Aos dezesseis minutos do dia seis de junho de 1944, cento e
oitenta e um homens do Sexto Batalhão Aerotransportado da Grã-Bretanha aterrissaram
a cinquenta metros de uma ponte levadiça sobre o canal de Caen, na Normandia.
Sua missão era tomar a passagem, guardada por tropas germânicas, e impedir que
os nazistas explodissem a travessia. Em dez minutos, com apenas duas baixas,
conseguiram seu objetivo. Estava aberto o caminho para a invasão da França
pelas forças aliadas, para a libertação do povo francês do jugo de Hitler.
Meia hora antes das oito da manhã de 11 de junho de 2017,
mais de quatro mil homens e mulheres se concentram nos arredores de uma ponte
levadiça sobre o canal de Caen, na Normandia. Sua missão é correr vinte e um
quilômetros que os separam do centro de Caen e, no percurso, festejar a
liberdade.
Somos todos, naquela hora, “courants de la liberte”,
corredores da liberdade, nome do conjunto de provas que, no início de cada mês
de junho, celebra com suor e festa a epopeia que culminou com a derrota do nazismo
(pelo menos, no século passado, pois viúvas de Hitler continuam aparecendo a
toda hora, como assombrações, mesmo em meio à modernidade deste novo milênio).
Aguardamos, sob um sol mais forte do que seria de esperar
para esses dias ainda primaveris, o chamado para a largada. Eu caminho de um
lado para outro, descubro numa rua lateral do Museu da Ponte Pégaso, fechado
ainda naquela hora. Que pena.
Caminhamos, os corredores indóceis, por trilhas de terra e
grama às margens do canal. O sol incendeia a ponte de metal, enorme estrutura
basculante (no sul, a gente chama de ponte levadiça) instalada em 1994 em
substituição à estrutura original, que repousa, cuidada e protegida, nos
jardins do museu.
Os alto-falantes trombeteiam o chamado aos corredores.
Termina a sessão de ginástica aeróbica, impulsionada por som bate-estaca, que
funcionou como aquecimento (e precisa??). Somos chamados a tomar posição nas
imediações da ponte, aguardando à largada, que é quase-quase pontual.
Soa a corneta, quase um brado militar, e não podemos fazer
mais do que caminhar naquele estreito caminho, por maior que seja nosso
entusiasmo cívico e desejo atlético. Há que passar pela ponte, cruzar pelos
mesmos caminhos que, há mais de 70 anos, foram trilhados pelos exércitos que
levavam à Europa os ventos da democracia.
Instalada em 1934, a ponte sobre o canal não tinha nome; era
chamada de ponte de Bénouville por causa da cidade próxima, mas não tinha de
verdade uma identidade própria. Depois da passagem das tropas aliadas, foi
solenemente batizada de ponte Pégaso, homenagem aos paraquedistas de 1944, que
traziam como insígnia em seus uniformes a imagem do cavalo alado, figura heroica
da mitologia grega.
Grande parte dos corredores, imagino eu, nem se dá conta das
brumas da história que estamos a cruzar. Logo depois da ponte, do lado
esquerdo, há uma casa antiga, um sobrado pintado em vermelho e branco onde hoje
funciona um café e restaurante.
À frente dele, um grande painel de madeira informa: “Esta
foi a primeira casa da França liberada pelo Sexto Batalhão Aerotransportado na
noite de cinco para seis de junho de 1944”.
Beleza, não há mais espaço para elucubrações históricas nem
pensamentos libertários nem reflexões antinazistas. Há que correr.
O percurso é fácil, aparentemente. Uma sucessão de leves
subidas e descidas, curvas para lá e cá, cruzando primeiramente por estreitas
ruas do povoado de Bénouville. Fraco que sou sob o calor, fujo do meio da rua,
corro pela calçada sempre que dá, tentando buscar abrigo à sombra das casas e
muros.
Vamos passar ainda por mais meia dúzia de comunidades rurais
da Normandia antes de chegar a Caen, epicentro desse festival de corridas que
vem rolando desde o dia anterior, quando mais de vinte mil mulheres e meninas,
quase todas vestidas de rosa e muitas exibindo fantasias ou pinturas exóticas,
participaram da corrida festiva La Rochambelle, prova benemerente de cinco
quilômetros, que arrecada fundos para investir no combate ao câncer de mama.
O nome da prova também tem razões históricas: Rochambelles
foi como ficaram conhecidas as enfermeiras e motoristas de ambulância da
Segunda Divisão Blindada, um dos efetivos que contribuíram decisivamente para a
libertação da França na Segunda Guerra.
Além da corrida festiva, realizada na véspera, o festival de
provas tem como evento principal a Maratona da Liberdade. A largada é Courseulles-sur-Mer,
em cujas praias desembarcaram mais de catorze mil soldados canadenses do Dia D –nos
meses seguintes, o número de combatentes canadenses enviadas para o front
europeu passaria de 15 mil.
Como, a esta altura do ano, não tenho forças nem treinamento
para enfrentar uma maratona, optei por seguir na Pegasus, a meia maratona. Foi
a minha terceira em três fins de semana seguidos, uma espécie de teste de
resistência nesta minha caminhada de sexagenário, em que festejo meus sessenta
anos tentando percorrer, ao longo deste 2017, distância equivalente à de
sessenta maratonas.
Sem pular semana,
saio sempre para correr ou caminhar, fazendo treinos solitários de duração e
distância suficientes para me manter vivo neste desafio. De vez em quando, há
que sair do ramerrão das ruas paulistanas. É quando busco corridas inspiradoras
como o festival de provas Les Courants de La Liberté.
Foi uma boa escolha. Enquanto sigo pelo caminho da
Pégaso,minha querida Eleonora corre a prova de dez quilômetros que, se não tem
nome evocativo da guerra, teve largada em frente ao Memorial de Caen, que
relembra as agruras, a torpeza e o heroísmo dessa cidade durante o período de
submissão e de enfrentamento a Hitler.
É em Caen que terminarão todas as provas do dia 11, a
maratona e a meia mais os dez quilômetros. Passaremos todos pelo dito Memorial
e também teremos vista para o Castelo de Caen, testemunha da história milenar
da cidade, que hoje é quase um grande albergue estudantil: tem pouco mais de
109 mil habitantes e mais de 30 mil estudantes. Também tem importância
comercial: seu porto é décimo mais movimentado país.
O castelo, imponente, instalado em uma colina em área de
mais de cinco hectares, foi construído em 1060 por William, o Conquistador.
Àquela altura, Caen já era a cidade mais importante da região: desde 912 tinha
o status de capital da Normandia. E o tal William levava aquele apelido não
porque fosse um don Juan, mas porque era um grande guerreiro: chegou a
conquistar a Inglaterra, que fica ali pertinho, do outro lado do canal da Mancha.
Antes de chegarmos à cidade, porém, os meio-maratonistas
passamos por campos sem fim. Fico curioso para saber que cultivo é aquele, que
parece uma horta imensa –aqui pelo Brasil, as hortas que conheço são pequenas,
não há ou não lembro de ter conhecido, por exemplo, milhares e milhares de
alqueires forrados de alface. Pois lá a plantação a perder de vista era de
beterraba.
Havia também milho e grandes parreirais, mas o campo
verdejando que mais me impressionou, mesmo, foi o de beterrabas –não reconheci
a planta, tive de perguntar para um sujeito que, da beira da estrada, aplaudia
e incentivava os corredores.
Eu sempre agradecia o incentivo, uma razão a mais para
manter elevado o ânimo e reunir forças para seguir até a chegada, mesmo que o
corpo reclamasse descanso, sombra e água fresca.
É que, além das corridas em sequência, eu fizera também
aventuras turísticas envolvendo caminhadas, subidas em montanhas e escadarias
sem fio, tudo nos dias anteriores àquela bendita corrida libertado.
Era o que podia fazer e o que devia fazer para aproveitar o tempo, a partir de minha base em
Caen, que, do ponto de vista geográfico, funciona como uma espécie de pivô,
portal de entrada para a visita às praias da Normandia de importância histórica
e fartas belezas naturais.
Três dias antes, por exemplo, Eleonora e eu rodamos quase
duzentos quilômetros para chegar até o monte Saint-Michel, uma antiga abadia
construída sobre um rochedo que fica ilhado quando a maré sobe. Tem algo de
poético, selvagemente belo, mas também fantasmagórico.
Os monges de antanho sabiam se cuidar...
Além da beleza e da surpreendente formação geológica, chama
a atenção a estrutura montada para que os turistas aproveitem seu tempo da
melhor forma possível, sem muita confusão –bem imagino que, na alta tempora, a
muvuca seja inevitável, mas os caras se esforçam para facilitar a vida do povo.
Há um batalhão de enormes estacionamentos públicos, pagos. A
gente deixa o carro no local, pega um tíquete, e sai a pé até uma central de
ônibus, estes gratuitos, que levam o turista até o sopé do monte, a poucas
dezenas de metros da entrada da abadia. Quem quiser pode pegar uns bondes
puxados por cavalo, mas daí já vira passeio, não transporte público, e é
cobrado.
Claro que também dá para ir a pé ou correndo –vi, no caminho
para lá, alguns grupos de corredores se reunindo em cidadezinhas próximas para
um treininho até St Michel. Todos precisam tomar muito cuidado na caminhada até
o mosteiro, usando apenas os caminhos marcados ou, no máximo, os terrenos
próximos –no ao redor existem pontos de areais movediças, sorvedouros de gentes
e bichos, segundo histórias que vêm de geração em geração.
Outro passeio bacana vai para o lado oposto da costa
normanda, subindo para nordeste para chegar até as falésias de Etretat. Para
mim, subir aquelas montanhas e me admirar com os paredões sobre o mar foi a
parte mais bacana e o passeio mais prazeroso nesses dias de pré-prova.
Além das maravilhas geológicas, do mar que canta e dança nos
seixos da praia, Etretat me atraiu também por ter sido lar, no século dezenove,
de um de meus ídolos literários, Guy de Maupassant, que levou o conto à alta
literatura.
Pois foi o tal Guy, dizem os fofoqueiros de plantão e marqueteiros
da cidade, que batizou de Tromba do Elefante um dos rochedos que se destacam
dos paredões de pedra sobre o mar de Etretat. De fato, se o turista olhar com
carinho vai conseguir imaginar um imenso paquiderme se banhando no oceano
plácido.
Entre Courseulles-sur-Mer e Etretat –e mesmo mais para
nordeste, até Dunquerque--, há muitas praias que serviram de ponto de
desembarque para as tropas aliadas e foram campo de sangrentas batalhas: a
prova está nos cemitérios que também pontuam o litoral normando.
O cemitério das
tropas norte-americanas, por exemplo, é uma obra arquitetônica que impressiona,
deprime e anima o visitante, tudo a um só tempo, numa mesma emoção.
Por sua estratégica posição, a Normandia sempre foi terreno
de combate. Neste 2017, ainda bem, a refrega se dá apenas entre nossos corpos,
esqueletos, gordura e músculos de corredores que têm como adversários a distância,
o asfalto, os morrinhos e as descidas, o sol
e o vento, a própria vontade e disciplina.
No fim, somos todos vencedores. Campeões da liberdade,
herdeiros de heróis que entregaram suas vidas para combater o nazismo. É bom
que nos lembremos sempre disso e corramos pensando em honrar o passado da
humanidade, especialmente nestes tempos em que o heroísmo, a generosidade e o
próprio sentimento humanitário parecem esquecidos, submetidos hoje não à
vontade de um guerreiro louco, mas à ditadura do dinheiro, à força do capital
que viaja pelo mundo transformando homens em escravos.
Mais uma vez –e sempre- é preciso correr, caminhar e erguer
a voz pela liberdade.
VAMO QUE VAMO!!!
MEIA MARATONA PÉGASO – LES COURANT DE LA LIBERTÉ
Percurso de 21,27 quilômetros realizado em 2h33min17 no dia
11 de junho de 2017.
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