pela prefeitura: semáforos fora do ar, piscando direto no amarelo. Ainda bem que agentes da CET já tinham chegado para controlar o tráfego, se não ia ser mais complicado fazer a travessia.


Na subida da Sumaré, cansei. Em vez de 300 metros caminhando, caminhei um quilômetro inteiro. Mas depois voltei a correr. Quando dei de conta, meu rolezinho no primeiro dia de estiagem chegava a vinte quilômetros.
Faço mais um para completar meia maratona, só para cantar marra?
Não, deixa prá lá. Amanhã tem mais.

VAMO QUE VAMO!!!


Percurso do dia 22 de agosto de 2017
20,11 quilômetros percorridos em 2h53min25

Acumulado no projeto 60M60A
1.807,56 quilômetros percorridos em 318h09min33



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