27.3.17

Funil do preconceito dificulta ascensão de advogadas, mostra tese de pós-doutorado

Minha jornada de hoje me levou a superar a marca de 17 maratonas nesta ano em que pretendo percorrer distância equivalente à de sessenta maratonas.
Não me entenda mal: não corri, desde primeiro de janeiro, 17 provas na excelsa distância de 42.195. Mas, se encaixarmos em uma linha uma maratona atrás da outra, o fim de uma marcando o começo de outra, e o começo de outra cravado no final de uma, até que somem 17 maratonas, o comprimento total dessa linha será menor do que o percurso que já trilhei neste ano.  
É pouco para uns, muito para outros; para mim, é uma aventura a me carregar por São Paulo e pelo mundo, pela juventude e pela velhice, pelo progresso e pelo conservadorismo, com gentes de tudo quanto é jeito.
Dona Patrícia, por exemplo, é uma estudiosa. Uma professora, uma acadêmica, que examina o mundo com as lentes dos livros, das entrevistas, da filosofia, da análise numérica e do aprendizado que ocorre quando as pessoas trocam ideias.
Não conheço dona Patrícia, assim de ver frente a frente, apertar a mão e tomar café junto, mas foi por causa dela e do trabalho que ela faz que montei meu percurso de hoje, saindo do Sumaré em direção ao centro para passar em frente aos prédios da hoje Universidade Mackenzie.
Não imaginava jamais fazer uma espécie de saudação ao Mackenzie, cujo próprio nome, para mim, fedia com o odor pútrido do conservadorismo, da reação, do anticomunismo, dos terroristas caçadores de comunistas que atacaram os defensores da democracia na Batalha da Maria Antônia.
Pois numa das corridas da vida, fiquei sabendo que as coisas já não são assim, ou, pelo menos, há ventos libertários soprando por lá, tanto entre os alunos quanto entre o professorado. E foi assim que me falaram da professora Patrícia Tuma Martins Bertolin.
Formada em direito pela Universidade da Amazônia, ela veio a São Paulo para fazer o mestrado e engatou na vida acadêmica. Seu doutorado também foi na USP. Hoje ela é professora da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico do Mackenzie.
E é uma pessoa que espera: em maio chega às livrarias “Mulheres na Advocacia: Padrões Masculinos de Carreira ou Teto de Vidro”, fruto de suas investigações no pós-doutorado.
Foi por causa desse trabalho que entrei em contato com ela, que procurou entender os processos de ascensão da mulher no mundo do direito.
Que os entraves são enormes, já sabemos todos, e as estatísticas estão aí para comprovar. A cada censo profissional, a cada estudo mais abrangente de algum instituto, os dados saltam aos olhos.
No Rio de Janeiro, por exemplo, a advocacia está dividida quase meio a meio: as mulheres representam 49,4% do universo profissional no Estado. Ganham em média 25% a menos do que os homens, demoram mais para subir na carreira e são minoria entre os empregadores na sua área, conforme levantamento feito pela Caixa de Assistência de Advogados do RJ, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
A OAB, por sinal, também é exemplo desse funil de preconceito: das 63 subseções fluminenses, apenas nove têm mulheres na presidência.
Números como esses sempre chocam, mas o trabalho de Bertolin vai além das estatísticas. Ela procurou ver como vivem, trabalham e crescem profissionalmente as mulheres nos principais escritórios de advocacia de São Paulo, mais especificamente a elite das chamadas sociedades de advogados.
Selecionou os vinte maiores escritórios brasileiros do ranking Chambers and Partners, escolhendo dentre eles apenas os que “full service”, ou seja, que atendem empresas em todo tipo de questão jurídica. Ficaram catorze, e ela conseguiu acesso a dez, onde fez 32 entrevistas para montar um detalhado painel das limitações à ascensão profissional da mulher.
Constatou que as estatísticas valem também para a superelite do direito. No quadro geral, as mulheres são maioria entre os chamados advogados associados ou empregados, no início da carreira. Mas poucas passam pela peneira que leva ao posto de sócio.
Em um dos escritórios, a presença feminina no topo da carreira mal chegava a 13%; em outro, alcançava 37%.
Esses escritórios, me conta Patrícia, funcionam –ou dizem funcionar—com base na meritocracia: “Quem é bom chega lá” é a palavra de ordem. Afinal, todos têm as mesmas chances, as mesmas oportunidades...
Nem sempre. Num escritório, por exemplo, mulheres em licença maternidade perdem o direito ao uso do e-mail profissional. Essa empresa, que tem 61% dos associados mulheres e apenas 32% de sócias, oferece um Programa Para as Mulheres –no entanto nenhuma das entrevistadas por Patrícia sabia da existência do tal programa.
Em outro escritório, há períodos claros de evasão das advogadas. O sócio entrevistado informou que a empresa não pretendia fazer algo sobre o assunto.
Em dois escritórios examinados na pesquisa de pós-doutorado,  mulheres e homens sobem na carreira em igual percentual. Patrícia Bertolin analisa e explica as razões:
“São os escritórios dos anos 1990. O que eu fui descobrir? Que são relações mais virtuais. É uma carreira mais rápida. Existe uma maior facilidade para o home office, enquanto nos demais o home office é visto como descomprometimento da empregada, do empregado. Mas aí eu vi que só aqueles escritórios onde as mulheres não têm sábado, domingo, feriado. Nesses momentos de muita flexibilização, quem é efetivamente a mão-de-obra ocupada? É a feminina, normalmente.”
Isso é verdade em quase todas as áreas profissionais, no entender de Bertolin: “São condições que favorecem o ingresso e a permanência das mulheres no mercado de trabalho em geral. Não só na advocacia. Você pode ver que em momentos de crise, em contratos mais precários, isso tende a incentivar a contratação feminina. Essa é uma regra geral”.
Em relações de trabalho mais estáveis, as mulheres acabam sendo deixadas para trás. “O sócio-fundador de um escritório me disse assim: `Para o escritório tanto faz, se usa saia ou se usa calças, desde que seja bom. Só que uma hora elas vão ter filho`. Quer dizer, tanto faz, não. Não é bem assim”, diz Patrícia.
Alguns escritórios –quatro dos dez examinados na pesquisa—até têm programas de promoção da mulher. Fazem palestras para levar, por exemplo, informações sobre câncer do útero.
“Não é por aí”, afirma a professora. “O que deveria ser feito é trabalhar questões que digam respeito a reais, iguais oportunidades”.
Patrícia Bertolin ressalta que o critério de ascensão profissional não é transparente. Como são escolhidos os novos sócios? Quem é que vota?
“Em geral são homens”, responde a professora. “As pessoas tendem a querer pessoas que se assemelham a elas.”
Ao longo da carreira, as coisas são mais escorreitas para o advogado do que para a advogada.
“Para um homem, é muito mais fácil fazer networking do que para a mulher. Numa sociedade ainda patriarcal, a mulher chama o cliente para jantar, pronto! Tem o risco de ser mal interpretada. E assim, coisas pequenas, o espaço para as mulheres falarem é bem menor. Eu cansei de ouvir na minha pesquisa, “A mulher, para ela falar alguma coisa, ela tem que estar muito certa do que ela está falando.” O homem, não. Ele tem uma vaga ideia, mas ele já fala.”
A pesquisa deixou impactos na própria pesquisadora:
“Eu enxerguei em mim coisas que eu vi nas minhas entrevistadas. Como por exemplo, a mulher tem muita dificuldade de aceitar elogio. Quando ela é elogiada, ela diz assim: “Ai, mas olha, eu não teria feito nada sozinha”. Leva a equipe toda junto. O homem, o que apareceu? Gritou na minha pesquisa. Ele pode até usar uma falsa modéstia, “Não é bem assim. Imagina.”. Mas ele aceita. A gente ainda não se coloca nessa posição. Outra coisa, que apareceu espontaneamente em quase todas as entrevistas, no caso de mulheres com responsabilidade familiar: a culpa. É aquela coisa de achar que não está sendo boa advogada, não está sendo boa mãe, não está sendo boa nada, sabe? Eu acho que a culpa, como disse uma entrevistada, é atávica.”
Uma culpa criada, construída.
“A mulher tem filhos. Ela é uma advogada, ela tem três filhos, [a conclusão é que] ela não tem tempo para a advocacia. O homem é um advogado, faz isso, faz aquilo, faz aquilo mais e tem três filhos, ah que bom! Olha como ele é um homem perfeito! São dois pesos, duas medidas.”
VAMO QUE VAMO!!!


Percurso do dia 27 de março de 2017

8,36 km percorridos em 1h32min55

Acumulado no projeto 60M60A
718,23 km percorridos em 132h13min16

PS.: Se você está interessado em saber mais sobre questões de gênero no mundo profissional, uma boa oportunidade é a leitura de “A Violência de Gênero nos Espaços do Direito”, que será lançado amanhã em São Paulo. Veja o convite abaixo.


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