“Ei, ei, ei,
oi aí, ô Barba! Que tá fazendo? Tá tirando foto do quê?
A voz
marrenta e não sem um tom de ameaça vinha de um rosto protegido por capuz de um
casaco de moletom que um dia fora cor de vinho, agora amarronzado pelo tempo e
a sujeira. O dono da voz era um sujeito magro, pelo que entrevi, e estava com
um parceiro, mais forte, vestido com roupas escuras. Com as mãos na cintura,
deram um ou dois passos em minha direção, mas pararam enquanto eu respondia.
Eu sabia que
entrar na favela envolvia algum risco, ainda mais correndo, mas, quando vi, já estava
lá no meião. Eu sabia que correr com o celular na mão era arriscado, mas tinha
visto o que me parecia ser uma foto imperdível. Cem metros antes, eu não sabia
que aquilo ali era uma favela. Nem que aquela podia ser minha última foto (não
foi, claro, menos drama, por favor).
Corria pela
rua na periferia paulista. Começara larga, mas fora se estreitando, assim como
as frentes das casas, que antes tinham porta e janela, às vezes duas janelas,
agora só uma portinhola. Rodando na calçada –seguir pela rua estreita seria
suicídio, considerando a velocidade com que os carros chispavam por ali--,
quase atropelei uma senhora que abria a porta do seu casebre (de alvenaria, mas
caindo aos pedaços).
Tudo cinza,
apertado, feio, fedido.
Por isso me
entusiasmei quando vi, mais à frente, o que parecia um sobrado verde; na frente
dele, um amarelo, cores no cinza, e ainda com roupas estendidas em varais,
imagem clássica nas ruas italianas, aqui em São Paulo símbolo de apertume e
pobreza. Mas com seu apelo visual.
Pensando na
foto, já peguei o celular na mão, pensando em deixar a câmera preparada. Era só
um clique e seguir, sem perder meu tempo de corrida: hoje eu estava correndo
bastante, cumprindo blocos de 2.700 metros corridos por 30 metros de caminhada,
uma combinação que não fazia havia muito tempo.
Então
percebi que tinha entrado numa favela. Não há perigo, mas há. Do lado direito
da rua, em frente a um barraco que fazia às vezes de bar, alguns homens estavam
parados, conversando, olhando o movimento. Cachorros em volta deles, no meio da
rua, à minha frente, por todo o lado.
Resolvi
parar até o trote, pensando em seguir a passo pelo menos até deixar para trás a
cachorrada, que talvez não estivesse acostumada com alguém correndo entre eles.
Também decidi seguir com o celular em mãos, não tinha mais mesmo o que fazer
àquela altura, mas decidi não tirar foto de nada, pelo menos não depois de
passar a homarada.
Os caras me
olharam de revesgueio, eu levantei o braço em cumprimento, nada, nenhum
problema. Os cachorros me ignoraram solenemente.
Foi aí que
eu vi aquela coisa sensacional, uma verdadeira obra de arte no coração da
favela. Não havia opção, tinha de parar e fotografar o Mercadinho da Paz, que
compensa seu espaço minguado colocando na rua mesas e banquetas para os convivas.
Elas é que
são o máximo. Os banquinhos são suportados por estrutura em formato de violão,
e as mesas são enormes pandeiros, também eles suportados por violões esculpidos
com arte em madeira.
“Tô
fotografando o bar, aqui!”, gritei de volta para a dupla que me inquiria e
mostrei o cenário de pura arte na rua.
“Não vai
fazer foto da favela!”, advertiu o voz marrenta vinda do capuz amarronzado. Não
fizeram ameaça nem chegaram perto, mas não precisava.
“Sem
problema”, disse eu, correndo na direção deles, que me avaliavam. “Eu corro por
tudo e tiro fotos, não tem quaisquaisquais”, expliquei ao passar, imaginando
que fossem me parar, querer ver as imagens, sei lá. Na favela todo mundo é
trabalhador, mas também tem a turma que atua em serviços alternativos...
Ninguém falou
nada, eu segui em frente, nem entrei no mercadinho para tentar descobrir o
autor dos artísticos móveis. Melhor não. Alguém gritou na minha direção: “Vai,
Bin Laden!” (é uma das coisas que ouço, assim como Rei Leão, Selvagem de Bornéu
e outras tantas). Ergui os braços,
acenei os dedões em sinal de positivo e fui embora.
Quer dizer: imaginava
que estava indo embora. A rua central da favela tem só dois quarteirões, e
calculei que poderia atravessar o terreno e sair em local mais conhecido, de
modo que pudesse seguir em frente e construir outro caminho menos conturbado.
Nananina.
Caí numa rua sem saída, com cerca de ferro e muro. Não havia alternativa senão
voltar pelo mesmo caminho, cruzar de novo pelos donos da favela. Será que eles
iriam pensar que era provocação?
Cruzei pelos
dois valentões de novo, mas nem deram bola, já entretidos com qualquer outra
coisa. E eu já estava parça dos moradores. Um gordão, saindo de um barraco, saudou
o exercício (“Bom para a saúde”, disse, ou qualquer coisa assim), eu o chamei
para correr junto. Todo mundo de bom humor, alguma criança ao longe gritou “Papai
Noel” para minhas barbas brancas, e as tensões se esfarelaram nas minhas passadas.
De volta às
ruas cinzas, apertadas, movimentadas. Já tinha, àquela altura, percorrido quase
doze quilômetros, estava feliz da vida com meu rolê no primeiro dia de estiagem
depois de mais de uma semana de chuva fria, incessante, molhada, chatonilda na
cidade de São Paulo.
Com todos os
problemas que enfrentei neste ano, tombo no asfalto, dedo quebrado, costas
coloridas, joelho esfubecado, articulações enferrujadas e inflamações várias,
nunca tinha ficado tanto tempo sem correr como nestes últimos dez dias.
Comecei a
ficar preocupado, até, porque preciso contabilizar quilômetros em penca para
conseguir chegar ao final do ano cumprindo galhardamente distância total
equivalente à de sessenta maratonas somadas –esse é o meu desafio e meu
presente de aniversário neste ano em que completei sessenta anos e entrei
oficialmente na velhice. Velho, corro como nunca corri na vida.
Com o frio e
o vento e a chuva fria, manhã depois de manhã, tarde depois de tarde, fui tomando
gosto pelas cobertas, o chocolate quente, maratonas diferentes, domésticas,
assistindo a séries cinematográficas... Ao mesmo tempo, me atazanava: Será que,
quando chegar a hora, vou saber correr de novo?
Pois olha,
sei.
Me
desentrevei daquelas ruelas e, num pedaço de concreto, vi perdidos,
abandonados, um pé de sandália e um pé de tênis, engruvinhados, fazendo
parzinho. Eram de criança, parecia, e agora estavam ali, abandonados,
solitários, perdidos, um estranho casal no chão de São Paulo.
O tempo passava
e os quilômetros também, já ia me cansando, mas ainda estava longe do caminho
de volta e do retorno que eu queria, passando por uma figura que me parecera
simpática, interessante, alguém com quem eu queria falar, queria que me
contasse uma história.
“Sou o homem
dos panos”, ele tinha me dito horas antes, quando eu desci para o outro lado da
Marginal. Encostada numa árvore de canteiro de avenida, havia uma bicicleta,
meio caída, meio apoiada, cercada de panos, papéis, sacos, sacolas. Imagem
curiosa, me pareceu, e fotografei na corrida, imaginando que talvez o dono não
gostasse...
Era o senhor
Vantuir, que respondeu a meu “bom dia!” perguntando qual que era a história, e
eu expliquei “nada não, corro por aí e faço fotos”. “Beleza!”, ele disse, e eu
fui me embora.
Mas achava
que ele tinha mais a me contar, falar do trabalho dele. E voltei pelo mesmo
caminho para tentar uma entrevista com ele. “Outro dia”, prometeu, mas não se
furtou a conversar rapidinho, falando do seu trabalho e resumindo a crise de
nosso país:
“É tipo
vender o almoço para pagar a janta.”
Dei adeus e
vim me embora, agora sim, quase embicando no caminho das pedras, rumo de volta à
casa. Não sem antes testemunhar mais um dos perrengues diários de nossa cidade,
abandona pela prefeitura: semáforos fora do ar, piscando direto no amarelo. Ainda
bem que agentes da CET já tinham chegado para controlar o tráfego, se não ia
ser mais complicado fazer a travessia.
Na subida da
Sumaré, cansei. Em vez de 300 metros caminhando, caminhei um quilômetro
inteiro. Mas depois voltei a correr. Quando dei de conta, meu rolezinho no
primeiro dia de estiagem chegava a vinte quilômetros.
Faço mais um
para completar meia maratona, só para cantar marra?
Não, deixa prá
lá. Amanhã tem mais.
VAMO QUE VAMO!!!
Percurso do
dia 22 de agosto de 2017
20,11 quilômetros percorridos em
2h53min25
Acumulado no
projeto 60M60A
1.807,56 quilômetros percorridos em 318h09min33
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