Com
um sorriso e um abraço, ela me recebe. Miúda, de cabelos prateados, pequeno
brinco em forma de flor, blusa vinho, calça de ginástica e tênis, ela está
pronta para nossa caminhada, em que vai desafiar uma lesão no joelho tratada
com dezenas de sessões de fisioterapia.
Nosso
encontro é em frente ao Tuca, o Teatro da PUC, que foi palco de uma das
construções de Dodora. Um marco de ferro em que estão esculpidas as letras da
palavra A N I S T I A lembra que ali foi realizado, em novembro de 1978, o
1º Congresso Nacional pela Anistia.
Ex-presa
política, Maria Auxiliadora Arantes, hoje com 75 anos, foi uma das forças a
sustentar o movimento. Fez parte das pioneiras que deram o ponto de partida
para a criação dos comitês de anistia, como contou em entrevista à historiadora
Laura Lucena, alguns dias antes de nosso encontro:
“Eu era uma militante da
Ação Popular Marxista Leninista, e meu marido, Aldo Arantes, estava preso num
presídio do Barro Branco. Tinha sido muito torturado no DOI-Codi e depois foi
para o Barro Branco, onde podia receber visitas, que era quando as famílias dos presos políticos se encontravam.
Numa dessas visitas, fiquei conhecendo a
Celeste Fon, que era também do Sedes, e estava com dois irmãos presos, o jornalista
Antônio Carlos Fon e o Aton Fon Filho. O nosso advogado comum, Luiz Eduardo
Greenhalgh propôs uma reunião de familiares dos presos políticos do Barro
Branco. Começamos a fazer essas reuniões e fomos organizando o que foi o
programa de anistia do Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo.”
Agora, em frente à
PUC, antes do início da 38ª jornada da CORRIDA POR MANOEL, ela lembra aqueles
momentos, fazendo em primeiro lugar uma homenagem à ex-reitora da PUC Nadir
Kfouri, que abriu as portas da universidade e do teatro para a realização do
congresso da anistia.
“A gente não sabia
quantas pessoas estariam presentes. O teatro lotou. Veio gente
do Brasil inteiro, do exterior. A partir dali, a luta tomou impulso.”
Luta em que ela participava desde muito
jovem, como conta enquanto caminhamos pelas ruas de Perdizes, na zona oeste de São Paulo.
“Eu vi os tanques desfilando em
Brasília. Eu morava lá, trabalhava no governo do Jango. Foi um golpe armado
pesado e muito concreto”, diz ela.
Com o marido, muito procurado por ter
sido presidente da UNE, saiu para o exílio logo nos primeiros dias. Foram para
o Uruguai, onde nasceu seu primeiro filho, André.
Mas não dava para ficar longe: queriam
trabalhar na resistência democrática, deram um jeito de voltar ao país. “A AP
tinha uma proposta de integração dos militanbtes na produção. Então fomos eu e
a minha família morar no interior de Alagoas com a intenção não só de fazer um
trabalho político, mas ter um estilo de compromisso maior com a situação do
Brasil, com as classes camponesas, conhecer mais de perto a situação dramática
do povo brasileiro. Fomos todos presos, dia 13 de dezembro de 68, com o AI-5.
Meus filhos eram pequenos de dois e três anos de idade, ficamos presos lá em
Alagoas durante quase cinco meses”.
Absolvida no IPM, seguiu fazendo trabalho
político, agindo na clandestinidade até que, em 1976, Aldo Arantes é preso quando
a polícia invade uma reunião do PC do B em São Paulo. Começa a fazer contatos
com os advogados, faz visitas ao presídio, participa de encontros em que se
organiza a luta pela anistia.
A primeira reunião –de muitas que se
seguiram— é realizada no Instituto Sedes Sapientiae, a poucas quadras da PUC,
onde começamos a jornada de hoje.
O instituto era então uma entidade
muito jovem. Tinha sido criado em 1975 por iniciativa da madre Cristina Sodré
Dória (1916-1997), que pretendia fazer dele um espaço de encontro entre
pensamento, atuação e trabalho social, comprometido com a defesa dos direitos
humanos e da liberdade de expressão. A religiosa era também uma espécie de
madrinha de militantes que precisassem de ajuda.
“A madre Cristina sempre foi
uma aliada de militantes resistentes, de várias organizações políticas
clandestinas, as quais ela ajudou
na condição de ser uma dirigente do Sedes e vinculada a uma instituição
religiosa, de Santo Agostinho. Ela sempre teve uma posição muito solidária,
fraterna, aberta à defesa da democracia, à denúncia da violência, e, sobretudo,
à denúncia das questões mais graves que a ditadura foi apontando: os
assassinatos políticos, desaparecimentos políticos, tortura, maus tratos,
banimento, cassação. O Sedes era um lugar de abrigo, acolhimento, atuando,
assim, em uma clandestinidade parcial. A ditadura ainda vigorava. Os militares
ainda estavam no poder, tudo o que se fazia era de uma forma discreta.”
Não só a ditadura
estava em pleno vigor, como ali perto da sede do instituto havia prova viva da
violência criminosa perpetrada pelo regime: o convento dos frades dominicanos,
invadido em 1969 pela polícia.
Hoje não há marcas
no prédio de cimento, de construção até modernosa, linhas retas, severas. Basta
falar com qualquer um dos religiosos, porém, que a memória se aviva como um
turbilhão: nos dias que precederam a morte de Marighella foram presos os frades
Domingos Maia Leite (provincial), Edson
Braga de Souza (prior), Maurício (padre), e os estudantes Tito de Alencar,
Roberto Romano, Nestor de Brito, Giorgio Callegari.
Apesar das cicatrizes deixadas pela
repressão, os dominicanos seguiram firmes, acolhendo o movimento de resistência à
ditadura, tanto que o convento, nos meados dos anos 1970 abriu suas salas para
reuniões dos grupos de familiares de presos políticos e entidades que lutavam
pela anistia.
Foram muitos os que se somaram à
campanha da resistência. Na nossa breve caminhada pelo bairro de Perdizes, já
passamos pela PUC de atos grandiosos, pelo convento dos dominicanos e, com mais
dois quarteirões, cruzamos pela frente da casa onde viveu Therezinha Zerbini
(1928-2015).
Casada com um general –Euryale, um dos
poucos de sua patente cassados pelo Golpe de 64--, foi presa em 1970 por ter
ajudado a conseguir o sítio em Ibiúna onde seria realizado o congresso da UNE.
Ficou oito meses da prisão, boa parte deles no presídio Tiradentes, onde
conviveu com a então guerrilheira Dilma
Rousseff. Em 1975, criou o Movimento Feminino Pela Anistia.
“As pessoas estavam cansadas [de tanta
violência]”, avalia hoje Dodora. “Havia
familiares que sabiam o que estava acontecendo, tinha os exilados, os
banidos, havia a imprensa dos movimentos clandestinos. Todas as nossas
publicações eram muito duras. Eram feitas pelos presos políticos dentro da
cadeia, que falavam “fui torturado assim tantos dias, por tal torturador, os
outros viram, o outro morreu”. Tudo saiu de dentro da cadeia.”
Grande parte dos documentos foi
abrigada, escondida e protegida pelo
Instituto Sedes Sapientiae. Logo depois da anistia, advogados de presos
políticos trataram de, aos poucos, fizeram cópias dos inquéritos, dos processos
instaurados pela ditadura militar.
Afinal, eles eram também denúncias
documentadas sobre os crimes que a repressão havia cometido. Neles, os presos
denunciavam as torturas, os maus tratos, as ações da repressão.
Carlos Lichstsztejn, diretor do Sedes, mostra assinaturas de ex-presos políticos no verso de gravura |
“Havia aqui sala e salas com a papelada”,
conta o diretor do Sedes Sapientiae, Carlos Lichstsztejn, que nos recebeu em
uma das paradas que fizemos na caminhada de hoje.
O trabalho de pesquisa, estudo e analise dos processos que se encontravam no Supremo Tribunal Militar em 1980/1981 foi um projeto patrocinado pelo Conselho Mundial de Igrejas na Suiça e no Brasil por dom Paulo Evaristo e o pastor Jaime Wright (irmão de Paulo Wright, desaparecido político)
Esse projeto teve como objetivo denunciar os crimes da ditadura com os próprios documentos do complexo policial militar do governo civil militar.
Nesses mais de 700 processos constam inúmeras denúncias e provas de assassinatos, torturas, estupros, desaparecimentos e um sem número de arbitrariedades cometidas pela ditadura e seus agentes, corroboradas pela Justiça Militar evidenciado essas atrocidades como política de estado da ditadura.
Esse projeto culminou em uma série de livros denominados "Brasil Tortura Nunca Mais", lançados a partir de janeiro de 1985, sendo o primeiro prefaciado por dom Paulo.
O prédio todo do Sedes, onde são
realizados cursos diversos, além de atendimento psicológico, é uma espécie de
arquivo do movimento pela anistia.
Nas paredes de sua biblioteca, por
exemplo, estão exibidos pôsteres com as figuras emblemáticas da luta: o senador
Teotônio Vilela, que presidiu a comissão do Congresso que analisou o projeto da
anistia, o jornalista Perseu Abramo, madre Cristina, o reverendo James Wright e
o cartunista Henfil.
Em um armário de vidro, há bibelôs e
suvenires das campanhas, além de álbuns de fotografai em que estão registradas
imagens históricas da luta do povo brasileiro contra a ditadura. Em outras
paredes, obras realizadas por presos políticos.
Cartazes do movimento em defesa da democracia, nos dias de hoje, colados em paredes de prédios da PUC |
Ajudam a mostrar a alma do instituto,
sua identidade, sua presença nas campanhas pela defesa da vida –afinal, é disso
que se tratava e se trata hoje a defesa da democracia, como diz Dodora, do alto
de suas muitas décadas de militância:
“Hoje estamos aqui --quantos anos
depois ?-- lutando pelas causas semelhantes, pela sustentação da democracia. Nesse
trajeto morreu muita gente. Muitas pessoas foram torturadas, muitas famílias
foram destroçadas, tem todos os desaparecidos. Os responsáveis não foram sequer
julgados, responsabilizados. É uma clausula pétrea da construção da democracia:
você não pode construir um país sem que todos os que fizeram em determinado
momento essa luta contra a democracia fiquem impunes.”
Ela adverte: “Falta uma determinação
política para responsabilizar julgar e punir os torturadores. Essa é uma
questão que cabe a nós todos da sociedade brasileira”.
E concluiu, falando em frente à PUC: “A
construção da democracia não foi um passeio. Ela foi uma luta de que a gente
não pode desistir”.
CORRIDA
POR MANOEL – 38ª etapa
Destino – Tuca, convento dos
dominicanos, instituto Sedes Sapientiae, com Maria Auxiliadora Arantes, em
percurso de 5,43 km realizado em 2h09
Distância total já percorrida: 402,20
km
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