“Pela vida e pela paz, ditadura nunca mais!” foi o brado que
ecoou na manhã de sábado pelas ruas do Parque São Rafael, distrito pobre da
periferia de São Paulo, no extremo sudeste da cidade, divisa com os municípios
de Santo André e Mauá.
Era o canto de vozes risonhas de meninos e meninas que ainda
nem chegaram à escola primária e precisam andar na cidade de mãos dadas com
seus pais e mães, professores e avós –como estavam durante a caminhada que
surpreendeu quem saía para fazer a feira da semana ou já trabalhava em algum
conserto doméstico, aproveitando esperada folga.
Ao coro das crianças se somava o tom agudo e cristalino das
mulheres, poderosa maioria entre as dezenas de pessoas que participavam da
caminhada. Por contraste, das profundezas de gargantas masculinas vinha
cantochão puxando palavras de ordem: “Manoel Fiel Filho, presente!”
Fotos Eleonora de Lucena |
Passa por vielas, tangencia barracos, cruza sobre água suja
escorrendo pelas encostas, marcha em subidões, aumenta o ritmo na descida, para
o tráfego na principal avenida do bairro: a escola municipal de educação
infantil Manoel Fiel Filho se levantava e diz, ela também, presente nas
jornadas democráticas que vêm tomando conta de nosso país.
A manifestação marca a última etapa do projeto CORRIDA POR
MANOEL e a conclusão de várias semanas de atividades pedagógicas com
crianças de três a cinco anos e com seus pais.
Com a ajuda dos professores, ao longo do último mês a
comunidade do Parque São Rafael –pelo menos, a que gira em torno da escola
pré-primária—fez um mergulho na história do metalúrgico Manoel Fiel Filho, “o
operário que derrubou a ditadura” no dizer do documentário de Jorge Oliveira
que revisita a tragédia do militante sindical e as consequências políticas do
assassinato de Fiel Filho.
O motor do projeto foi a orientadora pedagógica Lilian
Cangussu, uma loiríssima jovem de 37 anos, quase metade deles dedicados à
educação de crianças e jovens, a pensar e a estudar o ensino.
Neste ano bissexto, conversei com ela na tarde do dia 29 de
fevereiro, uma segunda-feira.
Eu preparava o projeto CORRIDA POR MANOEL, traçava
planilhas, construía agenda, tentava vislumbrar uma possível ordem na série de
40 percursos de modo a que pudesse contar, com minhas passadas, não só a
história de Fiel Filho mas também a das lutas pela democracia ao longo dos anos
1970 (e mais e sempre).
Minha caminhada me faria mergulhar em muita dor e
sofrimento, violência, brutalidade, na desumanidade que brota e transborda
quando os poderosos se veem ameaçados pelo amanhecer democrático.
Também traria à tona os atos de heroísmo, desprendimento e
generosidade de que só os lutadores do povo são capazes –foi o que vi e
procurei mostrar ao longo dos mais de quatrocentos quilômetros dessa jornada.
Ela não tem fim, eu sei, mas para onde o caminho aponta,
para onde vamos, o que fazer? Não há respostas para isso, mas, se temos
compromisso com o futuro, há que pensar nas crianças, conversar com elas sobre
o presente, desde sempre.
“Mas precisa ser correndo?”, me pergunta Lilian. “Pois é, são crianças de até seis anos”,
respondo eu, deixando transparecer na voz –segundo me disse a professora—uma
certa decepção. De certo, eu esperava adolescentes vibrantes, com quem pudesse
trocar ideias inflamadas para sairmos todos em barulhento movimento desafinando
o coro dos contentes.
A conversa entre os dois desconhecidos, apresentados apenas
naquela conversa por telefone, seguiu aos solavancos, cada um tentando
descobrir o que o outro estava pensando, propondo.
A professora parecia curiosa, interessada, mas desconfiada;
eu queria mobilizar a escola, a única da cidade de São Paulo nomeada em
homenagem a Manoel Fiel Filho.
De pedregulhosa, a conversa foi se azeitando, ganhando
corpo, se transformando em projeto conjunto. A professora calcula os dias que
tem para o trabalho, analisa possibilidades, promete estudar o assunto, vai
conversar com a diretoria: “Dá para fazer”, me assegura Lílian.
De lá para cá, conversamos mais uma ou duas vezes; eu
cheguei a ir até a escola para uma conversa preparatória com pais e
professores. Fui recebido pela simpatia generosa da diretora da escola, Miriam
de Cássia Valério.
A orientadora pedagógica, porém, não estava: só no dia da
nossa caminhada fui conhecer a organizadora da CORRIDA POR MANOEL na EMEI
Manoel Fiel Filho.
Com outra professora, ela tomou a frente do grupo. As duas
seguraram a faixa que foi o abre alas das quase sessenta pessoas que
participaram do encontro, da passeata pela vida e pela paz.
Havia muitas crianças, algumas buscavam o colo dos pais
enquanto outras valentemente enfrentavam o asfalto.
Homens, mulheres, pais, professores, vizinhos e funcionários
da escola, representantes da Delegacia Regional de Ensino de São Mateus e do
CEU Parque São Rafael, todos tinham dados gargalhadas enquanto brincavam, no
aquecimento para a jornada, dando pulinhos, rebolando um pouco, espreguiçando
os músculos, preparando o corpo para a marcha cívica que viria a seguir.
No espírito da energia, o grupo de adolescentes Dance Stars,
que se reúne no CEU São Rafael, fez uma demonstração de sua arte, dançando
ritmo de rua, apresentando a todos o ragga, alegrando a manhã e mandando seu
recado de luta por livre expressão.
Foi nessa batida que nos ajeitamos, arrumamos e subimos a
rampa até a calçada –construída na encosta de um dos morros do bairro, a escola
fica num platô vários metros abaixo do nível da rua. Olhando por sobre seus
muros, dá para ver outras colinas do Parque São Rafael, cravejadas de casas
simples, inacabadas, amontoadas umas sobre as outras.
Assim nos fomos todos, aos gritos de “Viva a Escola Manoel
Fiel Filho!” e de “Ditadura nunca mais!”
“Muito legal participar”, me diz um pai que carrega nos
ombros o filho pequeno, os dois usando na cabeça viseiras construídas na escola
especialmente para a caminhada.
“É uma coisa nova para mim, nunca tinha
participado de nada na escola”, afirma ele que, com a esposa, havia sido um dos
primeiros a chegar na manhã de sábado..
Adolescentes e funcionários transformavam a caminhada numa
grande brincadeira, algumas ensaiando passos de samba, outras jogando os braços
para o alto como se estivessem na avenida, transformando em hino as palavras
cantadas de forma ritmada, como se pergunta e resposta: “Pela vida e pela paz,
ditadura nunca mais!”
De porta-bandeira, as professoras carregavam a faixa que
apresentava à comunidade nossa jornada: “CAMINHADA POR MANOEL”, dizia em letras
vermelhas, seguidas pela explicação: “Homenagem a Manoel Fiel Filho, o operário
que derrubou a ditadura”.
De um dos lados da faixa, a foto de Manoel que se tornou
ícone em todas as manifestações em sua memória. Tirada da carteira profissional
do operário, mostra o homem de terno, engravatado, rosto imberbe.
Na outra lateral, um desenho feito por criança. De traços
simples, colorido, a figura humana tem o rosto redondo como o de Manoel, e a
gravata se destaca no conjunto.
A pintura é dos resultados dos trabalhos que as professoras
desenvolveram com a criançada e com a comunidade ao longo das semanas que
antecederam nossa caminhada.
Para os educadores, o momento foi uma oportunidade de
mergulhar na história do personagem e ainda consolidar a presença da escola na
comunidade, afirmar sua identidade, como a coordenadora pedagógica me contou em
relatório que fez sobre as atividades:
“Inicialmente verificamos a necessidade de construir a
identidade da escola, pois qualquer pai ou pessoa da comunidade a ela se
referia como “o prezinho ao lado do posto de saúde”; “a escolinha do lado do
Osaka”. Assim, nos horários de formação
dos professores, fizemos uma pesquisa mais acirrada acerca da história do
operário Manoel Fiel Filho e discutimos a didática a ser empregada para tratar
o tema com crianças de três a cinco anos de idade.”
Decidiram fazer o trabalho em duas etapas, buscando primeiro
envolver a comunidade, fazendo numa abordagem histórica para apresentar aos
pais dos alunos a história do patrono da escola e o contexto em que ele viveu,
o período da ditadura militar.
Com as crianças, a ideia foi buscar que elas relacionassem o
nome da escola à pessoa que foi Manoel. Houve desdobramentos, com discussões
sobre a profissão do operário, as profissões dos pais dos alunos e o que as
crianças queriam ser quando crescessem.
Os resultados foram sensacionais, como qualquer um que
visite a escola pode ver: nas paredes estão montados murais com os desenhos das
crianças, mostrando claramente o caminho da atividade pedagógica.
Mas me adianto. Melhor deixar que Lilian siga com seu
relatório:
“Nas rodas de conversa
sobre o Patrono, um dado inusitado foi a descoberta, pelas crianças, de Manoel
ter sido uma pessoa. As crianças estavam acostumadas a falar o nome da escola,
porém sem refletir sobre quem é Manoel, e ao se deparar com o retrato em mãos
passado na roda, com a história contada pela professora de que Manoel foi um
homem de verdade, um Operário, e que também já tinha sido padeiro e cobrador de
ônibus, ficaram impressionadas. Surgiram relatos ricos e significativos como:
“-Professora então
Manoel era um homem de verdade?”
“-Nossa, meu pai
também é padeiro.”
“-Padeiro é quem faz o
pão! (numa pequena conversa paralela entre dois alunos que divergiam sobre a
profissão de padeiro: padeiro faz o pão ou vende, e no final da conversa
concluem que padeiro faz o pão, porque vender pode ser qualquer pessoa. ”
-Quem é o cobrador de
ônibus ?
Essas questões
impressionaram a equipe como um todo. Uma professora relata:
“... O que me chamou a
atenção nesse trabalho com o Patrono da Unidade foi o fato das crianças se
admirarem por Manoel ter sido real, pra gente que é adulto é tão natural, que
sabemos da história, mas como muitas vezes não resgatamos o verdadeiro sentido
do tema trabalhado, por julgarmos que é sabido por todos, ou que não é
necessário. Esse trabalho me fez refletir sobre isso...”
As discussões com as crianças renderam muitas aulas sobre as
profissões, pesquisas em jornais e revistas sobre profissões conhecidas, e
discussões sobre algumas profissões que estão desaparecendo no contexto da
pós-modernidade, como é o caso do cargo
de cobrador, muitas crianças nem conheciam que profissão era essa, pois muitos
só utilizam lotações que em sua maioria só há a existência do motorista.
Outro desdobramento do trabalho das profissões foi o
trabalho com o sonho, os projetos para o futuro, o que as crianças pensam sobre
isso, que profissão desejam ter em seu
futuro e muitas foram as respostas: motorista de helicóptero, bailarina,
professora, pedreiro, cantor, cantora, advogado, comprador.”
As famílias também ficaram profundamente envolvidas, e não
só porque a escola fez reuniões com pais em que trouxe palestrantes como Marcos
Ahlers, historiador da região, e encontros onde foram passados vídeos sobre o
projeto CORRIDA POR MANOEL.
As próprias crianças levavam para casa as discussões
tidas em classe, “aprendendo e ensinando uma nova lição”, como mostram relatos
de pais citados por Lilian Cangussu:
“Eu estou orgulhosa do trabalho realizado com as crianças,
pois meu filho chegou em casa contando com detalhes que sua escola chama-se
Manoel Fiel Filho, um homem operário, houve realmente o envolvimento das
crianças, eles agora conhecem o nome da escola, a pessoa que foi o Manoel, que
nem eu mesma conhecia”, disse uma mãe.
Outra contou: “Eu estou muito feliz em ouvir a história do
Patrono da Escola, é um orgulho saber que meu filho estuda numa escola que leva
o nome de um homem justo e digno, uma pena ter sido injustamente morto, mas um
orgulho ser o responsável pelo fim das mortes da Ditadura.”
A satisfação também tomou conta dos professores e da
coordenação da escola:
“Ele foi uma pessoa importante para nosso país”, afirma
dona Miriam, diretora da escola. “Fazemos essa homenagem porque é importante
valorizarmos uma pessoa que lutou pela democracia, pela liberdade, pelos
direitos de todos.”
Ela não usa a frase consagrada pelo Núcleo Memória
–“conhecer o passado, entender o presente, construir o futuro”--, mas sua fala
traz o mesmo sentido de rememorar para prosseguir: “No momento em que a
sociedade vive hoje, é importante valorizar esse pessoal”.
Por isso, ela era toda alegria ao longo da caminhada,
conversando com pais e professores, incentivando crianças. No meio das dezenas
de pessoas, Miriam dava orientações sobre o percurso –surpreendendo muita
gente, fez com que a caminhada enveredasse pela avenidona Baronesa de Muritiba,
a principal do bairro.
“Estou com o coração satisfeito”, resumiu Miriam Valério.
Era o sentimento evidenciado nos rostos de
todos os participantes da última etapa da CORRIDA POR MANOEL, um mergulho na
história de nosso povo, uma jornada pela vida e pela paz.
Que a última palavra, porém, não seja minha, do autor, do
corredor , do jornalista, mas sim de uma de nossas caminhantes, senhora de
vestidão azul e sandálias, pele crestada, longos cabelos grisalhos. É dona Elizabete
Siqueira, mais conhecida na escola como “vó do Antônio”.
Ela faz sua força
virar voz, mensagem de sabedoria e movimento: “Eu gostei muito, muito, muito de participar dessa
caminhada. Eu participei de algumas reuniões, gostei muito e sempre vou estar
envolvida com vocês aqui. Nós precisamos lutar pelos nossos direitos, pela
nossa liberdade”.
CORRIDA POR MANOEL – 40ª e última etapa
Destino: Escola Municipal de Educação Infantil Manoel Fiel
Filho, no Parque São Rafael, percurso de 1,72 km realizado em 39min55
Distância total percorrida: 417,83 km
Que bom esse envolvimento da escola e das crianças pequenas crescerem antenadas com o que aconteceu e não queremos que se repita!Foi importante, Rodolfo. Irene Gevertz
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