14.11.17

A triste história de um posterior da coxa apodrecido

Meu treinador, Alexandre Blass, não poucas vezes reclama de que, quando eu conto histórias de minhas corridas ou faço alguma transmissão de vídeo, falo de como foi difícil tal ou qual treino ou de como sofri com isso ou aquilo ou de como surgiram tais ou quais dores ou de como enfrentei essa ou aquela lesão oportunista, as malditas “ites” com que os corredores convivemos. O problema é que isso acontece, muitos menos vezes do que parece, mas, quando acontece, é traumático, doloroso e merece registro.
Vai daí peço vênia para compartilhar convosco a mais recente e insuportável dor que me acomete, tentando ameaçar a minha reta de chegada, logo agora, quando estou a poucos quilômetros de completar o meu desafio de sessentão, que é totalizar, ao longo deste ano, distância equivalente à de sessenta maratonas.
Pode deixar que eu faço a conta: 60 vezes 42,2 quilômetros resultam em 2.532 quilômetros. Se conseguir, será para mim recorde mundial pessoal interplanetário e intergaláxico de várias gerações. Como disse em meu primeiro livro de corridas, o “MARATONANDO”, venho de uma estirpe de sedentários, gloriosa linhagem de gente especializada em viver a vida como podia sem fazer grandes marolas e sem inventar correrias.
Hoje de manhã faltavam menos de noventa quilômetros para eu atingir a meta. Saí para o treino, portanto, entusiasmado com a perspectiva de chegar mais perto de meu objetivo. E a manhã estava gloriosa, com os termômetros da rua marcando, às 6h30, meros 16 graus. Dia especial para correr.
E me fui! Aproveitando o clima, tratei de fazer blocos de três quilômetros, combinando 2.700 metros correndo e 300 metros caminhando. É uma forma preconizada pelo já citado Alexandre Blass para reduzir riscos de lesões ao mesmo tempo em que proporciona a possibilidade de treinos mais longos ou mais intensos (em blocos mais curtos).
Está dando certo. Neste ano não tive nenhuma lesão importante, apesar do, para meus padrões, alto volume realizado. E houve intensidade também: no final de maio e início de junho, corri três meias maratonas em três finais de semana seguidos.
Mas dores senti e sinto. Hoje, por exemplo, do nada, me agulhou o posterior da coxa direita. Não me lembro de ter feito nenhum movimento brusco, aberto a passada, acelerado ou reduzido de sopetão. Nada. Mesmo assim,  quando passava um pouco dos sete quilômetros de jornada e eu já estava perto dos portões da Cidade Universitária, a perna gemeu, a coxa estrilou: o velho aqui mancou.
Fiz o que faço sempre quando surge alguma dor durante a corrida. Primeiro, paro, penso, sinto, tento identificar o que aconteceu e avaliar o risco de continuar. Em geral, como fiz hoje, sigo caminhando por algumas centenas de metros e depois tento correr.
Cada passo foi sofrido, mas possível. Inteirei oito quilômetros, o que é melhor do que nada, já dentro do território uspiano. Confiando no descanso, tentei correr. DOR! Então abortei o treino e peguei um ônibus para voltar e fazer o tratamento doméstico mais imediato.
O que fiz foi aplicar uma bolsa de gelo na área dolorida, ficando ali por quinze minutos. O objetivo é reduzir a inflamação, e isso precisa ser feito o quanto antes. Já tinha se passado mais de uma hora da lesão, mas taquei gelo assim mesmo. Depois, apliquei bolsa de água quente, para relaxar a musculatura. Vamos ver o que acontece.
Enquanto isso, vou contando histórias. O caso do posterior da coxa podre foi o mote da transmissão que fiz ao vivo na manhã de hoje, que você pode assistir CLICANDO AQUI.


Além de contar minha história triste, comentei noticiário quentinho, que li hoje no “The New York Times”. Trata-se de uma nova recomendação dos principais corpos médicos dos Estados Unidos na área de cardiologia. Depois de analisar avaliações de milhares de estudos de caso, eles decidiram modificar o critério de definição de pressão alta.
Até ontem nos EUA, pressão de 14 por nove era considerada saudável, normal, “boa”. A partir de hoje, com a mudança de critérios, o máximo para “passar” no exame de saúde é 13 por nove. 
Isso significa que um batalhão de norte-americanos que eram considerados saudáveis passam a estar inscritos entre os que sofrem de pressão alta: em números absolutos, a população hipertensa passa de 72 milhões de adultos até 45 anos para 103 milhões.
Nem todos vão precisar receber remédios; para a imensa maioria dos novos hipertensos ajustes no estilo de vida devem bastar. A receita é conhecida: alimentação saudável e exercício físico. 
E é bom que apostem e insistam nessa linha porque o tratamento medicamentoso também tem riscos, especialmente de atingir os rins. Quer dizer: a pessoa fica bem do coração, mas tem aumento de riscos de problemas renais.
Essa preocupação toda das associações médicas se justifica porque a pressão alta é o segundo maior fator de risco para ataques cardíacos –o primeiro é o fumo. E problemas cardiológicos são a principal causa de morte nos Estados Unidos.
Vamos ver se funciona.
Mudando de saco para mala: no vídeo também comentei a camiseta de corrida que usei no meu treino de hoje. É uma velhinha, que ganhei no final da década passada quando participei da Meia Maratona de Lima, que é tida como a corrida mais antiga da América Latina –nas Américas, perde apenas para a Maratona de Boston.


Eu tive a satisfação de participar, em 2009, da edição número 100 daquela corrida. E escrevi no meu blog, que na época era hospedado no braço internético da “Folha de S. Paulo”: “Pela primeira vez, corri no exterior uma prova mais velha do que eu”.
A corrida foi muito bacana e, para não perder a viagem, copio a seguir o texto que publiquei então (setembro de 2009) no blog +Corrida, precursor deste Blog do Lucena.


Pela primeira vez, corri no exterior uma prova mais velha do que eu. Foi a Meia Maratona de Lima, que no domingo passado teve sua centésima gloriosa edição, cheia de festa, alegria e orgulho. Totalmente merecido, pois é, ao que eu saiba, a corrida de rua mais antiga da América Latina, perdendo, em todo o continente, apenas para a Maratona de Boston.
Com todo esse verniz histórico, nenhum lugar melhor para a largada que a Plaza de Armas, o terreno que o conquistador espanhol Francisco Pizarro marcou como pedra fundamental da Ciudad de los Reyes, em 1535, e também o palco escolhido pelo libertador José de San Martín para proclamar a independência do Peru em 1821.
No clima passadista, foram contratados alguns atores que, vestidos ao estilo de diferentes épocas, se transformaram na marca da prova: estavam na página de abertura do site oficial, nos cartazes, nas propaganda e na largada, ao vivo em em cores, com suas camisetas anos 40 e seus borzeguins mais antigos ainda. Viraram uma atração na praça, e muita gente tirou foto com o grupo de viajantes no tempo.
Mas era hora de viajar no asfalto. Com a sirene anunciando a largada, caiu sobre os corredores uma chuva de papel picado, vermelho com as camisetas que todos usávamos. 
Saímos a passo, depois a trote, pelas ruas estreitas do centro velho de Lima, proclamado Patrimônio da Humanidade pela Unesco, construções históricas que é. Logo nos primeiros metros, passamos pela catedral de Lima, dos idos de 1600 e vemos também o Palácio do Governo nacional; saindo da Plaza de Armas, damos de cara com um predião imponente, com nome estranho, Estación de Desamparados, que foi assim nomeada porque antigamente havia uma igreja de Nossa Senhora de los Desamparados ao lado da ferroviária.
Ali foi também o primeiro ponto em que um grupo musical alegrou os corredores. Dançavam, cantavam, faziam música, numa prévia do que estava para vir. Mas, para se divertir, era preciso também prestar atenção no caminho: as ruas históricas são estreitas, e o percurso dobra esquinas sem conta nessa primeira etapa, passando por diversos tipos de calçamento.

De qualquer forma, mesmo essas artérias multicentenárias não são tão estreitas como as vielas por onde passei, logo ao chegar a Lima. É que o aeroporto fica em Callao, um dos mais antigos e populosos distritos da cidade _Lima é um aglomerado de 43 distritos, cada um com seu prefeito, e todos gerenciados pela Municipalidad Metropolitana de Lima. Para sair de lá, passa-se por ruas, ruelas e ruelinhas, dependendo do seu destino; dá também para seguir por algumas avenidas, mas, mesmo assim, são caminhos supermovimentados, com trânsito lento e pesado (será que não lembra uma certa cidade do Brasil?).
Era para Callao, aliás, que seguia a corrida em seus primórdios. Na sua primeira edição, a prova ficou conhecida como Lima/Callao de Fiestas Patrias. Aquela região hoje é dominada por construções pobres, prédios de tijolo sem reboco, tal como em muitos bairro brasileiros. Lima, com cerca de 8,5 milhões de habitantes, é uma cidade pobre, mesmo comparada aos pobres padrões brasileiros.
Os corredores, porém, não veem nada disso. O percurso segue passando por prédios opulentos, praças bem cuidadas, parques bonitos. Em vários pontos, a população e concentra e aplaude os corredores. E as bandas enchem de som a manhã de domingo, fazendo cada um apressar seu ritmo, alegrar-se correndo.
Há de tudo: em um ponto, palhaços e acrobatas em pernas de pau; em outro, cantores vestidos ao estilo dos anos 80; num terceiro, somos recebidos por Elvis e Marilyn; sem falar na percussão nativa e nos tambores índios que fazem dançar até um sujeito de cintura dura como este vosso escriba.

Tudo muda quando entramos na avenida Arequipa, que corta vários distritos, chegando quase ao mar. É uma avenida larga, muito bem arborizada, com vasto canteiro central que convida a caminhadas, corridas ou a um namorico gostoso numa sombra de árvore. É um convite para correr, acelerar, fazer o coração bater mais forte.
Com rapidez, passamos pelos prédios modernos de San Isidro, e nos encaminhamos para o mar. Mas não vamos chegar à praia, uma das grandes surpresas que tive nessa viagem. Lima é à beira-mar, mas o mar fica distante de Lima: a cidade está construída sobre um imenso planalto, que desaba em precipício quando chega ao mar. Uma via expressa separa o rochedo da praia, que é cinzenta, cheia de pedregulhos e seixos, inóspita, parecendo dizer: "Não venha cá". Os surfistas vão, mas não vi banhistas por lá...
Pouco depois de ver o mar, vejo também a primeira falha da organização: o posto de hidratação do km 12 está seco. Quem vai a ritmo de 6min/km, mais ou menos, fica sem água nem isotônico, que vinham sendo servidos aos baldes nos postos anteriores.
Não me preocupei, porque o clima estava ameno e eu tinha aproveitado bem a fartura anterior, mas vários companheiros de ritmo ficaram passados _ao cruzar por uma garota, ouvi de revesgueio sua conversa no celular, em que pedia a alguém para comprar isotônico com urgência... No km 15, a falha se repetiu, e houve gente que parou em uma banquinha, pouco depois do km 16, para comprar água.

Eu estava mais de sangue doce, procurando aproveitar o cenário, desfrutar das novidades que Lima oferecia. O domingo era também data nacional, dia de Santa Rosa de Lima, padroeira do religioso país e de sua polícia. Ao longo de toda a avenida Arequipa, via grupos de jovens vestidos a caráter. Iam dançar, cantar ou fazer peças musicais em festas escolares, além de apresentações na rua mesmo, que virou um grande palco.
Além deles, os corredores também éramos protagonistas no asfalto, cada vez mais próximos do gran finale. No km 18, a ordem se restabeleceu, com muita fartura de bebida, além de bananas descascadas, prontas para serem consumidas e virarem combustível para a arrancada decisiva.
E assim fiz, acelerando para a chegada no Circuito Magico de Agua, um grande e superbem cuidado parque que tira seu monte do grande número de fontes que ostenta, cada uma com desenho diferente, chafariz esplendoroso e trilha sonora especial.
Ainda parei para fotografar corredores passando por um desses jorros d’água, e depois fui apertei o passo o suficiente para ter pernas e correr legal na reta de chegada, fazendo ultrapassagens de última hora e cruzando a linha em estado de glória.
....
Bom, essa foi a história de minha participação na centésima edição da Media Maratón de Lima, em 2009. 
Hoje a minha situação está muito diferente, com o maldito posterior da coxa apodrecido. Acabei de me levantar um pouquinho, e até caminhar beeem devagar está difícil.
É o chamado "desgaste de material". Tomara que o descanso seja suficiente para me devolver ao asfalto, pois ainda faltam oitenta e dois quilômetros para atingir meu objetivo.
Torçamos juntos.
VAMO QUE VAMO!!!


Percurso de 14 de novembro de 2017


8,11 quilômetros percorridos em 1h17min53

Acumulado no projeto 60M60A
2.450,80 quilômetros realizados em 435h




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