Julho
de 1969.
No dia 20, a Lua foi conquistada. “Um pequeno passo para o homem, um
grande salto para a humanidade”, disse o astronauta Neil Armstrong.
Uma
semana depois, no dia 26, no Brasil, outro homem construía outra grande frase,
definidora de vida:
“Vivo falando de vocês com meus companheiros, eles estão longe dos filhos também e falam nos filhos deles. Um só é o desejo de todos nós, é que nossos filhos sejam revolucionários. O que é um revolucionário? É toda a pessoa que ama todos os povos, ama a Humanidade, tem uma imensa capacidade de amar, ama a justiça, a igualdade.”
Esse é um trecho da carta que Carlos Lamarca, um
dos mais importantes –se não o mais importante— comandantes da resistência
armada à ditadura, escreveu para seus filhos, Cesar e Claudia.
O “Capitão da Guerrilha” foi assassinado em 17
de setembro de 1971 por integrantes da “Operação Pajuçara”, em Ipupiara, no
interior da Bahia. O site “Memória da Ditadura” conta que a operação, iniciada
em agosto de 1971, “entrou para a história como uma das mais violentas,
sobretudo em Buritis, que se tornou à época um verdadeiro campo de
concentração, com torturas e assassinatos em praça pública, diante da população”.
No último dia 17 de setembro, portanto,
completaram-se 45 anos da morte do líder guerrilheiro, pensador revolucionário,
homem apaixonado. Resolvi fazer uma homenagem à memória do comandante
realizando em São Paulo a Primeira Corrida Carlos Lamarca.
Dezenas de pessoas manifestaram interesse no
evento que criei em uma rede social, um treino livre chamado Primeira Corrida
Coronel Carlos Lamarca.
Opa, peraí, é capitão ou é coronel?
Em 2007, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça concedeu a patente de coronel do Exército a Carlos Lamarca e o status de perseguidos políticos à sua primeira esposa, Maria Pavan Lamarca, e a seus dois filhos, que passaram a ter direito a pensão e indenização.
O problema é que viúvos da ditadura, raivosos,
entraram na Justiça contra a decisão. O ato da Comissão de Anistia foi
revogado, depois voltou a valer; a última notícia que vi, de maio do ano
passado, dava conta de nova revogação da reparação a Lamarca e seus
descendentes.
A sentença judicial contém esta inacreditável frase: "Considerando os termos do artigo 8º do ADCT/88, não se vê direito ao regime de anistiado apenas e tão somente pelo fato de determinada pessoa ter sofrido, ainda que em razão de opção política, injusta e danosa perseguição estatal".
A sentença judicial contém esta inacreditável frase: "Considerando os termos do artigo 8º do ADCT/88, não se vê direito ao regime de anistiado apenas e tão somente pelo fato de determinada pessoa ter sofrido, ainda que em razão de opção política, injusta e danosa perseguição estatal".
O Ministério da Justiça, porém, contestou a
decisão: “A anistia a Carlos
Lamarca, seus dois filhos e sua esposa constitui-se em ato oficial do Estado
brasileiro, após rigoroso processo administrativo que também levou em conta
decisões judiciais, está integralmente amparada pelo artigo 8º do ADCT da
Constituição da Republica de 1988 e pela sua regulamentação na Lei 10.559/02".
Independentemente de recursos e contestações na Justiça, o Brasil
reconhece sua dívida para com Lamarca, homenageado hoje em pelo menos 25 praças
e ruas pelo Brasil afora, nomes de escola e outras lembranças.
A nossa, de maratonista, foi uma corrida.
O percurso seria um mergulho na história, indo até o quartel de Quitaúna, em Osasco, onde Lamarca serviu e de onde partiu, em 24 de janeiro de 1969, para se tornar herói nacional.
Para completar o dia, teríamos uma roda de conversa com o jornalista e
professor Antonio Roberto Espinosa, que foi companheiro de Lamarca na VPR e
iria contar sobre o momentoso episódio da saída do capitão.
A data marcada foi 25 de setembro, uma semana depois do aniversário de
45 anos da morte do comandante da guerrilha.
O domingo nasceu frio, úmido, ventoso.
De vez em quando, uma chuvinha fina tornava o dia ainda mais cinzento, chatonildo.
Quando cheguei ao ponto marcado para o encontro, tinha certeza de que
nenhum dos dez “confirmados” para a corrida viria.
Decidi, de qualquer forma, esperar até as sete horas para iniciar minha jornada.
Decidi, de qualquer forma, esperar até as sete horas para iniciar minha jornada.
Faltando cinco minutos para a partida, porém, notei com alegria uma
figura se movendo entre as barracas da feira livre instalada na rua Oscar
Freira, próximo à saída da estação Sumaré do metrô.
Claramente, procurava alguém. Para, uma certeza: teria pelo menos um
parceiro na Primeira Corrida Carlos Lamarca.
E que parceiro: para um mergulho na memória, um corredor vindo do
passado.
Tratava-se de Jopa Saboia Fiúza, que fora professor de educação física de minhas filhas no colégio Logos, no final do século passado.
Tratava-se de Jopa Saboia Fiúza, que fora professor de educação física de minhas filhas no colégio Logos, no final do século passado.
Cerca de 20 anos mais tarde, voltamos a nos encontrar nas ruas de São Paulo,
nas manifestações de protesto contra o golpe, em defesa da democracia no
Brasil.
Agora, ele estava ali para participar de um trajeto de dezoito
quilômetros. Apesar de dedicado às lides da educação física e de ter sido na
juventude, jogador profissional de vôlei, Jopa não corre nem faz outros treinos
regulares.
Mesmo assim, na flor de seus 50 anos e vindo de uma balada que só terminara pelas três da manhã, queria correr. Mais: queria marcar sua homenagem a Lamarca, defensor da Pátria e da democracia no Brasil.
E assim nos fomos, ele e eu, descendo dos altos do Sumaré –é uma franja do chamado “espigão da Paulista”, estamos ali a mais de 800 metros acima do nível do mar— para a beira do rio Tietê. Depois, subiríamos os morros de Osasco e mergulharíamos até os trilhos do trem que margeiam as instalações do Exército.
Mesmo assim, na flor de seus 50 anos e vindo de uma balada que só terminara pelas três da manhã, queria correr. Mais: queria marcar sua homenagem a Lamarca, defensor da Pátria e da democracia no Brasil.
E assim nos fomos, ele e eu, descendo dos altos do Sumaré –é uma franja do chamado “espigão da Paulista”, estamos ali a mais de 800 metros acima do nível do mar— para a beira do rio Tietê. Depois, subiríamos os morros de Osasco e mergulharíamos até os trilhos do trem que margeiam as instalações do Exército.
Jopa não só não estava treinado como também enfrenta hérnias dolorosas;
pelo meu lado, tenho mais lesões que gosto de contar. Então fomos os dois com
cuidado, descendo as lombas mais fortes no passado, aproveitando ondulações
mais leves para trotar.
Quando parávamos para tomar água e repor as energias, o ventinho gelado dava para assustar. O jeito era retomar a jornada correndo um pouquinho mais forte até esquentar, entrando depois em ritmo de cruzeiro.
Quando parávamos para tomar água e repor as energias, o ventinho gelado dava para assustar. O jeito era retomar a jornada correndo um pouquinho mais forte até esquentar, entrando depois em ritmo de cruzeiro.
Conversando sobre a vida, chegamos enfim à estação de trem de Quitaúna
e, poucos metros depois, à boca das instalações militares que um dia abrigaram
o quarto erre-í (quarto regimento de infantaria, 4º RI); hoje o nome é outro,
mas a memória de Lamarca lá continua.
Encontramos ali o professor Espinosa e outros companheiros que não puderam participar da corrida, mas que também queriam fazer sua homenagem a Lamarca.
Para marcar o momento, vestimos ali nossas camisetas da Primeira Corrida Carlos Lamarca –arte gentilmente criada pela designer Joana Brasileiro. Simbolicamente, levamos o capitão de volta a seu quartel.
Encontramos ali o professor Espinosa e outros companheiros que não puderam participar da corrida, mas que também queriam fazer sua homenagem a Lamarca.
Para marcar o momento, vestimos ali nossas camisetas da Primeira Corrida Carlos Lamarca –arte gentilmente criada pela designer Joana Brasileiro. Simbolicamente, levamos o capitão de volta a seu quartel.
Estava encerrada a corrida, mas não nossa jornada. O bate-papo com
Espinosa foi inesquecível. Não só nos contou detalhes da saída do quartel como
também lembrou outros momentos da vida de Lamarca. E nos revelou até que, antes
de conhecer o capitão, tinha chegado a propor a execução de Lamarca, que
considerava “inimigo do povo”.
Aos 70 anos, doutor em política internacional,
Antonio Roberto Espinosa é professor da Escola Paulista de
Política, Economia e Negócios no campus Osasco da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp).
Osasquense de berço, o professor e
jornalista foi um dos comandantes das organizações armadas de combate à
ditadura militar VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e VAR-Palmares (Vanguarda
Armada Revolucionária Palmares).
E é um grande contador de histórias, de fala pausada e narração detalhista. A partir de agora, acompanhe um pouco do que ele nos contou sobre alguns momentos da vida de Lamarca e de sua própria militância.
E é um grande contador de histórias, de fala pausada e narração detalhista. A partir de agora, acompanhe um pouco do que ele nos contou sobre alguns momentos da vida de Lamarca e de sua própria militância.
A TOMADA DO QUARTEL – O PLANEJAMENTO
“O quartel de Quitaúna seria tomado no dia 26 de janeiro de 1969. A ação
estava todinha preparada, iriam participar 43 companheiros.
Era um domingo, dia em que o quartel estava com menos gente dentro. Mais: dependendo do comandante da guarda, os soldados ficavam com o fuzil, mas sem munição. Nesse dia, o comandante da guarda, que é quem controla toda a segurança do prédio, seria o Darci Rodrigues, sargento, também ligado com a gente, da VPR.
O Darci, na hora marcada, estaria junto com o sentinela no portão. Nós iríamos trazer um caminhão pintado com as cores do Exército, e o caminhão iria passar por todas as companhias e arrecadar todas as armas. No Paiol, na Companhia do Lamarca e mais uma Companhia, eram cinco companhias no total, as armas já estariam ensacadas. Estavam preparadas pelo grupo que nós tínhamos no quartel, que eram os soldados que moravam aqui pertinho, neste bairro em que estamos agora.
A ação foi preparada durante dois meses e meio a três meses. Todos os pormenores da ação, a sequência, tudo isso estava previsto no papel. Estava planejado. A ação duraria mais ou menos 40, 45 minutos.
O caminhão sairia levando todas essas armas do quartel, e essas armas seriam transferidas para quatro Kombis, que seriam levadas para diferentes pontos, e o caminhão seria explodido.
Era um domingo, dia em que o quartel estava com menos gente dentro. Mais: dependendo do comandante da guarda, os soldados ficavam com o fuzil, mas sem munição. Nesse dia, o comandante da guarda, que é quem controla toda a segurança do prédio, seria o Darci Rodrigues, sargento, também ligado com a gente, da VPR.
O Darci, na hora marcada, estaria junto com o sentinela no portão. Nós iríamos trazer um caminhão pintado com as cores do Exército, e o caminhão iria passar por todas as companhias e arrecadar todas as armas. No Paiol, na Companhia do Lamarca e mais uma Companhia, eram cinco companhias no total, as armas já estariam ensacadas. Estavam preparadas pelo grupo que nós tínhamos no quartel, que eram os soldados que moravam aqui pertinho, neste bairro em que estamos agora.
A ação foi preparada durante dois meses e meio a três meses. Todos os pormenores da ação, a sequência, tudo isso estava previsto no papel. Estava planejado. A ação duraria mais ou menos 40, 45 minutos.
O caminhão sairia levando todas essas armas do quartel, e essas armas seriam transferidas para quatro Kombis, que seriam levadas para diferentes pontos, e o caminhão seria explodido.
No
mesmo dia, seriam feitas várias ações em São Paulo. Por exemplo: seria
bombardeado, com um lança morteiro que nós tínhamos fabricado, o QG do II
Exército. Outro grupo tomaria o Campo de Marte. Um outro, eu ia fazer parte
desse outro depois, ia explodir o prédio da Academia de Polícia, que fica ali
na entrada da USP. Outros grupos fariam atentados contra todas as empresas
americanas na Avenida Santo Amaro. A gente chamava isso de noite de São Bartolomeu.
Tudo isso estava planejado.
PLANEJAMENTO ABORTADO, PRISÕES, TORTURA
Nós
arrumamos uma chácara, mal arrumada, para pintar o caminhão com as cores do
Exército.
Eu
fui buscar o caminhão, que tínhamos alugado em uma transportadora no Tatuapé.
Contratamos para uma mudança e, no meio do caminho, tomamos o caminhão. Levei
para essa chácara, que ficava em uma estradinha entre Cotia e Itapecerica da
Serra.
Era
um terreno pequeno, na verdade, e tratamos de cobrir o caminha com uma lona.
Ficou parecendo um circo, foi tudo muito improvisado. Isso era mais ou menos
uns 15 dias antes da data marcada para a tomada do quartel. Deixei o caminha lá
e os companheiros encarregados iniciaram imediatamente a pintura.
O
dono da chácara, quando viu o
circo montado na chácara dele, caminhão sendo pintado com as cores do Exército,
ele começou a ficar apavorado. Nós íamos fazer a ação, mas a vida dele continua
ali. Aliás, a gente não tinha bem pensado o que fazer com ele e a família dele,
como arrumaria a proteção para eles depois.
As
crianças da região iam lá, passavam por baixo da cerca e ficavam assistindo o
trabalho. O pessoal que estava pintando, expulsando a molecada. Um dia, um dos
nossos deu um tapa num dos moleques, um que era especialmente peralta.
O
menino conta para a mãe, diz que tinha um caminhão sendo pintado do Exército. A
mãe foi à delegacia de Itapecerica. Foram lá. Dois soldados com revólver, o
nosso pessoal que estava no caminhão, era calor, janeiro, eles estavam pintando
sem camisa, nem passava pela cabeça que ia chegar a polícia. Eram uns
soldadinhos da PM, que na época era força pública. Acabaram rendendo os quatro.
Isso foi dia 22 ou 23 de janeiro, o trabalho estava quase pronto.
Os
companheiros presos arrumaram rapidamente uma história, iam dizer que estavam
pintando o caminhão para usá-lo em ação de contrabando. Só que um dos caras,
quando preso, já chegou com a disposição de colaborar. Em fase nenhuma chegou a
levar um tapa. Virou. Mudou de lado. Está morto hoje. Morreu de doença. Mas ele
mudou de lado, passou a ser um quadro da polícia.
Nós
ficamos sabendo disso porque os companheiros estavam dando mancada nos pontos,
não apareciam nos encontros marcados. Depois recebemos informação de que o tal
companheiro tinha vida, estava falando tudo.
Conseguimos
avisar o Lamarca, e a decisão era suspender a ação porque o caminhão tinha sido
identificado, os companheiros presos. Se a ação fosse realizada, pegando todas
as armas, seriam 364 FAL (fuzil automático leve) e outras armas.
LAMARCA SAI SOZINHO
O capitão disse
que não era mais possível ficar no quartel, acabaria sendo identificado,
não havia a menor condição.
Decidiu sair
sozinho e, por causa das prisões, antecipou em dois dias a ação. “Eu vou com a
minha Kombi e pego as armas de minha companhia”, disse Lamarca.
Ele aconselhou
os outros três a ficarem no quartel. O argumento é que para ele não dava mais
porque desde que ele havia entrado em contato conosco já vinha nos passando
materiais do Exército, detonadores, dinamites, munição. “Eu estou com o prazo
de validade vencido. Logo vão me identificar”, disse Lamarca.
Mas os outros três
companheiros fizeram a mesma avaliação que ele. “Se nós ficarmos nós seremos
presos”. Então acabaram saindo também. A ação, porém, foi feita só pelo
Lamarca. Ele só pediu que os outros estivessem no quartel na hora combinada,
para agir se houvesse algum problema. Não houve problema nenhum.
Era comum
Lamarca levar armas para outros quartéis, para ações de treinamento. Ele tinha
ficado famoso por ter treinado as moças do Bradesco, as caixas do banco, para
que soubessem atirar, reagir aos assaltos.
UM INTERREGNO NA HISTÓRIA
Aqui houve um episódio curioso. A história do treinamento virou notícia, saiu numa foto na revista “manchete” que ficou famosa.
Quando
a Manchete publicou essa revista, a foto enorme dele na capa. Era a maior
facilidade descobrir o cara, onde andava. Falei para o Diógenes [outro
comandante da VPR]: “Quem é esse capitãozinho? Vamos fazer uma ação exemplar,
de justiçamento”. O Diógenes falou para mim: “Calma. Na semana que vem você vai
entender por quê”.
Eu
não sabia quem era. Eu achava que era o inimigo. Na semana seguinte, tivemos
uma reunião preparatória para a ação no quartel. Participou o João, que era o
nome de guerra do Lamarca, o meu era Hélio.
“Você
não está reconhecendo o João”, me perguntou o Diógenes. Eu olhei assim, disse
que não. “Ele é o cara que você queria fuzilar na semana passada”, disse o
Diógenes. Foi assim que eu conheci o Lamarca.
SEGUE A HISTÓRIA DA SAÍDA DE LAMARCA
Na tarde de sexta-feira, então, Lamarca saiu dizendo que iria para dar um treinamento. Saiu brincando com as armas. “Hoje eu não vou voltar!”. Todo mundo caiu na gargalhada. Ele era campeão de tiro, famoso na unidade. O que também valeu a ele muitos ódios.
Na tarde de sexta-feira, então, Lamarca saiu dizendo que iria para dar um treinamento. Saiu brincando com as armas. “Hoje eu não vou voltar!”. Todo mundo caiu na gargalhada. Ele era campeão de tiro, famoso na unidade. O que também valeu a ele muitos ódios.
Quando
ele saiu com a Kombi, o Hermes, que tinha sido preso com o caminhão, já estava
começando a colaborar. As armas foram levadas para um aparelho no Alto da Lapa,
onde morava um cara chamado Paulinho, funcionário de uma farmacêutica. Tinha
alugado um carro grande, uma parte das armas iria para lá dentro.
Foram
para esse aparelho porque outros poderiam cair. Nós já sabíamos que o cara
estava colaborado. Nós tínhamos outro sargento, que era da PE, estava alocado
no QG. Ele nos traz informação: “O cara está falando até a cor da meia que as
pessoas usavam”.
Então
precisávamos tirar as armas do aparelho. Colocamos num carro, uma C-14. Eu
fiquei circulando com ela 48 horas, sem dormir, passando por batidas policiais,
esperando por informação de segurança. Até que conseguiram um lugar para
guardar as armas, um aparelho da ALN (Ação Libertadora Nacional, comandada por
Carlos Marighella). Deixei a perua numa praça perto da avenida Santo Amaro,
eles pegaram e levaram. As armas saíram de nosso controle.
INVEJA DE PONTARIA
Havia entre os oficiais muita inveja de Lamarca. Inveja de pontaria é a pior coisa dentro do Exército. Pior que ciúme de marido.
Além
de ser campeão de tiro, Lamarca tinha vencido um treinamento de contraguerrilha
no Exército. Ele se apresentou para fazer o papel de guerrilheiro. Só pediu
nove soldados. Nove contra cinco mil. E ganhou.
Nesse
treinamento, que foi em 1968, ele testou algumas táticas que ele tinha bolado
para a região. Ele e seus soldados chegaram 24 horas antes da tropa, esse tempo
era a única vantagem que eles tinham. Fui num campo, nuns matinhos em Pirapora.
Na
Kombi dele, aquela com que ele saiu do quartel em 1969, ele levou os soldados,
a sua turma. Ele levou água mineral, leite condensado, jabá picado, e enxadas e
pás, eles cavaram dez buracos. Colocaram essas comidas no fundo, taparam com
vegetação. E ficaram lá.
Quando
a tropa chega, os soldados montam o acampamento, saem procurando os “guerrilheiros”,
não acham, falam: “Bom, vamos voltar”. Vão jogar cartas, bater papo, levam uísque,
vão tomar uísque. Amanhã a gente recomeça. Montam postos de guarda, ficam lá.
No
acampamento, os soldados dormem até de coturno, com a arma do lado. Pronto para
o combate. Só que os oficiais não. Ficam na barraca, tiram a calça, ficam de
cueca. O Lamarca conhecia isso. Sabia como é que eles agiam.
O
que ele fez?
Às
duas da manhã, ele sabia que os sentinelas estariam com sono, um ou outro
poderia estar dormindo, os oficiais estariam de cueca. Na hora precisa, eles
saem do buraco com facões. Pegam o sentinela distraído. Dominam. Botam fita
crepe na boca e amarram. Pegam a arma do sentinela.
Cortaram
as cordas das barracas dos oficiais, inclusive os generais. Havia generais
acompanhando. Cortaram, deixaram só uma corda, negócio preso. Todos saíram, o
último: “pac”: as barracas vêm todas ao chão. Pegaram também as munições dos
oficiais. Ou seja, se fosse para colocar uma bomba, atirar [...] Esse negócio
de cortar a corda é para mostrar que podiam ter feito o que quisessem.
Voltaram
para os buracos. Os caras acordam, aquele negócio é a maior confusão. General
apavorado. Acordado no meio do sono, de cueca no meio da tropa. Houve uma
desmoralização. Apesar disso, eles remontaram. “Vamos pegar esse filho da puta desse
moleque!”.
A
tropa seguiu nas buscas, sem sucesso.
Lamarca
manteve seu grupo escondido mais dois dias. E repetiu a ação. Os oficiais
ficaram furiosos, determinaram o fim do acampamento. Tal a bronca. Esse
episódio foi o Lamarca que me contou.
LAMARCA VIVE!! VIVA LAMARCA!!
Esses
foram trechos das históricas contadas por Espinosa para o nosso grupo da
Primeira Corrida Carlos Lamarca. De certa forma, contribuem para o mito em torno
da vida e obra do capitão.
Em
tudo, fica a lembrança do grande brasileiro, que precisa ser sempre lembrado e
homenageado.
Aliás,
a nossa homenagem corrida foi bem recebida pela família de Lamarca. Quando soube do
evento, Claudia Pavan Lamarca, filha do capitão, escreveu para mim:
“Olá,
Rodolfo. Nossa, que bela homenagem. Linda iniciativa. Agradeço pela bonita
homenagem!”
O filho mais velho, Cesar, também comentou: “Maravilhosa iniciativa. Parabéns. Carlos Lamarca Vive!”
De fato, é disso que se trata. O exemplo de luta de Lamarca e sua generosidade estão vivos nas lutas de nosso povo pela democracia e pela soberania nacional.
Encerro
com a frase com que ele costumava terminar muitos de seus escritos: “OUSAR LUTAR! OUSAR VENCER!”
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