21.11.16

Algumas considerações acerca da dor do corredor enquanto corre

Não é segredo, mas costuma ficar à boca pequena, nunca é muito falado, pois ela é tratada como algo simples, que sai por si mesmo, que se autocura: a fratura por estresse dói. A dor é aguda, pontual, pontuda, que pode limitar movimentos e prejudicar o bom desempenho de atividades corriqueiras do cotidiano.
Estou sentindo isso da pior maneira possível, ao longo desta empreitada para debater questões de saúde, qualidade de vida e inserção social dos maiores de sessenta anos ao mesmo tempo em que percorro, no ano em que faço sessenta anos, distância equivalente à de sessenta maratonas, 2.532 quilômetros.
Tem mais: pretendia fazer os primeiros seiscentos quilômetros numa talagada só, desde o dia primeiro de janeiro de 2017 até o dia de meu aniversário, 14 de fevereiro, uma empreitada que exigiria perto de 15 quilômetros por dia, todos –ou quase todos --os dias.
A recente descoberta de uma fratura por estresse na região do joelho esquerdo jogaria meus planos por terra, inviabilizando esse sonho de meados de verão. Mas não desisti: meu médico disse que eu poderia fazer breves caminhadas. Tomei então a decisão de começar já o projeto, iniciando então a jornada no dia 14 de novembro, três meses antes do aniversário.
Vamos ver o que dá.
Os primeiros dias foram bons, em terreno plano e com as tarefas realizadas de forma consciente e produtiva. Tirar o estresse é a melhor forma de combater a fratura por estresse, dando tempo ao corpo para regenerar os tecidos fraturados.
Para alguns, a fratura por estresse pode ser mimimi do paciente, porque o osso não está quebrado. Ele está exatamente fratura, cindido, machucado internamente.
Um estudo publicado no início deste ano na “Revista Brasileira de Ortopedia” explica:  “A fratura por estresse foi descrita inicialmente em soldados prussianos por Breithaupt em 1855 e ocorre como o resultado de um número repetitivo de movimentos em determinada região que pode levar a fadiga e desbalanço da atuação dos osteoblastos e osteoclastos e favorecer a ruptura óssea. Além disso, quando usamos uma determinada região do corpo de maneira errônea, a fratura por estresse pode ocorrer mesmo sem que ocorra um número excessivo de ciclos funcionais”. 
Ou seja: a fratura ocorre por causa de movimentos repetitivos em excesso ou sem o devido descanso entre as cargas, mas não apenas e não necessariamente por isso; pode ocorrer por causa de uma única ação em que o corpo foi mal empregado.
Isso eu já sabia pela minha própria experiência, veterano que sou de fraturas por estresse: esta é minha quarta –a primeira, eu conto como duas, pois uma perna foi atingida por fratura por estresse e a outra por síndrome de estresse, que é um pentesilhésimo a menos, mas exige cuidados assemelhados.
A primeira foi típica de corredor iniciante, mal orientado ou com orientação insuficiente.
Eu comecei a correr aos 41 anos, depois de mais de 25 anos de quase completo sedentarismo. Um ano depois fiz minha primeira maratona, no ano seguinte corri para baixar o tempo na maratona e fiz meu recorde –3h53min22.
Cerca de vinte dias depois da segunda prova já estava fazendo longões de mais de 25 quilômetros; em um deles, senti uma dor forte no pé, que me deixou mancando.
Na época, no início deste milênio, era muito mais difícil encontrar médicos especializados em esporte e conhecedores do mundo dos corredores. Levei mais de um mês sendo empurrado de médico a médico até encontrar um que me olhasse como gente, examinasse meus pés, desconfiasse que o problema não tinha origem ali e pedisse uma ressonância magnética das pernas –que também era muito mais cara e menos utilizada do que hoje.
A fratura era no meio da tíbia, ponto clássico de lesão por esforço repetitivo e mal administrado.
Essa lesão marcou o início de uma jornada de busca de informação e de conhecimento sobre o funcionamento do corpo em movimento. Conheci médicos e fisioterapeutas sensacionais, treinadores dedicados a proteger a saúde e o lazer de seus alunos, pesquisei, fiz entrevistas, sofri outras lesões, caí e me levantei.
Festejando, em 2001, minha primeira maratona depois de minha primeira (e segunda) fratura por estresse - Foto Eleonora de Lucena

Alguma coisa aprendi, pois a minha seguinte lesão por estresse –a segunda que é terceira por aquela já explicada contabilidade corporal—só foi ocorrer mais de dez anos mais tarde depois da primeira. E foi do outro tipo, aquele de um esforço único, mal aplicado, que detonou a cabeça da tíbia direita.
Agora, mais velho, com o corpo tendo menos defesas e menor capacidade de recomposição, a fratura que me atinge provavelmente foi provocada por uma combinação das duas grandes razões: volume e esforço concentrado.
De todos, esta surge num local mais complicado, que sofre tensões o tempo todo durante a caminhada. E, que eu me lembra, é a que me provoca mais dores.
Aliás, que eu faço provocar mais dores. Pois aqui há outra característica perversa da fratura por estresse: a gente é responsável pelo mal e também pela cura. É necessário se policiar e cuidar o tempo todo.
Entusiasmo e autoconfiança exagerados contribuem para que a gente erre, como eu errei na última sexta-feira. Estava caminhando bem por volta de três quilômetros a cada dia, dei naquele dia uma estilingada de cinco quilômetros. Parece pouco para quem já correu cem quilômetros de uma talagada só, mas é um incremento de volume superiro a 50% de um dia para o outro.
Isso não se faz. O resultado é a dor.
Trata-se de uma “experiência sensitiva e emocional desagradável associada ou relacionada a lesão real ou potencial dos tecidos. Cada indivíduo aprende a utilizar esse termo através das suas experiências anteriores”, segundo define a IASP, sigla em inglês para Associação Internacional para o Estudo da Dor.
O neurocirurgião Manoel Jacobsen Teixeira, professor da USP, dá o cenário: “A dor continua sendo uma das grandes preocupações da Humanidade. Desde os primórdios do ser humano,  sempre procuramos esclarecer as razões que justificassem a ocorrência de dor e os procedimentos destinados a seu controle. A expressão da dor varia não somente de um indivíduo para outro, mas também de acordo com as diferentes culturas”.
Diz ele que a ocorrência de dor na humanidade é crescente. Algumas razões que o médico cita são: novos hábitos de vida; maior longevidade do indivíduo; prolongamento de sobrevida dos doentes com afecções clínicas naturalmente fatais; modificações do ambiente em que vivemos; e, provavelmente, do reconhecimento de novos quadros dolorosos e da aplicação de novos conceitos que traduzam seu significado.
O que eu posso dizer é que a dor é uma merda. Por causa daqueles quilômetros extras que eu saudei inicialmente com tanta alegria, e de mais uma subidas e descidas de escada, voltei a mancar.
“Você não pode caminhar com dor”, me xinga o fisioterapeuta Marcelo Semiatzh, explicando que a dor significa eventual aumento de lesão. Posso caminhar, mas não devo açular o ferimento, que precisa de paz, e não de bagunça, para se regenerar.
Devo subir escadas apoiado, colocando o esforço inicial na perna boa; descer fazendo o contrário, indo primeiro com a podre. E devo caminhar nos limites da responsabilidade.
Hoje fiz um pouquinho mais de três quilômetros num circuito quase plano, com alguma dorzinha, mas nenhuma pontada limitante. O circuito é muito especial, voltarei a circular por ele e trarei histórias do trajeto.
Por enquanto, encerro aqui essas reflexões sobre a dor: é ruim, não é bom, mas dá para encarar. Não podemos ceder a ela, nos prostrarmos frente ao sofrimento. O objetivo é controlar a dor, minorar a dor, acabar com a dor e mandar ver na vida com saúde e alegria.
Vamo que vamo!



600 aos 60 – etapa 7 – 2016 nov 21

3,41 km caminhados em 41min29

Quilometragem acumulada: 25,59 km

Tempo acumulado: 5h07min58


2 comments:

  1. Muito bom o seu artigo, ainda mais que se trata de sua história real. Tenho catorze anos de corrida, e neste tempo já senti inúmeras dores, inclusive uma fratura por estresse do quadril, sei muito bem quando você fala em dor. Mas agora depois de todo esse tempo, arrumei um desgaste nos dois joelhos de grau três. Fui proibida de correr pelo médico, e ontem finalizei a minha décima maratona em último lugar, pois depois de mim, vinham inúmeras pessoas que passaram , mas o relógio havia sido desligado. Sei muito bem como se sente, pois a nossa vontade de correr é muito grande e supera a própria lógica, que é , você precisa parar... Abraços,

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  2. Discordo totalmente com sua conclusão Lucena! A gente não deve lutar contra dor! Quem faz isso são os lesionados de hoje e de amanhã. Precisamos escutar mais todos os sinais, fazer físico fazer gelo e descansar mais. Além de tudo isso, tomar vit.D (sua deficiência é epidemia mundial e é fundamental para composição óssea), entre outros cuidados com a alimentação que deve ser focada no esporte_desgaste físico! Sobretudo, para nós já com uma certa idade. Embora a causa seja estresse, muitos outros elementos estão em jogo!
    Ótima recuperação e caminho nesse seu objetivo!
    (...quando me aposentei de maratona após feita a quarta, foi justamente por tudo isso...eu me coloquei em meu lugar...aquele desgaste não podia continuar...)

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