Uma das coisas boas de escrever no próprio blog é que
não se precisa dar bola a regras, regrinhas e regrões bestas (ou nem tanto)
inventados por chefes, chefinhos, chefões, chefetes, patrões et caterva. Apesar
de gostar de manter uma saudável distância crítica e cética dos assuntos de que
trato e dos meus entrevistados, de vez em quando é salutar soltar a franga,
mergulhar no dito “new journalism”, fazer jornalismo gonzo e virar tiete. Como
agora.
Adoro o MPB-4. Sempre gostei e hoje gosto mais ainda
desse grupo vocal, que, na minha adolescência, aparecia sempre como parceiro
inquebrantável de Chico Buarque. Os dois, Chico e MPB4, eram símbolos da
resistência à ditadura, da coragem, do enfrentamento, da rebeldia.
Eu devia ter uns dezesseis anos quando assisti pela
primeira vez a um espetáculo ao vivo do Chico com o MPB-4. A ditadura estava
firme e forte, Brasil Grande, ame-o ou deixe-o, tortura correndo solta, a
esquerda armada destruída, o general Médici servindo-se dos louros do
tricampeonato mundial da seleção brasileira.
O show foi em Porto Alegre, no ginásio do Grêmio
Náutico União, e a galera inteira cantava junto, com raiva e ódio, cada música
entoada por Chico, secundada pelo MPB-4. Numa dessas, acho que estavam cantando
“PESADELO”, ouve-se um estouro e as luzes se vão, o ginásio fica às escuras
(CLIQUE AQUI PARA VER UM CLIPE DE “PESADELO”).
Isqueirinho para cá, isqueirinho para lá, fósforos,
todo mundo meio receoso, será que haveria algum ataque, era a polícia ou só
sabotagem de algum filho da puta?
Naquela confusão, de repente se ouviu um sonzinho. Sei
lá quem, se o Chico ou os caras do MPB4, metia a boca no trombone, seguia com
“Pesadelo” à capella, e, aos poucos, todos nós, o público, fomos também
cantando juntos.
Foi maravilhoso.
Depois voltou a luz, tudo transcorreu em paz em
sossego.
Passaram-se mais de quarenta anos e, pela primeira vez,
conversei ao vivo, cara a cara, como se fôssemos iguais, com um daqueles
monstros sagrados do MPB4.
Encontrei o fulano nas redes sociais e nem acreditei
quando ele respondeu ao meu chamado. AQUILES
RIQUE REIS, o Aquiles do MPB-4, aceitou se somar à CORRIDA POR MANOEL,
evento esportivo-político-cultural-jornalístico que realizei no ano passado
(CLIQUE AQUI PARA SABER MAIS).
Aquiles, de camisa salmão, na ponta esquerda do grupo |
Participou em pessoa da jornada de abertura daquele
projeto, que produzi para marcar a passagem de quarenta anos do assassinato do
metalúrgico Manoel Fiel Filho nos porões da ditadura militar.
De lá para cá, conversamos algumas vezes. No meio da
confusão da luta contra o governo golpista no Brasil, ajudei a organizar, com o
grupo CORREDORES PATRIOTAS CONTRA O GOLPE, a primeira CORRIDA FORA TEMER. Pois
Aquiles estava lá para ajudar na divulgação do evento. Até gravou um filme para
apoiar a convocação de manifestantes para a corrida e caminhada na avenida
Paulista.
Agora, para este projeto de sessenta maratonas aos
sessenta anos, Aquiles concordou em falar comigo sobre o envelhecimento.
Nas nossas conversas anteriores, Aquiles, que faz
sessenta e nove anos neste mês, sempre foi muito simpático. Na entrevista,
ele se derramou, contou histórias de infância, discorreu sobre os males e
alegrias da envelhescência, falando sem peias até sobre questões mais intimas,
como separações e depressão.
Foram horas de conversa, com idas e vindas, que tento
agora traduzir em uma nova ordem, começando pelas descobertas que Aquiles fez
na maturidade.
“Muita gente fala
da crise dos 40. Eu não tive “porra” nenhuma. Para mim 40, ou 38, 41, 42, foi a
mesma coisa. Minha primeira grande crise, essa sim bem existencial, foi aos 50.
Quando eu fiz 60, a crise veio dobrada.”
Como foi essa crise existencial?, pergunto eu.
“Um sentimento de
falta de perspectiva. “Pô, mas eu estou fazendo um trabalho importante, eu
consegui uma coisa dificílima na vida, que foi ganhar a vida fazendo aquilo que
gosto. Sendo dono do próprio nariz. Faço o que eu quiser. Se eu quiser eu não
faço. E se eu não fizer eu não ganho dinheiro, então tem que fazer.”. Não tem
como. Nesse momento, quando eu fiz 60 anos, eu estava recém começando na
descoberta de que eu sabia escrever. Isso me dava um alento. Aí eu fiquei
deslumbrado com essa possibilidade, que começou a ficar cada vez mais palpável
porque aí eu comecei a escrever para um jornal, dois, três. Apesar de serem
jornais de médio porte, para mim era como se eu estivesse escrevendo no “The
New York Times”.”
Aquiles escreveu nas páginas de Esporte da “Folha de S.
Paulo”, e publicou crônicas da editoria de Cidades do “Jornal do Brasil”. Até
que, em plena democracia, enfrentou censura no jornalismo. O caso se deu assim:
“Eu já era
contratado do JB, que tinha sido comprado pelo “O Dia”. O Aldir Blanc tinha uma
coluna no “Dia”, e eu fiquei sabendo que ele foi dispensado. Ele tinha escrito
algumas coisas falando mal do governador da época, nem lembro quem era, perdeu
o emprego. Eu soube daquilo e escrevi um último parágrafo na minha coluna falando
que considerava um absurdo aquilo e que essa coisa tinha que ser mais falada,
mais divulgada. E dizia: “Com a palavra os donos do jornal “O Dia”.”
"Quando saiu a minha coluna, o cara tinha cortado esse parágrafo final. Eu liguei para lá, não atendeu. Era Nilo Dantes, diretor de redação na época. Atendeu um outro rapaz, que foi quem, talvez inocentemente, me disse o que aconteceu: “O Nilo pediu para tirar.”. Eu mandei um e-mail, já que ele não me atendia, dizendo que não tinha mais o que fazer ali.
“Eu
tomei essa decisão, mas fiquei muito chateado, porque tinha sido uma conquista.
Assim como fora uma conquista, anos antes, quando eu consegui escrever em alguns
números no “Pasquim”. Essa possibilidade de escrever me trouxe um ânimo muito
grande. Porque é uma coisa que chega já quase como doso. Quando eu cheguei aos sessenta
anos, já escrevia. Aí passou mais um tempo, nos anos 60, quando eu comecei a escrever só sobre música.
É o que eu faço hoje.”
Depois de escrever muito sobre política, Aquiles hoje
faz resenhas semanais de discos, tratando cada novato ou artista
superexperiente com muito carinho. Os textos são publicados em vários jornais e
se espalham fácil pela internet afora.
Dá uma trabalheira danada ao cantor-escritor, que vê
seu escritório atulhado de CDs, e passa horas ouvindo música para escolher o
tema da coluna da semana.
Enquanto ele ouve seus discos, a gente volta no tempo
para contar um pouco do início da jornada desse artista, que sempre teve sua
vida entremeada com a política e as lutas populares.
Aquiles nasceu em 1948 em Niterói, que então era
capital do Estado do Rio de Janeiro. A mãe era assistente social, o pai,
professor de português, e a família “respirava política”.
“Tudo começou com
o CPC, o Centro Popular de Cultura de Niterói, que foi criado na minha casa. O
CPC da UNE, que já existia, mandou um emissário, o ator Carlos Verezza, que foi
a Niterói para nos orientar como constituir o CPC de Niterói, para apresentar
os esquetes, apresentar as músicas, isso tudo foi feito na minha casa.
“Meu
pai e minha mãe convidaram uma série de pessoas, que fizeram parte do CPC
original. A essa altura, eu devia ter 15 anos, eu não me sensibilizava com
aquilo, apesar de ser feito na minha casa. Eu ficava no meu quarto. Eu não me
metia. E não serei capaz hoje de me lembrar o que fez me aproximar.”
Apesar dessa distância da gênese do grupinho
teatral-musical engajado, Aquiles não estava afastado da militância política,
como se vê nesta história:
“A primeira vez em
que eu fui preso foi antes do Golpe de 64, eu estava filiado ao Partidão
(Partido Comunista Brasileiro). Num lugar perto de Niterói, Cachoeira do
Macacu, houve uma invasão de terra. E me deram a tarefa – na época eu tinha uns
14, 15 anos— de ajudar a levar mantimentos.
“O pessoal do Sindicato dos Ferroviários, que era um sindicato muito ativo, muito forte, tinha feito uma assembleia para conseguir dinheiro para comprar gêneros de primeira necessidade, para levar para onde os caras estavam, tinham invadido, era São José da Boa Morte.
“Os ferroviários eram muito solidários. Eu fui com eles, a gente comprou saco de feijão, saco de arroz, saco de farinha. Enchemos um jipe de um dos caras e fomos para São José da Boa Morte. Chegamos lá, tinha gente para chuchu, famílias, crianças, velhos. Tinha assim, duas ou três lideranças, tinha um que era o líder geral, que encaminhava as discussões e que resolvia.
“Chegou a notícia que estavam vindo dois ônibus de Niterói com a Polícia Militar. Para desocupar. A Justiça tinha dado reintegração de posse.
“Começou aquela mobilização lá dos caras, esse líder principal afastou mulher, criança, idosos: “Vão embora. Vocês sabem como é que vai ser a chegada dos caras.” Foram embora. Ficou um pequeno grupo, e quem disse que eu vim embora? Com 15 anos, eu ia perder uma chance daquelas?
“Chegaram
os caras, a polícia, e vieram alguns à paisana. Cercaram os caras, o grupo
reduzido que ficou. Logo eles sacaram quem eram os líderes dos caras. Eram os
que respondiam. “E quem é aquele ali?”, perguntou um polícia. Era eu. “Vem cá,
vem cá.”. Eu fui. O cara com a arma desse tamanho na mão, “Como é seu nome?
Você estuda?”. “Estudo.”. “Aonde?”. Eu falei o nome do colégio. “E seu pai e
sua mãe sabem que você está aqui?”. Eu falei: “Sabem.”. “Como é o nome do seu
pai?” Eu falei: “Geraldo Reis.”. “É mesmo? Quer dizer que o velho Geraldo agora
não vem mais e manda o filho.”. Rapaz, aí meu sangue começou a ferver, e o
cara, o líder dos camponeses, Gabriel, eu me lembro bem porque a minha mãe
sempre se referia a ele como Anjo Gabriel, me segurou: “Calma, ele está
querendo isso, ele está te provocando.”.
A história segue. Aquiles e os líderes dos camponeses
foram levados para a delegacia de polícia local, para a cadeia. Mas estavam as
coisas se arrumando, a polícia começando a fazer as burocracias da detenção,
ouviu-se uma gritaria lá longe. Algum polícia foi ver o que acontecia e voltou
assustado, apavorado até: do alto do morro desciam os camponeses, homens,
mulheres e crianças, gritando e com suas ferramentas nas mãos. Vinham libertar
os presos, vinham para o que desse e viesse.
Não sobrou polícia na delegacia. Quando os campônios
chegaram foi só abrir as celas, soltar os companheiros. Aquiles não chegou
sequer a passar a noite na gaiola.
Se isso contribuiu ou não para mudanças na atitude do
garoto, o homem sessentão quase setentão não lembra nem afirma. Mas conta como
nasceu o MPB4.
“Eu aí me
aproximei do grupo, do CPC de Niterói, e tinha o Miltinho, que chegou também.
Não era para fazer grupo vocal, a gente funcionava mais como atores. Tinha
músicas, claro, mas aí todo mundo cantava. Era horrível, muito desafinado. Foi
aí, numa seleção quase natural, a gente foi pegando os que tinham um pouco mais
de afinação.
O MPB4 em 1966 |
“O Miltinho tocava violão. O Rui chegou, e o Rui já vinha com uma experiência de um trio de bolero. A gente fez um quarteto, eu, o Rui, o Miltinho e a Ana, que era uma menina que participava do CPC que tinha uma voz muito legal. A parte musical do CPC ficou a encargo desse quarteto do CPC.
“A
gente foi criando alguns repertórios fora da ideologia do CPC. O Miltinho na
época fazia faculdade de Engenharia, era colega de turma do Magro. E ele sabia
que o Magro era músico, o Magro tinha um conjunto de baile. O Magro tocava
vibrafone nesse conjunto. O
Miltinho convidou o Magro para ir assistir um ensaio. E o Magro, ao final do
ensaio, se ofereceu.
“A essa altura a gente tinha virado um trio do CPC. A Ana tinha outras coisas para fazer, tinha ficado só o trio. Aí o Magro se propôs a fazer um quarteto. A gente fez o quarteto. Isso foi 1963. A gente ficou como quarteto do CPC até o golpe de abril de 1964 –quando a gente não usou mais o nome. O CPC acabou. Queimaram a UNE.
“O Miltinho e o Magro, estudavam na Faculdade de Engenharia. O Rui já era formado, trabalhava. E eu estava fazendo o segundo grau. A gente ficava vendo, lá em Niterói, os programas de televisão, shows, principalmente o da Elis Regina e do Jair Rodrigues, que era O Fino da Bossa. Era o sonho de uns caipiras de Niterói.
“Resolvemos tentar. Em julho de 1965, férias, nós pegamos um ônibus e viemos para São Paulo. Rapidamente a gente conheceu o Chico de Assis, um teatrólogo, ele juntou, nos apresentou o Chico Buarque, o Quarteto em Cy. Junto com o Quarteto em Cy, ele elaborou um roteiro, que musical, sambas antigos. Muito legal. O Magro cuidava dos vocais.
“A gente já veio para São Paulo como MPB4. Na época, antes do golpe, o Miltinho e o Magro fizeram um conjunto instrumental na faculdade, e eles inventaram esse nome de MPB5. Quando a gente montou o quarteto, ficou o nome, MPB4. O Chico de Assis nos apresentou para os diretores de O Fino da Bossa, o Milton Travesso e o Manoel Carlos, nós estávamos num camarim, nós cantamos para os caras ouvirem.
“O Fino da Bossa, na época, era num auditório da Record, tinha uma primeira parte que não era gravada. Era só um show para quem estava na plateia. A segunda parte é que era gravada, com o mesmo público. Era gravada e ia ao ar. Então iniciantes, de um modo geral, cantavam na primeira parte.
“Os dois diretores ficaram muito empolgados com aquilo, se encantaram, e já nos escalaram na segunda parte, ia ser gravada para ir ao ar, em seguida. E nós cantamos até com a Elis Regina.
“Isso, para nós que vínhamos para tentar ver se conseguíamos, foi um deslumbre! Isso foi logo no início do mês de julho. E começou a surgir: “Agora vocês não querem fazer o programa da Hebe Camargo?”. Ou então: “Vamos gravar um programa de entrevista?” E a gente começava a ir nisso tudo, a essa altura a gente já tinha até um empresário, etava aparecendo para colocar a gente nos lugares. A gente dizia: “Até dia 31. Depois disso a gente volta.”.
“A gente fazia isso tudo, mas não tinha cachê. Não recebia dinheiro para isso. O dinheiro que a gente tinha trazido de Niterói já tinha acabado faz tempo. Na segunda noite já acabou o dinheiro. A gente fazia esses programas na Record, e em troca eles nos hospedavam no hotel, que na época era um máximo, que era o hotel Normandia. Ali na Ipiranga com a Santa Ifigênia. A gente ficava num “puta” hotel, sem ter dinheiro para almoçar e para jantar.
“A gente aproveitava, deixava para ir tomar café na última hora, comia bastante, pegava algumas coisas, tinham uns queijinhos, umas frutas, e levava. Foi um mês especialíssimo. De noite a gente passava fome, não tinha grana. Aí chega um amigo do Miltinho, que o Miltinho conhecia, o cara sacou que a gente estava meio a perigo e levou a gente para comer pizza. Que pizza maravilhosa! Que delícia!
“A
gente dizia: “Até dia 31.” Uma semana antes de acabar o mês, o empresário e o
próprio Chico de Assis nos deram uma prensa: “Não dá para ficar brincando de
ficar aparecendo na Record, aparecendo na Tupi. Isso vai acabar. Vocês decidem.
Ou a gente continua para fazer direito, ou vocês, por favor, comprem a passagem
de ônibus e vão embora.”. Nós passamos uma noite num botequim, na diagonal do
hotel. A gente passou a noite ali, bebendo para pensar no que ia fazer.
Decidimos ali, naquela noitada, que a gente queria fazer isso mesmo. Todo mundo
largaria o que tivesse fazendo, e assim foi.”
De fato. Apesar de problemas internos e das desgraças
da vida –a morte precoce do Magro-, o MPB4 fez um enorme sucesso, construiu uma
carreira honesta, combativa, apaixonada pela democracia, pelo Brasil e pela
música popular brasileira. Assim o grupo completou em 2015 cinquenta anos de
carreira, festejados com show e disco especiais.
Pedi a Aquiles que fizesse uma pequena lista com fatos
marcantes, bons e ruins, na carreira do grupo.
O AI-5, Ato Institucional Número Cinco, de dezembro de
1968, que marcou o acirramento da violência e da brutalidade da ação da
ditadura, foi a primeira lembrança ruim citada por Aquiles.
“Nossa cabeça
sempre teve muito a ver com política, inclusive por causa do nosso passado. Em
1968, quando teve o AI-5, a gente ficou na iminência de parar o grupo, porque
estava um clima... O Chico, no início
dos anos 1970, viajou para a Itália. O Caetano e o Gil foram expulsos, foram
para Londres. O próprio Edu Lobo... Houve uma revoada, e a gente, na condição
de intérprete, se sentia sem matéria-prima.
“Esse momento foi muito marcante, pelo recrudescimento da ditadura, e pela impossibilidade de conseguir música nova para seguir a carreira.
“Até que outro fato importante veio na sequência desse, foi quando a gente já pensando seriamente em acabar. Surgiu uma possibilidade de participação num festival universitário lá no Rio, com uma música de um compositor que hoje em dia acho que nem faz mais música. Sílvio Silva Junior. Com parceria com Aldir Blanc.
“Eles pediram que a gente defendesse a música deles, que era “Amigo É Para Essas Coisas”. Até hoje é um dos nossos carros-chefes. Ali naquele momento deu uma arribada de novo. O moral da tropa subiu.
“Outro momento importante foi em meados dos anos 1970, quando o Chico decidiu que não ia mais fazer shows.
“Aqui cabe um parêntese, a gente começou a trabalhar com o Chico desde a primeira apresentação dele, logo depois da “A Banda”, que ele ganhou. A gente fez, desde o primeiro show numa boate com ele lá no Rio, até depois, no circuito universitário. Por exigência dele, ele só fazia show se a gente estivesse junto. A gente dava um suporte, naquela época então ele tinha pânico de cena, uma coisa. Então ele se sentia respaldado não só musicalmente, mas até, sabe, a gente tinha uma ligação forte.
“Até que, em meados dos anos 1970, o Chico decidiu que não ia mais fazer show. A gente já tinha nossa vida profissional, decidimos seguir. Preparamos um texto, gente queria fazer um show em teatro, um show que tivesse texto. Comédia.
“A gente montou um espetáculo chamado “República do Peru”. Tratava de quatro caras que viviam num apartamento, e que tinha sempre uma entidade que vinha e dizia que ia levar esses quatro caras para fazer não sei o quê aonde. Foi, imagino eu, o princípio do que hoje se chama “besteirol”. Era uma comédia que juntamos nós quatro, mais o Chico, o Rui Guerra, cineasta, e o Antônio Pedro, ator.
“Nós conseguimos fazer dois shows nesse embalo, e aí a gente começou a ter problema com a censura. Esse show, o “República do Peru”, nós estreamos numa quarta-feira. Fazíamos de quarta a domingo.
“Na quarta-feira seguinte, quando a gente foi retomar a semana de shows, a censura fechou o teatro. Proibiu. Todo o território nacional não pode mais.
Lista de mortos e desaparecidos na ditadura, homenagem do MPB4 aos combatentes pela democracia no Brasil |
A gente ficou algumas semanas, alguns poucos meses tentando liberar a coisa. Nós fomos à Brasília. Eu me lembro do Rui indo à Brasília. Me lembro de nós dois na antessala do cara que mandava lá.
“A gente saiu de lá com o show liberado, a única coisa que eles quiseram, “Então você faz uma coisa, não chama ‘República do Peru’, chama ‘Rua República do Peru. Senão vocês vão me arrumar um problema internacional.”. “Tudo bem, vai ser ‘Rua República do Peru”. A gente fez. Foi muito sucesso. Ficamos todos muito contentes.”
A vida seguiu. A ditadura foi derrubada, começou a redemocratização no país. Aquiles e o MPB4 acompanharam o processo.
“A gente sempre foi muito político no palco. Não é à toa que os caras proibiam nosso show. Era muito atrevido. Quando veio a redemocratização, decidimos: “Vamos fazer um disco mais leve agora. Uma coisa que não tivesse tanta preocupação de estar indo de encontro aos caras, denunciando...”. E fizemos um disco que se chamou “Vira Virou”. Que, de fato, significou uma virada. A gente passou a encarar a música também como uma forma de distrair o público, de dar prazer às pessoas, de ouvir uma coisa bonita. Um vocal bem esquematizado. Esse disco deu uma presença muito boa para a gente. A gente começou a tocar no rádio, coisa que a gente já não tocava mais
O grupo também enfrentou uma grande tristeza, processos
definitivos.
“Um dos momentos
mais importantes para o MPB4 é recente, foi a morte do Magro. Foi quando eu e o
Miltinho –o Rui já tinha saído fazia tempo— conversamos depois do velório, a
gente não sabia exatamente o que ia fazer. Chegamos a cogitar não fazer mais
nada. A Mônica, viúva do Magro, nos falou ainda, não me lembro se foi um
pouquinho antes da cremação ou se já foi no final, “Ele queria muito que vocês
continuassem.”. Isso ficou na nossa cabeça.
“A
gente tinha um show uma semana depois, resolvemos continuar, até como uma
homenagem a ele, e a gente fala isso nos shows, para mostrar para todo mundo a
importância que o Magro teve na carreira profissional do MPB4. A presença do
Magro e a ausência do Magro foram duas coisas que marcaram. A gente traz isso
até hoje, nos cinquenta anos do grupo.”
Enquanto faziam música, cantavam em shows, produziam
discos, cada um levava sua vida. Aquiles está hoje no terceiro casamento, tem
cinco filhos, dois netos.
“As pessoas,
quando falam em separação, já se lembram logo do Vinícius fazendo folclore... Vinícius
dizia que para cada casamento que ele tinha ele comprava uma Barsa: “Vocês não
fazem ideia de quantas enciclopédias Barsas eu tenho.”
“Não
é assim. É muito sofrimento. Separação é uma coisa trágica. Eu não estou nem
entrando no mérito se o casal devia ou não devia. Quando chega a hora, seja lá
quem decidiu, foi um ou o outro. Ou se foi de comum acordo. Seja lá o que for,
é um sofrimento. É muito forte. Muito forte. Felizmente depois desse segundo
casamento, que nasceram os três, eu fiquei um tempo... Eu morava no Rio essa
época. Até que eu conheci a Nilza, nós temos a Isabel, que fez 13 anos agora. Nós
estamos juntos há vinte e poucos anos. Não desejo separação para o meu pior
inimigo.”
As separações e outras amarguras levaram tristeza a
Aquiles.
“Eu tive grandes
crises de depressão, crises brabas. Chegou um momento em que eu fazia cinco
sessões de terapia por semana. É uma coisa muito desgastante. Quando você está
na crise, é como entrar num lugar escuro, que você tem medo, não sabe onde você
está pisando. Você imagina que tem um buraco no lugar. São coisas que você não
consegue materializar, não consegue visualizar, mas que te incomodam.
“Sosseguei
minha cabeça e resolvi vir para São Paulo, morar com a Nilza. Eu consegui
nesses anos alguns mecanismos de defesa para perceber a hora que baixa a
depressão. Tem momentos que parece que a depressão é muito forte. Você não
identifica como começou, de onde vem. Às vezes é alguma coisa besta.”
Ao lado da análise e dos remédios, da escrita e da
música, Aquiles também caminha.
“Desde que eu
morava no Rio eu gostava de andar. Logo que eu comecei a cantar eu tinha um
apartamento em Ipanema. Eu andava até o Arpoador, depois vinha e andava até o
canal do Jardim de Alá, que é o final de Ipanema. Depois eu me mudei para o
Leblon. Aí eu andava pela areia... Depois eu me mudei para o Jardim Botânico.
Aí eu andava em volta da lagoa Rodrigo de Freitas.
“Dá um distanciamento, a gente fica meio aéreo, o pensamento vai embora. Não tem um assunto que seja constante. Uma coisa que passa na cabeça e vai. Eu não paro. Caminhando. Mas eu não me desligo completamente. Isso é uma coisa que eu acho muito prazeirosa. Se desligar.”
No final do ano passado, porém, as caminhadas se transformaram em dor: “O meu pé doía muito, pé esquerdo doía na sola do calcanhar. Às vezes doía do lado. Mas doía muito. Eu andava mancando.”
O pé de uma perna muito “judiada”, como diz Aquiles, lembrando que a perna sofre desde que ele era garoto...
“Aos seis, sete anos de idade, quebrei o braço em uma queda na fazenda de meu avô, no norte de Minas. Foi fratura exposta, eu caí num curral. Subi, pulei do alto da cerca do curral, caí em cima da bosta, e o médico da cidade, lá do interior, não fez a assepsia, a limpeza que teria de ser feita. Aí me trouxeram correndo para a cidade, eu cheguei ao hospital já em choque em choque, infecção generalizada.
“Eu
tive uma gangrena brutal. Foi um momento difícil também para os meus pais,
porque eles tiveram que optar entre amputar, fazer uma prótese, ou deixar. Várias
operações. A gangrena elimina o osso, cartilagem, tudo. Eu perdi o movimento do
braço. Os médicos tiraram um pedaço do perônio (osso) da perna esquerda e
botaram no braço, não deu certo. Anos mais tarde, jogando futebol, rompi os ligamentos
do tornozelo e fraturei de novo o perônio...”
As caminhadas fizeram falta.
“Se eu parar de
fazer exercício e ficar muito sedentário, eu engordo. Chegou uma época, uns dois anos atrás, três
anos atrás, eu cheguei a ter 93 quilos. Encarei de novo caminhada, e tentei uma
mudança alimentar, voltei para 85. Agora, sem as caminhadas, já devo estar
chegando nos 90 de novo. E agora com essa dificuldade.
“Quando
você faz exercício, você se sente saudável. Eu me sentia saudável. Quando eu
chegava de uma caminhada, tomava um banho, eu me sentia bem. Não só ficar bem fisicamente,
é você sentir que você está se cuidando. Ou seja, é aquela velha história,
gostando um pouco mais de você mesmo. Quando você não gosta de você, não faz
porra nenhuma.”
De minha parte, espero que o Aquiles continue gostando
muito dele mesmo, cantando bastante, escrevendo bastante e caminhando bastante.
Dias antes de finalmente publicar este texto, baseado
em entrevista que fiz com ele no início de dezembro do ano passado, voltei a
conversar com Aquiles, que me deu ótimas notícias: as dores no pé tinham
passado, e ele estava novamente fazendo suas caminhadas.
Mais, muito mais: ele estava metido até o último fio de
cabelo da montagem e nos ensaios de um novo show do MPB, “Você corta um verso,
eu escrevo outro”, que estrearia em São Paulo no início deste mês.
Foram apenas duas apresentações no primeiro fim de
semana de maio. Que apresentações!!! Maravilhosas, emocionantes, deliciosas.
Só música boa, cada uma recheada de história, cada nota
um libelo pela liberdade, contra a censura, o arrocho, as arbitrariedades, a
ditadura –a de 1964 e a que tenta se instalar no país depois do golpe
jurídico-parlamentar –midiático.
Chorei no início, chorei no meio, chorei no fim, prenhe
de lembranças de minha vida e da vida do Brasil. E chorei o tempo todo em que o
MPB4 e Bárbara Rodrix fizeram o bis, cantando “O Bêbado e a Equlibrista” emoldurados
por sucessão de imagens dos duros tempos da ditadura, dos tempos gloriosos de
resistência e de conquista (ASSISTA CLICANDO AQUI).
Tinha de terminar como terminou, um hino de luta, de
rebeldia, de revolta, um grito de guerra: “FORA, TEMER!!!”
VAMO QUE VAMO!!!
Percurso realizado no dia 12 de maio de 2017
17,24 quilômetros em 2h47min09
Acumulado no projeto 60M60A
1.072,40 quilômetros percorridos em 190h34min18
PS.: No dia em que fiz a entrevista em que baseie esta
reportagem, em dezembro do ano passado, também gravei um pequeno vídeo com
depoimento de Aquiles sobre outro assunto de interesse deste blogueiro: o
envelhecimento.
Um dia mostro o vídeo inteiro; agora, fica aqui apenas um
trechinho das reflexões de Aquiles sobre a terceira idade. Resumo da ópera: “Aproveite
a vida, amigo!”
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