Juízes, promotores e até advogados de defesa não dão a menor
bola quando ouvem presos denunciarem torturas sofridas na mão da polícia. É
tudo quase natural –aliás, em alguns casos, nem as próprias vítimas se dão ao
trabalho de apontar os maus tratos, carecas de saber que ninguém vai levar o
caso à frente.
No trato com os presos, os juízes, supostamente os atores
mais bem preparados no processo judicial, demonstram não apenas frieza, mas
franca hostilidade contra os acusados.
Um deles, por exemplo, perguntou: “Um tapa na cara, só?” ou
ouvir denúncia de maus tratos. Outro foi mais além, inquirindo assim o acusado:
“Só choque? Você ficou com alguma lesão? Chute também? Você falou para o
delegado que levou chute? Do nada eles te agrediram?”
E olha que os acusados não são sequer réus em qualquer tipo
de processo, mas sim cidadãos detidos pela polícia sob suspeita de algum crime
e levados à Justiça para que o juiz decida se os procedimentos legais devem
prosseguir e em que condições a pessoa vai responder ao processo, se preso ou
em liberdade.
São as chamadas AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA, uma medida muito
positiva implementada no país pelo Conselho Nacional de Justiça, que determinou
a apresentação de pessoas presas em flagrante a um juiz em até 24 horas. O
objetivo é evitar prisões ilegais e identificar abusos ocorridos no momento da
detenção.
Tudo muito lindo, desde que seja tratado com a seriedade que
o tema merece. E que não tem sido dada a ele pelos envolvidos no processo, como
demonstra pesquisa divulgada hoje pela Conectas, uma ONG que atua na área de
direitos humanos.
A apresentação foi no Memorial da Resistência, destino de
minha corrida d ehoje, que me deu muita satisfação. Corri sem dor todos os
trechos previstos e ainda acrescentei algumas centenas de metros a mais pro
minha conta para aproveitar alguns lugares bacanas por onde passei.
Foi delicioso, por exemplo, cruzar o viaduto Antártida por
sobre os trilhos do trem, seguindo pela ciclovia quase vazia –rima rica,
hein... Corri o viaduro inteiro, sem dor e bebendo as imagens em volta, tudo
coisa feia, sem graça, disforme, que no conjunto, cria um pedacinho de cidade
curiosa e instigante.
Depois cruzei pela rua Norma Pieruccini Giannotti, que
sempre me traz boas lembranças pois fica no percurso da São Silvestre. Aliás,
em todas as vezes que cruzei por ela, vinha-me sempre a pergunta à mente: quem
foi, afinal, essa Norma?
Imaginava alguma heroína, figura atuante na política, na
ciência ou na literatura, sabe-se lá. E justo hoje resolvi tentar descobrir. Perdoe-me,
portanto, esse breve digressão.
Mãe extremosa, dona de casa perfeita, Norma atuou no apoio
aos necessitados do bairro da Barra
Funda, onde morou durante quase toda sua vida. Morta em 1985, aos 82 anos, foi
homenageada pelos moradores da rua Lusitânia, que pediram e receberam a troca
de nome.
Na justificativa do projeto de lei aprovado na Câmara
Municipal no ano seguinte, o currículo de Norma é uma pérola do machismo que
grassa na sociedade. Ela vale porque foi casada, porque teve um marido com quem
ficou por sessenta anos, porque foi mãe, teve dois filhos que se formaram e se
tornaram cidadãos ilustres.
Sobre Norma, ela mesmo, o currículo quase nada diz. Em meras
cinco linhas da página inteira cheia de letras, ficamos sabendo que era “dotada
de excepcionais qualidades” e que “desenvolveu junto a comunidade amplo
trabalho de assistência social, em favor dos necessitados e carentes”.
Finda a digressão, volto ao percurso. Passo pelo bosque da
Luz, que abraço e penetro, cruzando a seguir pela centenário prédio da estação
de trem e enfim chegando ao conjunto da antiga estação Júlio Prestes.
Além da parada do caminho de ferro, fulguram por ali a Sala
São Paulo, a Estação Pinacote e, no mesmo prédio desta última, o Museu da
Resistência, onde conversei com Vívian Calderoni, uma das coordenadoras da
pesquisa realizada pela Conectas Direitos Humanos.
O trabalho, me contou ela, que é uma jovem advogada, é
resultado de monitoramento presencial e quase diário em audiências de custódia
realizadas no Fórum Criminal da Barra Funda, observando audiências realizadas
de julho a novembro de 2015 acompanhando o encaminhamento das denúncias de
violências de dezembro de 2015 a maio de 2016.
Foram analisados 393 casos em que houve relatos ou sinais de
torturas ou maus tratos. O perfil das vítimas é o conhecido PPP (preto, pobvre
e da periferia). Em números: homens são 95% dos denunciantes de tortura, dos quais
67% são negros.
Com habilidade e clareza, Vivian Calderoni falou mais sobre
a pesquisa em entrevista que transmiti ao vivo na manhã de hoje e que agora trago
aqui especialmente para você. Basta clicar na imagem abaixo para acompanhar
nossa conversa.
Com o que pretendia encerrar este texto, considerando que
você já tem agora todas as informações básicas. Mas, se quiser, pode saber mais
ainda, conferindo o texto completo do relatório “TORTURA BLINDADA – Como as
Instituições do Sistema de Justiça Perpetuam a Violência nas Audiências de
Custódia”. CLIQUE AQUI para ter acesso ao documento.
Se quiser ir logo para os finalmente, reproduzo a seguir as
recomendações feito pela turma da Conectas para que as audiências de custódia
deixem de ser desperdício do dinheiro público e passem a ser efetivos meios de
defesa dos direitos humanos e aprimoramento do sistema judicial brasileiro.
RECOMENDAÇÕES
“1. As audiências de custódia devem ser aplicadas a todas as
pessoas presas, independentemente do crime que baseia a detenção e do dia,
horário e local em que ocorreu o flagrante.
2. As audiências de custódia devem ser realizadas
presencialmente em ambiente seguro que permita a coleta de relatos de tortura e
maus-tratos sem pressão e coação. A pessoa presa não deve ser algemada. Policiais
militares não podem estar presentes nas audiências nem nas entrevistas prévias
com o defensor público. A linguagem utilizada pelos representantes do sistema
de Justiça deve ser simples.
3. A chamada audiência-fantasma, realizada quando a pessoa
presa está hospitalizada, não deve acontecer em nenhuma hipótese. Quando não
houver a apresentação da pessoa presa em razão de internação ou atendimento
médico, deverá ser determinada sua apresentação à audiência de custódia imediatamente
após a alta hospitalar, além da instauração de procedimento para apurar possível
violência policial. A justificativa para a não apresentação deve ser respaldada
por laudo ou relatório médico detalhando as razões da internação, extensão de
possíveis lesões físicas e psicológicas, assim como, se possível, o que as
teria causado.
4. Os juízes devem questionar a pessoa presa sobre a
ocorrência de tortura e maus-tratos em
todas as audiências, pedindo detalhes que auxiliem na
apuração dos fatos. A atuação dos magistrados deve seguir a resolução 213 do
CNJ.
5. Os relatos de violência policial apresentados nas
audiência de custódia devem ser tabulados
e sistematizados pelo Judiciário visando subsidiar políticas
públicas de prevenção e combate à
tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e
degradantes.
6. Os promotores devem perguntar obrigatoriamente sobre a
ocorrência de tortura e maus-tratos e, em caso de resposta positiva, buscar
novos elementos de prova para a apuração do crime. Devem, ainda, instaurar
procedimento investigatório criminal ou determinar a instauração de inquérito
policial, quando houver suspeita, ou apresentar denúncia imediatamente quando
houver indícios suficientes.
7. Os defensores públicos devem dispor de um espaço adequado
para a entrevista prévia, em
que devem questionar, obrigatoriamente, se a pessoa foi
vítima de tortura e maus-tratos. Devem, ainda, informá-la sobre os possíveis
encaminhamentos para a apuração da violência.
8. A Defensoria deve tabular todas as denúncias relatadas na
entrevista prévia, mesmo que a pessoa opte por não mencioná-las na audiência, a fim de
produzir dados para subsidiar políticas públicas de prevenção e combate à
tortura.
9. Quando houver suspeita fundamentada de ocorrência de
tortura ou maus-tratos, deve ser garantida a integridade física da pessoa presa, de seus
familiares e de eventuais testemunhas. A pessoa presa não deve retornar à
guarda de agente públicos suspeitos.
10. Diante de relato de violência policial (física ou
psicológica), a Magistratura, o Ministério Público e a Defensoria Pública
deverão formular quesitos específicos para a elaboração de laudo de exame de
corpo de delito. Esses critérios deverão fazer parte do ofício de
encaminhamento ao Instituto Médico Legal. Esse documento deverá, ainda,
informar o tipo de violência que a pessoa narrou ter sofrido, de modo a
contribuir com a qualidade do exame.
11. A perícia deve ser realizada em ambiente equipado nos
termos do Protocolo de Istambul.
Sempre que necessário, exames complementares para atestar a
extensão dos ferimentos ou a existência de lesões de difícil constatação devem ser
solicitados.
12. A perícia forense deve estar integrada às políticas de
combate e prevenção e combate à tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos
e degradantes, sendo fundamental o fortalecimento do Instituto Médico Legal
como instituição independente e autônoma da Secretaria de Segurança Pública
estadual.”
É o que eu tinha para dizer hoje.
VAMO QUE VAMO!!!
Percurso realizado no dia 21 de fevereiro de 2017
13,04 km percorridos em 1h59min17
Acumulado no projeto 60M60A
435,78 km percorridos em 82h06min34
No comments:
Post a Comment