Minha
jornada de hoje me levou a superar a marca de 17 maratonas nesta ano em que
pretendo percorrer distância equivalente à de sessenta maratonas.
Não
me entenda mal: não corri, desde primeiro de janeiro, 17 provas na excelsa distância
de 42.195. Mas, se encaixarmos em uma linha uma maratona atrás da outra, o fim
de uma marcando o começo de outra, e o começo de outra cravado no final de uma,
até que somem 17 maratonas, o comprimento total dessa linha será menor do que o
percurso que já trilhei neste ano.
É
pouco para uns, muito para outros; para mim, é uma aventura a me carregar por
São Paulo e pelo mundo, pela juventude e pela velhice, pelo progresso e pelo
conservadorismo, com gentes de tudo quanto é jeito.
Dona
Patrícia, por exemplo, é uma estudiosa. Uma professora, uma acadêmica, que
examina o mundo com as lentes dos livros, das entrevistas, da filosofia, da
análise numérica e do aprendizado que ocorre quando as pessoas trocam ideias.
Não
conheço dona Patrícia, assim de ver frente a frente, apertar a mão e tomar café
junto, mas foi por causa dela e do trabalho que ela faz que montei meu percurso
de hoje, saindo do Sumaré em direção ao centro para passar em frente aos
prédios da hoje Universidade Mackenzie.
Não
imaginava jamais fazer uma espécie de saudação ao Mackenzie, cujo próprio nome,
para mim, fedia com o odor pútrido do conservadorismo, da reação, do
anticomunismo, dos terroristas caçadores de comunistas que atacaram os
defensores da democracia na Batalha da Maria Antônia.
Pois
numa das corridas da vida, fiquei sabendo que as coisas já não são assim, ou,
pelo menos, há ventos libertários soprando por lá, tanto entre os alunos quanto
entre o professorado. E foi assim que me falaram da professora Patrícia Tuma
Martins Bertolin.
Formada
em direito pela Universidade da Amazônia, ela veio a São Paulo para fazer o
mestrado e engatou na vida acadêmica. Seu doutorado também foi na USP. Hoje ela
é professora da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito
Político e Econômico do Mackenzie.
E
é uma pessoa que espera: em maio chega às livrarias “Mulheres na Advocacia: Padrões
Masculinos de Carreira ou Teto de Vidro”, fruto de suas investigações no
pós-doutorado.
Foi
por causa desse trabalho que entrei em contato com ela, que procurou entender
os processos de ascensão da mulher no mundo do direito.
Que
os entraves são enormes, já sabemos todos, e as estatísticas estão aí para
comprovar. A cada censo profissional, a cada estudo mais abrangente de algum
instituto, os dados saltam aos olhos.
No
Rio de Janeiro, por exemplo, a advocacia está dividida quase meio a meio: as
mulheres representam 49,4% do universo profissional no Estado. Ganham em média
25% a menos do que os homens, demoram mais para subir na carreira e são minoria
entre os empregadores na sua área, conforme levantamento feito pela Caixa de
Assistência de Advogados do RJ, com base em dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
A
OAB, por sinal, também é exemplo desse funil de preconceito: das 63 subseções
fluminenses, apenas nove têm mulheres na presidência.
Números
como esses sempre chocam, mas o trabalho de Bertolin vai além das estatísticas.
Ela procurou ver como vivem, trabalham e crescem profissionalmente as mulheres
nos principais escritórios de advocacia de São Paulo, mais especificamente a
elite das chamadas sociedades de advogados.
Selecionou
os vinte maiores escritórios brasileiros do ranking Chambers and Partners,
escolhendo dentre eles apenas os que “full service”, ou seja, que atendem empresas em todo tipo de questão jurídica. Ficaram catorze, e ela conseguiu acesso a dez, onde
fez 32 entrevistas para montar um detalhado painel das limitações à ascensão
profissional da mulher.
Constatou
que as estatísticas valem também para a superelite do direito. No quadro geral,
as mulheres são maioria entre os chamados advogados associados ou empregados,
no início da carreira. Mas poucas passam pela peneira que leva ao posto de
sócio.
Em
um dos escritórios, a presença feminina no topo da carreira mal chegava a 13%;
em outro, alcançava 37%.
Esses
escritórios, me conta Patrícia, funcionam –ou dizem funcionar—com base na
meritocracia: “Quem é bom chega lá” é a palavra de ordem. Afinal, todos têm as
mesmas chances, as mesmas oportunidades...
Nem
sempre. Num escritório, por exemplo, mulheres em licença maternidade perdem o
direito ao uso do e-mail profissional. Essa empresa, que tem 61% dos associados
mulheres e apenas 32% de sócias, oferece um Programa Para as Mulheres –no entanto
nenhuma das entrevistadas por Patrícia sabia da existência do tal programa.
Em
outro escritório, há períodos claros de evasão das advogadas. O sócio
entrevistado informou que a empresa não pretendia fazer algo sobre o assunto.
Em
dois escritórios examinados na pesquisa de pós-doutorado, mulheres e homens sobem na carreira em igual
percentual. Patrícia Bertolin analisa e explica as razões:
“São
os escritórios dos anos 1990. O que eu fui descobrir? Que são relações mais
virtuais. É uma carreira mais rápida. Existe uma maior facilidade para o home
office, enquanto nos demais o home office é visto como descomprometimento da
empregada, do empregado. Mas aí eu vi que só aqueles escritórios onde as
mulheres não têm sábado, domingo, feriado. Nesses momentos de muita
flexibilização, quem é efetivamente a mão-de-obra ocupada? É a feminina,
normalmente.”
Isso
é verdade em quase todas as áreas profissionais, no entender de Bertolin: “São
condições que favorecem o ingresso e a permanência das mulheres no mercado de
trabalho em geral. Não só na advocacia. Você pode ver que em momentos de crise,
em contratos mais precários, isso tende a incentivar a contratação feminina.
Essa é uma regra geral”.
Em
relações de trabalho mais estáveis, as mulheres acabam sendo deixadas para
trás. “O sócio-fundador de um escritório me disse assim: `Para o escritório
tanto faz, se usa saia ou se usa calças, desde que seja bom. Só que uma hora
elas vão ter filho`. Quer dizer, tanto faz, não. Não é bem assim”, diz
Patrícia.
Alguns
escritórios –quatro dos dez examinados na pesquisa—até têm programas de
promoção da mulher. Fazem palestras para levar, por exemplo, informações sobre câncer
do útero.
“Não
é por aí”, afirma a professora. “O que deveria ser feito é trabalhar questões
que digam respeito a reais, iguais oportunidades”.
Patrícia
Bertolin ressalta que o critério de ascensão profissional não é transparente.
Como são escolhidos os novos sócios? Quem é que vota?
“Em
geral são homens”, responde a professora. “As pessoas tendem a querer pessoas
que se assemelham a elas.”
Ao
longo da carreira, as coisas são mais escorreitas para o advogado do que para a
advogada.
“Para
um homem, é muito mais fácil fazer networking do que para a mulher. Numa
sociedade ainda patriarcal, a mulher chama o cliente para jantar, pronto! Tem o
risco de ser mal interpretada. E assim, coisas pequenas, o espaço para as
mulheres falarem é bem menor. Eu cansei de ouvir na minha pesquisa, “A mulher,
para ela falar alguma coisa, ela tem que estar muito certa do que ela está
falando.” O homem, não. Ele tem uma vaga ideia, mas ele já fala.”
A
pesquisa deixou impactos na própria pesquisadora:
“Eu
enxerguei em mim coisas que eu vi nas minhas entrevistadas. Como por exemplo, a
mulher tem muita dificuldade de aceitar elogio. Quando ela é elogiada, ela diz
assim: “Ai, mas olha, eu não teria feito nada sozinha”. Leva a equipe toda
junto. O homem, o que apareceu? Gritou na minha pesquisa. Ele pode até usar uma
falsa modéstia, “Não é bem assim. Imagina.”. Mas ele aceita. A gente ainda não
se coloca nessa posição. Outra coisa, que apareceu espontaneamente em quase
todas as entrevistas, no caso de mulheres com responsabilidade familiar: a
culpa. É aquela coisa de achar que não está sendo boa advogada, não está sendo
boa mãe, não está sendo boa nada, sabe? Eu acho que a culpa, como disse uma
entrevistada, é atávica.”
Uma
culpa criada, construída.
“A
mulher tem filhos. Ela é uma advogada, ela tem três filhos, [a conclusão é que]
ela não tem tempo para a advocacia. O homem é um advogado, faz isso, faz
aquilo, faz aquilo mais e tem três filhos, ah que bom! Olha como ele é um homem
perfeito! São dois pesos, duas medidas.”
VAMO
QUE VAMO!!!
Percurso
do dia 27 de março de 2017
8,36
km percorridos em 1h32min55
Acumulado
no projeto 60M60A
718,23
km percorridos em 132h13min16
PS.:
Se você está interessado em saber mais sobre questões de gênero no mundo
profissional, uma boa oportunidade é a leitura de “A Violência de Gênero nos
Espaços do Direito”, que será lançado amanhã em São Paulo. Veja o convite
abaixo.
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