Catador de milho.
Não se trata de nobre profissão ligada às lides agrícolas,
muito menos atividade do ramo da culinária. É tão somente apelido pejorativo, gravado
em tom de deboche por experientes datilógrafos nos novatos, inexperientes e
incompetentes no trato das máquinas de escrever.
São conceitos, profissões, alcunhas e equipamentos, todos
eles, do século passado. Merecem explicação.
As máquinas de escrever, diz o noticiário internacional,
continuaram no mercado até o início desta década. Em abril de 2011, a empresa
indiana Godrej and Boyce encerrou a produção do equipamento –era, ao que se
sabe, a última fabricante de máquinas de escrever ainda ativa no mundo.
A decadência viera a cavalo. Desde muitos anos antes a venda
do produto era decadente. Por volta de 2008, nenhum dos repórteres que eu
comandava, na redação do caderno Informática, da “Folha de S. Paulo”, jamais
havia usado uma máquina de escrever.
Perderam (acho).
A máquina de escrever era uma obra de arte. Os conceitos que
permitiram sua construção datam do século 18, mas muito antes, em 1575, um tipógrafo
italiano, Francesco Rampazzetto, já inventara um equipamento para imprimir
letras em papel.
O equipamento que chegou ao século 20, porém, é fruto de
evolução ocorrida ao longo do século anterior, quando muitos inventores criaram
modelos os mais diversos. Até um brasileiro entrou na dança, o padre paraibano
Francisco João de Azevedo, que apresentou seu invento em exposições em
Pernambuco e no Rio, em 1861, sendo premiado pelo imperador dom Pedro Segundo.
As primeiras fábricas são da segunda metade do século 19.
Quando chegou o novo século, os escritórios mais modernos já contavam com
máquinas reluzentes, produzidas em ferro.
A estrutura básica ficou sempre a mesma: um rolo por onde
rodava o papel, uma fita de impressão movida por roldanas e um teclado que
comandava as teclas em cuja ponta estavam colocadas as letras. Quando a tecla
batia na fita, deixava impresso no papel a letra desejada.
O processo de escrever era muito barulhento. Girar o rolo
por onde passava o papel, para que ele subisse e pudesse uma nova linha ser
escrita, produzia o clec-clang das engrenagens; havia uma campainha que avisava
que tinha terminado a linha. E, sobre tudo isso, como uma nuvem sonora, reinava
o tec-tec-tec nas teclas batendo no papel, impacto só um pouquinho, um tantinho
apenas diminuído pela fita tintada, que podia ser preta, vermelha ou preta e
vermelha.
Teclado lembra o da máquina de meu avô |
Meu avô Ary, o único que conheci, tinha em seu escritório,
na casa mesmo em que morava, uma enorme máquina de escrever. Preta, toda preta –quase
toda: as teclas, redondas, em baixo relevo, tinham fundo verde escuro onde era
escrita em branco (ou bege ou gelo, qualquer coisa meio desmaiada) a letra em
questão.
Nunca usei a máquina de meu avô, que eu saiba. A primeira
que usei foi a de meu pai, vários anos depois.
Era um modelo bem mais moderno, ainda que também todo feito
em ferro. Clara, em tons de bege e marrom claro, ficava montada sobre um
estrutura feita –hoje imagino eu—de grosso
papelão e couro de ótima qualidade. Tinha tampa também de couro, tudo de um
laranja escuro bem elegante; quando fechado, o conjunto se assemelhava a uma
maleta de boas proporções. A máquina era portátil.
Máquina semelhante à de meu pai |
Foi nela que escrevi meus primeiros contos. Foi nela que
produzi meu primeiro livro. Foi nela que treinei aloucadamente datilografia
para enfrentar um concurso para o que seria meu primeiro emprego de carteira
assinada, em meios de minha adolescência.
Precisava treinar mesmo, porque datilografia era uma arte,
uma técnica, uma habilidade muito prezada nos escritórios de então. Secretárias
da diretoria deveriam ser “exímias datilógrafas”; mesmo para vagas muito
subalternas, como a de auxiliar, que eu pretendia, havia exigência de
desempenho e produção.
Pois datilografar não significa apenas grafar com os dedos,
como indica a etimologia da palavra. Há muito mais. Envolve especialmente a
capacidade de copiar textos batucando no teclado com os dez dedos, sem olhar as
teclas ou o papel em que o artigo está sendo impresso.
A habilidade se desenvolvia por ensaio e erro, repetição em
cima de repetição, memorização completa e absoluta do posicionamento de cada
letra no teclado. A memória da letra ficava na ponta dos dedos, talvez.
Um bom datilógrafo escrevia um ditado no escuro ou de olhos
fechados.
Havia cursos, aulas especiais para ensinar a arte. Mas eram
caros, assim como os ensinamentos por correspondência, comuns na segunda metade
do século passado. Se nem isso fosse possível, manuais baratinhos garantiam
que, com persistência, qualquer um aprenderia o riscado.
Eu não.
Tentei muitas vezes, usando livrinhos ensebados como
orientação. Olhe apenas o texto a ser copiado, não desvie os olhos para o
teclado, deixe as mãos pousadas acima das teclas, soltas, pairando no ar,
enquanto os dedos se movimentam...
Nada disso funcionava comigo. De tanto tentar, pelo menos
memorizei a posição das teclas. Mas jamais consegui imprimir o “A” com a mesma intensidade,
força e cor do “S”. Para acionar a primeira tecla, era preciso usar o mindinho
da mão esquerda; para o “S”, o forte indicador dava verdadeiro coice na tecla,
repetido em seguida no “G” das primeiras lições, que envolviam escrever vezes
sem conta a maldita sequência ASDF e, na evolução, ASDFG. Com a mão direita,
fazia-se ÇLKJ e, depois, ÇLKJH. Na evolução dos exercícios, era preciso
alternar as sequências na mesma linha, produzindo blocos e blocos de ASDFG
ÇLKJH.
Algumas letras nem sequer eram impressas, nas minhas
tentativas. Outras ficavam fortes demais. Muitas vezes, me esquecia de acionar
a barra de espaços, o que deveria ser feito com o dedão, ora o da mão direita, ora
o da esquerda.
Com o que me tornei catador de milho, ou seja, o sujeito
que, incapaz de usar os dez dedos das mãos para comandar o teclado, emprega
apenas o indicador da mão direita e faz uso da esquerda somente para apoio –troca
de linha, acionamento da maiúscula e outras particularidades.
Cartuns da época, que reverberavam o termo pejorativo,
mostravam o catador de milho como uma espécie de deficiente mental, deficiente
motor ou sei lá que mais. Vem-me à memória ilustração ou desenho animado em que um sujeito de olhos revirados, cabeça
girada para um lado, babão, tenta acionar uma tecla com um indicador em riste.
Enfim, o complemento do perfil de um débil mental seria a inabilidade para
acionar o teclado da máquina de escrever ... Dã!
Descobri que usar os dois indicadores não era boa prática. O
resto da mão ficava pesando do lado e havia pouca agilidade dos movimentos. Aos
poucos, fui acrescentando à dedografia o “pai de todos”, batucando
alternadamente com um e outro, usando as mãos esquerda e direita com algum grau
de agilidade.
Claro que tinha (tenho) de ficar sempre olhando o teclado,
conferindo de vez em quando se aquilo que eu havia datilografado (ou pensado
que tinha datilografado) era exatamente o o que havia sido impresso no papel em
frente. Se fosse para copiar algum documento, sai de baixo, tinha de ficar
olhando para o original, olhando para o teclado e olhando para o papel na
máquina!!!.
Mas dava certo. Tanto é que passei com alguma facilidade
pelo tal teste para me tornar auxiliar de escritório em um banco de Porto
Alegre. Era preciso datilografar a um ritmo de 160 toques por minuto; minha
média, se bem me lembro, estava em 180. Melhor do que nada para um dedógrafo
catador de milho.
O emprego no banco não durou quase nada, três dias apenas
entre o registro da admissão e minha carta de demissão, mas segui escrevendo à
máquina, usando a máquina de escrever com habilidade crescente. Nunca cheguei a
ser exímio datilógrafo (ou digitador, nos termos informáticos de hoje), mas
ganhei capacidade mais do que suficiente para não ser chamado de catador de
milho.
Escrevi em dezenas de máquinas diferentes, conheci os primeiros
teclados dos primeiros terminais de computador a funcionar no Brasil,
experimentei teclas de plástico e de baquelite, de computadores portáteis e de
equipamentos de mesa, as minúsculas teclinhas malditas dos primeiros telefones
com teclado e os teclados virtuais que aparecem nos brilhantes vidros (telas)
sensíveis ao toque de nossos laptops, tabuletas eletrônicas e telefones
celulares.
Agora mudou tudo. Um tombo na manhã da última quinta-feira machucou
profundamente minha mão, esmigalhou a base de um dedo por quem tinha grande
simpatia e ainda provocou fartura no cotovelo, reduzindo minhas forças e a capacidade
de movimentação do braço direito.
Pelo que me lembro, foi assim: eu tinha acabado de completar
dez quilômetros de um treino em que deveria inteirar vinte e sete quilômetros,
na minha busca de sexagenário para completar, ao longo deste ano, distância
equivalente à de sessenta maratonas somadas todas elas e transformados em um
pacote só.
O treino, como todos os outros que venho fazendo desde que
sofri uma fratura por estresse no joelho direito, era aos soluços: corrida
oitocentos metros, caminhava duzentos metros, corria de novo, caminhava
novamente e assim por diante. Seriam 25 blocos dessa sequência, mais um
quilômetro caminhado antes e outro depois.
Era para ser um treino de 27 quilômetros; o tombo atoru a distância para apenas dez quilômetros e trezentos metros |
É um exercício de paciência, um teste de concentração, mas
dificulta chegar àquele estágio gostoso dos treinos longos, em que o pensamento
viaja, e o corpo parece imune às vicissitudes da vida.
Apesar disso, eu conseguia deixar a mente livre dos
problemas do dia a dia, da velhice, do viver. Ficava contando quilômetros,
sentia que estava mais rápido do que em treino anterior, começava a calcular em
quanto tempo completaria o treino, sonhava com reconhecimento de meu esforço,
imaginava que conseguiria, enfim, patrocínio ou, pelo menos, apoio que tornasse
menos custosa a trajetória até o final deste ano.
Completei o décimo quilômetro em sete minutos e cinquenta e
um segundos. A mim, pareceria que eu estava acelerando sempre –noto agora,
porém, ao revisitar o mapa de desenho produzido pelo relógio com GPS, que foi
aquele exatamente o quilômetro mais lerdo de todo o treino.
Não era a sensação que tinha. Ao contrário, me imaginava
melhorando tempos, completando mo treino todo com vantagem, talvez, de mais de
cinco minutos em relação à ultima experiência em distância semelhante.
Não quer dizer nada, ninguém ganha nada com isso e está
longe de ser um assombro, mas significa que alguma coisa certa estou fazendo ao
longo dessa minha preparação. É uma preparação, de certa forma, sui generis,
pois não tenho por objetivo alcançar um tempo, quero apenas continuar correndo
e, se possível, aumentando a quilometragem sem me machucar. Assim, eu me
preparo para estar preparado e fico preparado para me preparar.
Preciso treinar. Meu corpo nunca foi e nunca será o de um
atleta; nasci para ler, escrever, ficar atirado num sofá vendo televisão e
comendo batatas fritas.
Bueno. Não costumo comer batatas fritas, não vejo televisão
e, de certa forma, ainda que com muitas limitações, sou um atleta. Velho,
cansado, machucado, mas construindo um caminho, mesmo torto e nem sempre
elegante.
Assim é que, pouco depois do décimo quilômetro de corrida na
manhã daquela quinta-feira fria, que tinha começado com grande nebulosidade,
uma cerração firme mais comum em dias invernais, eu me sentia satisfeito, tinha
a mente limpa e parecia até veloz.
Para melhorar as coisas, atravessei a rua Doutor Pinto Ferraz,
que foi um professor de direito, para chegar a um raro quarteirão largo da rua
Domingos de Morais, que presidiu a Companhia de Bondes de São Paulo no final do
século dezenove. Não só largo como também razoavelmente vazio...
Mesmo com a mente à voltas com cálculos de tempo e sonhos de
patrocínio, percebi que havia ali uma janela de oportunidade para a velocidade.
Acelerei, movi as pernas mais rapidamente, inclinei um pouco mais o corpo para
a frente.
E tropecei. E caí.
Do jeito que vinha, não deu tempo nem para me proteger na
queda. Vi o chão chegar e percebi que ia bater de cara no concreto. Ainda pude
notar o desvão no cimento que interrompeu minha caminhada, ainda deu para mexer
o corpo de jeito tal que não sei qual.
Senti a cabeça, de lado, encostar no chão, no cimento, ralar
o concreto. Desmaiei, talvez, imagino, por alguns décimos, centésimos de
segundo... Se não desmaiado, com certeza imóvel, talvez tentando perceber e
avaliar o grau do estrago.
De cada lado, alguém pegou meus ombros, começaram a me
ajudar a me virar, a me levantar. Consegui dizer: “Quebrei o braço!”, e foi só,
estava absolutamente sem saber o que fazer.
Perguntei a um dos homens que me ajudaram se havia sangue na
minha cabeça, no meu rosto. Nada, me disseram, e ainda perguntaram se eu precisava
de ajuda. Agradeci, disse que não. E então, só então vi minha mão direita.
O dedo anular tinha saltado, se transformado em ponte sobre
o “pai de todos”, numa versão aterrorizante de dedos cruzados –no passado,
entrelaçar os dedos significava ficar liberado de um juramento ou que se estava
dizendo uma mentira, com pleno conhecimento do fato, mas perdoado pelos poderes
do universo graças ao tal sinal.
Essa espécie de figa protetora, usada pelos primeiros
cristãos como forma de fazer uma cruz sem atrair a atenção de perseguidores de
sua fé, porém, era sempre construída com o indicador e o “pai de todos”, o dedo
médio, nunca com o coitado do anular, cujos ligamentos tinham sido arrebentados
na queda, assim como fora sua base fraturada em três pontos.
Na hora, não percebi; mais tarde, porém, dores no braço e no
antebraço indicaram outra vítima do tombo: também o úmero tinha sofrido
fratura, na ânsia do corpo de evitar choque mais desagradável entre a cabeça e
o chão.
Rale o joelho, as mãos, havia sangue por tudo, mas não
jorrando: arranhões grandes, vermelhos.
Consegui reunir bom senso que chega para ligar para um
médico, o ortopedista maratonista que me acompanha há vários anos. O melhor
mesmo era seguir para o pronto-socorro e cuidar logo do prejuízo para depois
ver o que poderia ser feito.
No final das contas, não houve quase nada a ser feito. A
fratura no braço era “boa”, não precisava nem sequer de imobilização, haveria
de colar por si provavelmente na posição correta. É ela, porém, a que mais
dores provoca, pois o braço está sem forças. Consigo levantar uma xícara, mas
não um prato.
O dedo, porém, era outra história. A articulação havia sido
atingida, queriam operar o quanto antes, o melhor seria ali mesmo, na hora.
Calma, cocada. Cirurgia não é assim coisa que se faz a
qualquer momento, sem pensar, sem refletir, apenas porque parece ser o mais
indicado para o ferimento. Pode não ser o mais indicado ou o desejado pelo
ferido.
Vai daí que, conversa vai, conversa vem, noves fora, optei
por deixar tudo nãos da natureza. Dando-lhe alguma ajudinha, mas nada muito
dramático nem drástico.
Por isso, estou com a mão parcialmente presa por uma órtese
que mantém meu dedo anular direito no lugar desejado pelos médicos, sem pender
loucamente mão abaixo, mas também se ter tido a articulação consertada, coisa
que envolveria placa, fios de arame e outras alquimias e arquiteturas que
provocariam muitas atribulação ao corpo velho e cansado.
Posso correr com a órtese, que é uma espécie de tala mais
moderna, mais leve, mais elegante. Posso tomar banho com ela e tenho a mão
capaz de fazer muitas coisas, assim como impossibilitada de fazer outras tantas.
Digitar com elegância, por exemplo, está fora de cogitação.
Nos primeiros dias em que tentei batucar no teclado,
experimentei fazê-lo com o indicador, apontando a mão para baixo, deixando o
indicador apoiado no dedão. Não havia dor, nem sempre, pelo menos, mas também
não havia muita produtividade.
Eu estava catando milho, tinha de novo virado catador de
milho, como vozes pouco gentis se fizeram ouvir na minha memória, na minha
mente, nas imagens de tempos passados.
Catar milho, nos teclados de hoje, é ainda mais problemático
por causa da alta sensibilidade das teclas. A gente batuca com o indicador na
tecla certa, mas, ao mesmo tempo, de forma solerte, o resto da mão esbarra em
teclas outras, provocando erros e
confusões, atrasos e demora.
A mão direita, então, é vítima ainda maior, pois carrega o
artefato de plástico moldável, uma peça agora rígida em azul royal, presa à mão
por simples pressão, garantida por atilhos de velcro vermelho.
Consigo agora, depois de alguns dias de experimentação, usar
os dedos médios para digitar, não mais catar milho. Há sempre dores, por que o
movimento dos braços aciona músculos e tendões endurecidos e amarfanhados,
ainda sofrendo os efeitos do trauma ou, talvez, de alguma forma maltratados
pela lesão na cabeça do úmero.
Não sei. O que sei é que estou de pé. Tenho a mão inchada, o
dedo anular preso e amarrado a ele o mindinho. Há dores que vêm e vão, há dores
que ficam, não saem. Não é a pior situação do mundo, mas também não é a melhor.
Não paro de correr.
O acidente foi na quinta-feira, eu adiantei o longão de
sábado, pois no sábado tinha compromisso, iria ouvir a fala inspirada de Pepe
Mujica, o legendário ex-presidente do Uruguai.
Pois no domingo já corri cinco quilômetros, na segunda
caminhei dez quilômetros e hoje fiz um treino de onze quilômetros.
Estou um pouco abatido. Sinto cansaço.
Azar. Parafraseando o poeta, digo que ainda tenho a corrida
e o sentimento do mundo.
VAMO QUE VAMO!!!
Percurso de nove de maio de 2017
11,37 quilômetros percorridos em 1h42min14
Acumulado no projeto 60M60A
1.055,16 quilômetros percorridos em 187h47min09
Belo texto. Desejo prontas melhoras e vamo que vamo.
ReplyDeleteOnde você comprou esta órtese?
ReplyDelete