Correr chorando é difícil.
O choro mexe com as entranhas do vivente, remexe a
musculatura, estressa os sentimentos, cavoca o estômago, retorce a boca, faz o
nariz correr, avermelha os olhos. Parece que quer transformar o corpo todo em
lágrima.
A corrida puxa o sangue para as pernas, cobra atenção do
olhar, exige controle do abdômen, sacoleja as coxas, exaure a disposição, vaza
gordura em suor, avermelha os olhos. Quer transformar o corpo todo em movimento.
Cada um, choro e corrida, quer o corpo todo para si mesmo,
ciumentos que são de músculos, entranhas, esqueletos, pensamentos e emoções.
Donde, como se conclui, correr chorando é difícil.
Na Paulista, na manhã de hoje, corri chorando. Devia ser
uma peça uma tanto assustadora de ver –curiosa, pelo menos--, cabeludo,
barbudo, com esgar de sofrimento, nariz pingando, olhos vazando, garganta fazendo
um som que nem sei bem qual é.
Também não sei por que chorava: “São tantas emoções”,
diria o meu amigo Roberto Carlos.
De fato.
Às 6h30 de hoje fiquei sabendo que tinham fracassado os meus
planos para o dia de hoje, a 39ª etapa da CORRIDA POR MANOEL, penúltima das quarenta
homenagens corridas e reportadas ao operário metalúrgico assassinado pela ditadura
militar e ao combate pela construção da democracia no Brasil.
Meu convidado não poderia caminhar comigo, eu precisava
criar outros planos.
Já tinha imaginado essa possibilidade –afinal, a noite
anterior fora de luta no Brasil inteiro, manifestações gigantescas contra a
tentativa golpista de impeachment da presidente Dilma se espalharam pelo Brasil
como rastilho de pólvora incendiando os corações dos homens e mulheres de bem
deste país.
Militante das causas do povo, meu convidado provavelmente
tinha varado a noite nos eventos e reuniões pós-mobilização. Então saí para
correr, proto para trazer outras histórias, mas disposto a deixar o coração
solto, os pensamentos voarem, a imaginação se espraiar pelo asfalto, como é
próprio das corridas de longa distância.
Logo de início, descansado, parei para admirar colorido
grafite num murão da Doutor Arnaldo. E queimei o chão, partindo para correr
como cachorro solto no campo.
Só quando cheguei à avenida Paulista comecei a botar meus
pensamentos em ordem, tratando de montar na minha cabeça o mapa para chegar a
um lugar que lembrasse a trajetória de meu homenageado.
Seria legal passar pela Sé, calculei. E a praça foi se
agigantando na minha mente, as lembranças da manifestação da noite anterior
ocupando minhas passadas, o Hino Nacional cantado por 60 mil vozes reverberando
ainda nos meus ouvidos, arroucando minha voz, arrancando de mim lágrimas de
alegria.
Pois a gente chora por tudo: de alegria, de dor, de
esperança, de saudade, de ver o tempo passar. Eu choro mais ainda pela emoção
do heroísmo, de ver o povo se levantar, estar ao lado de gente que faz a hora,
não espera acontecer, como diz a canção.
E me vieram à mente as muitas Sés, a de Herzog e do
Movimento Contra a Carestia, a da Anistia e de Alexandre Vannucchi Leme, a Sé
onde foi acolhida a família de Manoel Fiel Filho.
Assim, a praça da Sé, da catedral transformada em casa do
povo pelo arcebispo dom Paulo Evaristo Arns, virou o personagem dessa jornada
de hoje, de quase-despedida da CORRIDA POR MANOEL.
Enquanto me decidia, corria. Já quase no fim da avenida
Paulista –de fato, o começo, mas é o fim para quem vai daqui para lá--, passei
por um boteco que me avivou recordações de outro campeão da lutas populares, agitador
do campo, guerrilheiro na cidade, diplomata nos gabinetes.
Várias vezes cheguei àquela esquina podre e suado, depois
de quilômetros pelo centro da cidade, pelo Cambuci e pela Liberdade. Para
mostrar –a quem, me pergunto sempre?—que não fraquejava, completava o treino
com uma das subidonas que leva até a Paulista.
“Ué, que você tá fazendo por aqui”, me perguntava Nélson
Chaves dos Santos nas nossos raros encontros –já se iam longe os tempos em que
tínhamos militado os dois no extinto MR-8, produzindo o "Hora do Povo" e usando o jornal para infernizar a vida da ditadura militar.
Com a redemocratização, eu segui meu caminho, ele continuou firme e forte no partido.
Conheci Nélson muito antes de saber quem era ele. Nosso
encontro na vida foi a prova de um filosófico ditado que me acompanha desde os
tempos de ginásio, ensinado pelo professor de português: “Se não me tivesses
encontrado, não me estarias procurando”.
Nélson Chaves entrou na minha vida pelo jornal. Em 1979,
eu era redator na rádio Continental, escrevia textos para o jornal “1120 é
notícia” (o número se referia à posição da emissora no dial) e tinha criado o
boletim “Brasil-il-il”, que acompanhava o andamento do projeto de anistia.
Muitas das notícias que escrevia tinham Nélson como
personagem, pois ele havia sido preso em março, numa evidente contradição aos
rumos de redemocratização que o Brasil tomava.
Não era a primeira prisão daquele magricelo irrequieto,
militante das causas do povo desde os 14 anos, apesar de ter nascido em berço
esplêndido, filho de fazendeiro.
Logo depois do Golpe de 1964, com 19 anos, foi processado
por causa de seu trabalho na organização de sindicatos rurais e grupos de
camponeses.
Não deu em nada. Seguiu buscando organização com quem
trabalhar. Ligou-se à Polop, em busca de ação, mas saiu frustrado, como disse
em entrevista a Eleonora de Lucena:
“Entrei em 65 e fiquei seis meses. Fui
expulso. Descobri que era um bando de charlatões; falavam em luta armada, mas
não faziam porra nenhuma. O meu negócio era ir para o cacete. Já vim do
interior com essa ideia. Do meu grupo do interior, éramos 20, 17 foram para a
luta armada.”
Ajudou a construir a VPR do capitão
Carlos Lamarca, embarcou em muitas ações, foi preso, torturado quase até a
morte –salvou-se porque saiu com o grupo de presos políticos trocados, em 1971,
pelo embaixador suíço.
Rodou alguns anos no exterior, mas não
aguentou ficar longe do Brasil. Apesar dos tempos bicudos, voltou bem antes da
abertura democrática e se somou ao Movimento Revolucionário 8 de Outubro.
No mesmo ano em que foi personagem de
meu programete de rádio tornou-se também uma espécie de padrinho espiritual de
meu casamento.
Libertado na anistia, imediatamente se
somou à luta contra a ditadura e passou a trabalhar na ampliação do MR8 –era um
dos que fazia contato para atrair a Organização Comunista do Sul, onde eu
militava.
Adora jogar conversa fora, se meter na
vida dos outros, tomar umas pingas. Certa feita, estava fazendo tudo isso
depois de algum encontro clandestino entre 8 e OCS, e calhou de eu ser o
parceiro de bate-papo.
Quando soube que eu estava de casa
montada com minha parceira, perguntou logo para quando era o casório. Instituição
falida, lhe disse eu, ao que ele me deu um sermão em regra, desmontando
argumentos e apontando o caminho da concórdia com a família da companheira.
Chegando em casa, mal abri a porta e
fui logo dando a notícia: “Eleonora, vamos nos casar!” Estamos aqui até hoje,
com papel passado, comunhão de bens e filhas batizadas.
Nélson morreu menino, com 68 anos, em
2014. Sempre que, como hoje, passo naquele bar no nascedouro da avenida
Paulista, lembro-me dele com carinho e sinto orgulho de ter tido como amigo um herói brasileiro.
Reconfortado pelas lembranças, desci a
Vergueiro rumo à praça da Sé; numa esquina, encontro pichação bem linda, poesia
concreta pintada nos muros paulistanos.
Reviver verde rever verdade ou qualquer
outra combinação, tudo é permitido pelas sílabas que servem como blocos de
armar edifícios –os tijolinhos que foram por décadas alegria das crianças
construtoras.
Vista por trás, a praça da Sé é em
primeiro lugar a catedral. Que, vista por trás, de quem sobe da Liberdade para
a praça João Mendes, em primeiro lugar é torre, bico fino no alto do prédio
monumental. Por dentro, a igreja é serena, sisuda; por fora, é generosa,
amazônica.
Rodei o contorno inteiro da praça,
abracei a catedral com minhas passadas, lembrei a multidão que tomava a praça
na noite anterior, me lembrei das outras multidões.
Muitas delas, multidões, foram
replicadas na minha terra. No Rio Grande do Sul, o Movimento Contra a Carestia
teve minha mãe como militante ativa, motivadora de lutas.
Dona Cecília Reckziegel de Lucena
(1930-2014) disse presente, aliás, em tudo quanto foi luta popular que lhe
passou pela frente, foi motor e coração na campanha da anistia, andava pelas
favelas e, do mesmo jeito amorável, encontrava alguns dos campeões da
liberdade, como o senador Teotônio Vilela.
“Ela estava entregando as flores como
uma homenagem nossa, do 2º Zonal do PMDB, ao Teotonio”, conta Jussara Cony, que
então era vereadora e dirigente daquele zonal.
“Numa articulação política ampla, eu me
tornei presidenta e o Caio Lustosa vice, com apoio do Andre Foster, do Lauro
Hagemann, da Gladis Mantelli, do MR8 e dos comunistas como eu. Cecília fazia
parte da direção que elegemos, e trouxemos o velho, amado e guerreiro Teotônio
para uma grande atividade, parte da Caravana da Democracia para impulsionar a
luta redemocratização.”
Jussara, que mais tarde se elegeu deputada estadual, lembra das atividades de Cecília. Ao ver a foto, escreveu mensagem para mim:
“Tua mãe era uma das principais militantes na luta comunitária, das mulheres e na luta política maior. Tua irmã Teresa também. Tua mãe conseguia unificar, ampliar, numa dedicação cotidiana. A gente militava tri bem junto. Lembro de que nos momentos de embates, a gente conversava muito pra encaminhar da melhor forma. Me ensinou muito!”
O encontro de Cecilinha com Teotônio foi uma das últimas jornadas da andança nacional do Menestrel das Alagoas, que morreu meses depois, no final de 1983.
Latifundiário, fundador da UDN nas Alagoas –o mesmo estado de Manoel Fiel Filho—e apoiador do Golpe de 64, Teotônio Vilela aos poucos encontrou o caminho do bem. A partir de 1974, tornou-se ativista do processo de abertura democrática; depois, da redemocratização e da anistia.
O Menestrel das Alagoas foi figura empolgante em palanques montados na Sé, que também tiveram as presenças gloriosas, enormes, retumbantes de carinho de Therezinha Zerbini e Margarida Genevois.
A catedral só fez humana, porém, pela mão e pela palavra de Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo de 1970 a 1998.
“As coisas no Brasil teriam sido muito
piores se não fosse dom Paulo, porque ele era um homem de coragem, enfrentava
os militares, não tinha medo e apoiava aqueles que se comprometiam com a paz e
com a justiça”, me diz Margarida, que trabalhou durante 25 anos com o cardeal,
pioneira e liderança da Comissão de Justiça e Paz.
Dom Paulo ia aos presídios, acolhia
militantes clandestinos, soltava o verbo quando era preciso, conclamava ao silencia
quando era prudente, mas não deixava nunca vaga a trincheira de luta.
“Ele era
como uma estrela, mostrando o
caminho para todos que se aproximavam dele”,
resume Genevois, ela também uma luminosa estrela.
Pensando nelas todas, Margarida, Cecília, Therezinha, lembrando dom Paulo
e a multidão que toma a Sé nos dias de hoje para combater o novo golpe que se
arma contra o povo, segui minha jornada.
Parei no largo São Francisco, em frente
às arcadas da Faculdade de Direito.
Ali, em oito de agosto de 1977, Goffredo
Telles Júnior leu a “Carta aos Brasileiros”, documento assinado por emérito
juristas que pôs a nu a ilegalidade dos poderes ditatoriais.
“Queremos dar
o testemunho, para as gerações futuras, de que os ideais do Estado de Direito,
apesar da conjuntura da hora presente, vivem e atuam, hoje como ontem, no
espírito vigilante da nacionalidade”, diz o texto.
Afirma também: “Como cultores da Ciência do Direito e do Estado, nós nos
recusamos, de uma vez por todas, a aceitar a falsificação dos conceitos. Para
nós a Ditadura se chama Ditadura, e a Democracia se chama Democracia”.
E conclui: “O que queremos é ordem. Somos contrários a qualquer tipo
de subversão. Mas a ordem que queremos é a ordem do Estado de Direito. A
consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado
de Direito, já”.
Lamentável
notar que alguns que assinaram a Carta estão hoje do lado da ilegalidade e
participam de manobras que tentam golpear governo eleito pelo povo, conspiram
contra o Estado de Direito. São as voltas que no mundo dá.
Um
punhadinho de vira-casaca não atrapalha minha jornada, que logo é iluminada
pela força de jovens militantes entrincheirados em barracas na praça do
Patriarca. Fazem ali vigília cívica, rodeados por faixas e cartazes que trazem
consignas como “Não vai ter golpe, vai ter luta” e “A justiça não pode ter um
lado”, sem falar na placa onipresente que diz “Fora Gllobo!”.
É
apenas uma amostra da disposição de luta que se espraia pelos sindicatos,
entidades estudantis, movimentos populares. Enche de alegria o peito de um
brasileiro corredor.
Com
mais de doze quilômetros no lombo, sigo direto e reto para meu destino final da
jornada de hoje, o prédio da Cúria Metropolitana, no elegante bairro de
Higienópolis.
É
lá que estão guardados os arquivos da igreja, ficam lá os registros que constroem
a memória. Que também é vida e é corrida.
CORRIDA
POR MANOEL – 39ª etapa
Destino:
praça da Sé, percurso de 13,91 km, percorrido em 2h09
Distância
percorrida até agora: 416,11 km
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