5.9.18

Cecília de Lucena, alegria na voz e povo no coração


Minha mãe cantava, o vento zunia, o sol torrava, o mar rugia, e a gente, a criançada, a filharada, ria de tudo, feliz da vida, enquanto a vagoneta movida a vela seguia rangendo nos trilhos, oceano a dentro, nos molhes da praia do Cassino, no Rio Grande do Sul.

Que aventura! Mesmo naquela confusão, a voz de minha mãe cortava os ares, e nos chamava para segui-la em coro: “Viva o sol, no céu da nossa terra, vem surgindo atrás da linda serra”.

Foi nessa cena, de quando éramos todos crianças, que me veio à cabeça quando pensei na construção deste “Destino Cecília”, neste dia tão dolorido, dentro do projeto “Rumos aos Cem”, de corridas em memória e homenagem a meu pai, Joaquim de Lucena.

O cinco de setembro é triste para mim porque foi quando, em 2014, morreu Cecília.
Soa voz, porém, é eterna –pelo menos, enquanto durarmos os que nos lembramos dela. De cristal, doce, capaz de alcançar agudos impensáveis.

Naquela musiquinha ensolarada, por exemplo, ela emendava uns “Viva!, Viva!, Viva o sol!”, cada um numa oitava acima, que deixavam a gente doido. Eu, pelo menos, achava que estava tudo errado, fora de tom, desafinado –talvez porque me fosse impossível acompanhar aquela alegria na voz.

Vagonetas veleiras nos molhes de Cassino, em tempos mais modernos que os nossos

A música era para ela uma forma de libertação, de expressão, de encontro com ou outros. Muitos anos mais tarde, quando já nenhum de seus quatros filhos era criança, ela se candidatou a vereadora numa das campanhas eleitorais contra a ditadura militar. Seu projeto de trabalho era resumido numa frase, numa palavra de ordem, um desejo, um sonho, uma esperança: “Que as crianças cantem livres!”
A música está no seu próprio nome, como conta Isabel Reckziegel, sua irmã caçula, num texto que escreveu dias depois da morte de Cecília:
Cecilia foi a penúltima filha de uma família de 14 filhos, dois deles que não chegaram a crescer e dos quais resto agora eu, Isabel, do tronco da grande família de Rudolf e Alzira Monteiro Reckziegel. Mamãe escolheu esse nome em homenagem a Santa Cecilia, padroeira da Música.”
A poesia também fez parte dos anos de formação de minha mãe, que se apresentava nos saraus familiares e em festas paroquiais, diz o texto de Isabel:
“Tinha um grande repertório para ocasiões e públicos diferentes, não só em português, como em alemão. O “Poema do Brasil Selvagem” (60 páginas) é inesquecível. Nos festivais que se  realizavam na Paróquia São João, por iniciativa do “Circulo Operário”, Estanislao (irmãos mais velho) a acompanhava-a ao piano com a “Protofonia do Guarani”, de Carlos Gomes, e ela declamava:
“Vinde ó raças selvagens de minha terraÓ Povos que morreram                                                   
Ó infelizes nações massacradas...Criminosamente exterminadas...Pelas ambições desenfreadasDos invasores da América...”
Gostava também da “Canção do Tamoio”, de Gonçalves Dias, dos versos heroicos da única estrofe que ainda guardo na memória:

“Não chores, meu filho;Não chores, que a vidaÉ luta renhida:Viver é lutar.A vida é combate,Que os fracos abate,Que os fortes, os bravosSó pode exaltar.”
Foi seu amor pela poesia e pelas coisas do Brasil que me fez escolher o Espaço de Leitura Cecília Meireles, na Lapa, zona oeste, como o meu “destino Cecília”.
Foi complicado chegar. Pelo mapa, não daria mais de oito quilômetros, quase tudo plano, no percurso até uma ruela simpática, arborizada, pequenina, encurvado nos meandros da colina que leva ao alto da Cerro Corá.

Seguiria reto para o coração da Lapa, entraria à esquerda na Pio XI, muito conhecida, e logo uma praça seria a senha para abandonar o caminho principal e chegar à vereda do meu destino.

No papel, uma beleza! Deixei passar, porém, aquela tal entrada à esquerda e, quando resolvi iniciar a subida já estava longe, as ruas se encabritavam e serpenteavam, há uma conformação labiríntica naquela região...
Demorei mais e percorri mais quilômetros do que pretendia, mas enfim cheguei à rua Araçatuba, onde fica esse espaço simples, de construção ainda mais velha do que eu, em meio a uma bela área verde.

Lá aproveite para lembrar um pouco da obra de Cecília Meireles, de seu “Romanceiro da Inconfidência”, de versos que parecem tão reais, concretos, descritivos dos dias de hoje:

 A terra tão ricae – ó almas inertes! –o povo tão pobre...Ninguém que proteste!
           
Há protesto, sim! Afinal, é esse o coração, a essência, a própria razão de ser do “Romanceiro”:
“Estes branquinhos do Reinonos querem tomar a terra:porém, mais tarde ou mais cedo,os deitamos fora dela.”
Outro trecho nos faz, mais uma vez, lembrar dos dias de hoje, da partidarização da Justiça, de processos sem provas, de prisão de heróis do povo brasileiro: 
“Toda vez que um justo gritaUm carrasco o vem calarQuem não presta fica vivo,Quem é bom, mandam matar.”
O monumental poema de Meireles abriga ainda muitas e muitas frases que ecoam na memória, são repetidas por tantos, vezes sem conta. Estão tão perto que, às vezes, nos enganamos, como eu, hoje, que me embaralhei todo, enquanto grava o vídeo do dia, para reproduzir estes versos tão queridos, emocionantes: Liberdade, essa palavra/ que o sonho humano alimenta,/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda". 




Minha mãe entendia o desejo por liberdade, a ânsia por justiça, a fome de igualdade. Dedicou sua vida a isso, desde os cursos que dava a agricultores pelos mais distantes rincões do Rio Grande do Sul, até a militância nos movimentos feminista, nas lutas contra a ditadura, nas mobilizações contra a carestia, nos encontros com campeões da liberdade (acima, foto dela com Teotônio Vilela).

Sobre isso, é melhor deixar que uma de suas camaradas em armas (a arma da palavra e da esperança), parceiras de luta, fale um pouco. No vídeo a seguir, depoimento muito especial gravado pro Jussara Cony, ela também um ícone da luta das mulheres no Rio Grande do Sul.




VAMO QUE VAMO, rumo aos 100!

Percurso do dia: 13,86 km (confira abaixo vídeo sobre o roteiro)
Distância acumulada: 45 km


A seguir, reproduzo na íntegra o texto de Isabel Reckziegel que conta um pouco da vida de minha mãe.

Homenagem a CECÍLIA

Cecilia foi a penúltima filha, de uma família de 14 filhos, dois deles que não chegaram a crescer e dos quais restamos agora, Francisca, a Tita; Josephina Margarida e eu, Isabel do tronco da grande família de Rudolf e Alzira Monteiro Reckziegel. Mamãe escolheu este nome em homenagem a Santa Cecilia, padroeira da Musica por quem intercedera para que ele aprendesse harmônio e pudesse utilizar este conhecimento como professor e maestro, Santa Cecilia foi tão generosa que pediu este dom para outros  descendentes
Teve uma infância feliz, o amor e carinho de pais, irmãos e avós. Burga, que retratou nossa infância em poéticos versos refere que: “A Ceci, quando era bem pequeninha, esteve bem mal. Até foi batizada em casa, mas ficou bem boa. Fui junto a Mato Leitão, assistir as cerimônias na Igreja, Liebinha. Fomos de carrocinha. Gostei da viagem, então “
Este apelido Liebe, deve-se ao nosso irmão mais velho, Luiz que jesuíta queria ser. Quando veio em férias do seminário e viu aquela, pequerrucha exclamou: ”Wie  liebchen!”o que significa: que queridinha, que amor. Assim ela ficou sendo nossa LIEBE.
Foi uma fiel discípula de Jesus e sua mãe Maria, tendo pertencido a Congregação Mariana, e ao Apostolada da Oração e, quando surgiu a “Ação Católica” foi “Benjamina” “Aspirante “e “Jucista” já na Faculdade de Serviço Social. Destacou-se pela liderança, tendo sido escolhida pra coordenar os grupos de aspirantes; trabalho catequético, naquele “Exército de Cristo”,Aí também se destacou pela liderança,tendo sido escolhida para a coordenação e orientação do grupo de jovens aspirantes .Era um trabalho de catequese no Exército de Cristo,
Estudou muito e sempre com notas altas e louvores. Muito inteligente, sua fenomenal  memória, foi muito bem  aproveitada a serviço dos que a cercavam, em casa, na Escola e na Paróquia.
O “Poema do Brasil Selvagem” (60 páginas) é inesquecível. Nos Festivais que se  realizavam na Paróquia São João, por iniciativa do “Circulo Operário”. Estanisláo acompanhava-a ao piano com a “Protofonia do Guarani”, de Carlos Gomes e ela declamava:
“Vinde ó raças selvagens de minha terra
Ó Povos que morreram                                                      
Ó infelizes nações massacradas...
Criminosamente exterminadas...
Pelas ambições desenfreadas
Dos invasores da América,
Tinha um grande repertório para ocasiões e públicos diferentes, não só em português, como em alemão.
Estudou na Escola Santa Elizabeth, junto a Capela do mesmo nome, da Comunidade alemã, onde também fez a  primeira Comunhão e onde nos alojamos por ocasião da enchente de 1941
Fez o curso ginasial no Colégio Bom  Conselho –a expensas das Irmãs Franciscanas() onde éramos  colegas. Lembro bem de nossas voltas do colégio, no tempo dos bondes, Descíamos no fim da linha(onde agora desemboca a Av Emilio Esteves),comprávamos o pão e íamos comendo os bicos do pão ,rindo e conversando. Como era gostoso!
 O segundo grau na Escola Ernesto Dorneles propiciou-lhe desenvolver melhor Habilidades manuais em couro, madeira e metal, cujos trabalhos ainda existem. Também   aprendeu a tocar piano e participou de corais e grupos de artes cênicas.
Ingressou na Escola de Serviço Social e aí estivemos novamente juntas como colegas.
Nossa turma era muito amiga. Daí surgiram diversos pares que se casaram: Cecilia e Joaquim (colegas), Nereida  que casou com  meu irmão José,  e Maria Teresa, que fazia parte da turma e namorou  e casou com Sanseverino.  Maria Teresa até hoje conta da acolhida de nossa família. Fizeram vigília (eram três catarinenses) durante a noite, pela morte de nossa querida Mana a Teresinha, em 1951,
Passaram a noite preparando café para servir nossos parentes que chegavam do interior em ônibus...
Cecilia casou no final do curso, dia 8 de dezembro  de 1954 (festa da Imaculada Conceição ), com Joaquim, na Igreja de Santa Maria Goretti.
Informaram ao Papa de seu casamento e, tempos depois receberam um diploma com a benção apostólica, assinada por João XXIII.
Eram ambos fervorosos e praticantes da Religião, de missa e comunhão diária.
O primeiro filho, Rodolfo, teve grande influência da atitude dos pais, acompanhava-os nas missas e, um dia seguiu-os e abriu a boca,querendo comungar. O oficiante deu-lhe a Santa Comunhão e só depois soube que ainda não fizera a primeira. Conversou com o pequeno e concluiu que estava sabendo o que fazia. Rodolfinho era muito atento -ainda é - ao que lhe falavam e utilizava as lições. Um dia, Tita que estava vestindo-o não encontrava seus sapatinhos e ele disse: “procurareis e achareis”. Agora é da área de Informática na Folha de São Paulo, maratonista e escritor.
Liebe teve quatro filhos, Rodolfo, Teresa, Rafael e João e quatro netas,Laura,Claudia,Camila e Juliana. Até hoje continuam extremosos amigos que se comunicam e se amam, como difícil encontrar outros iguais. Quando se reúnem cantam e contam situações significativas do passado em clima jocoso, transformando episódios turbulentos de vida, em saudosa e alegre reminiscência.
Cecilia teve uma vida ativa e fecunda durante 70 anos. Foi até candidata a cargo eletivo, experiência triste, pois constatou o que se sabe: o dinheiro é um senhor, compra votos e elege políticos que, como pastores de si mesmos em detrimento daqueles honestos e transparentes, são eleitos. Foi uma dura experiência, mas não esmoreceu, trabalhando com grupos, em dupla com seu marido, levando a mudanças nas Comunidades e acreditando sempre na possibilidade humana de transformar o mundo em um lugar melhor para todos.
Ela acreditava no Amor, o eterno Amor, e, ao ter que deixar atividades, por problemas neurológicos, foi muito bem cuidada e continuou sendo amada, tendo desfrutado da presença dos filhos, marido, irmãs, parentes e das dedicadas cuidadoras, Olga e Eliane. Sofreu diversos e graves problemas físicos que a impossibilitaram de deambular e dialogar. E exigiram muita e constante atenção e ajuda, mas, mesmo quando aparentava um isolamento, nos surpreendia ao dar um beijinho quando alguém a abraçava e aproximava o rosto ou quando acompanhava com o pé uma musica, mesmo nos últimos tempos  Deve ter sofrido muito, guardando tudo em seu coração, a exemplo de Maria, mas tudo que acontece, acontece por algum motivo  criou e deixou  frutos que o atestam como diz a Escritura: “A arvore boa dá bons frutos e, por seus frutos a conhecereis.”
Recebia periodicamente a administração dos Santos Óleos, sacramento para mantê-la ligada ao Corpo Místico de Cristo e do Reino dos Céus, onde deve estar agora.
Como um dia me disse Joaquim: Vê a Epistola aos Efésios: 1,5: ”Ele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por Jesus Cristo, conforme o beneplácito da sua vontade para louvor e glória da sua graça.” e,  em João,14.1: ”Não se perturbe o vosso coração, Credes em Deus, crede também em mim. Vou preparar-vos um lugar, virei novamente e vos levarei comigo, afim de que, onde eu estiver estejais vós também.”
Liebe está agora face a face com Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo que a recebeu  de braços abertos pois purificou-a, assim como a nós durante esses 14 anos. Está suplicando ao Espírito Santo por cada um desta Grande Família peregrina.

POR QUE RUMO AOS 100

Meu pai morreu no dia 10 de julho. Seu último aniversário, em 16 de setembro de 2017, foi passado no hospital.
Dias antes, a família havia recebido o resultado de uma série de exames que se desenrolavam a passos de tartaruga desde o final de agosto: câncer no estômago.
Por causa dos exames e das dores, meu pai recebia medicamentos que, às vezes, o deixavam meio grogue. Mesmo assim, estava lúcido, conversava e gostava de lembrar momentos do passado.
No dia do aniversário, a ordem do hospital foi subvertida com a chegada das gentes mais próximas, que trazia bolo, docinhos, refrigerante.
Como a presença das visitas era restrita, os festejos acabaram sendo em várias levas. Eu apareci para a segunda rodada de bolo, apagar as velinhas, cantar o “Parabéns”, repetindo também a versão gauchesca da canção, que termina assim: “Que tu tenhas, sempre e todo o dia, paz e alegria na lavoura da amizade”.
Apesar de parecer meio de saco cheio, meu pai enfrentou com galhardia as brincadeiras. Cantou junto, meio arrevesado, fez esforço para soprar as velinhas, posou para fotos e mais fotos, deu beijinhos, ofereceu a careca para outros beijinhos.
De vez em quando, dava uma risada meio tossida, falava qualquer coisa, enquanto eu chorava por dentro, tentando represar a emoção e me preguntando, em silencia, por que eu achava que tinha de segurar o choro.
Era melhor.
Chegou a hora das despedidas, os presentes já abertos, abraços apertados, copos largados pelos lados, docinhos devorados.
Fui ainda mais uma vez abraçar e cumprimentar meu pai. E falei: “Oitenta e oito anos, hein, que beleza!”
Ao que ele respondeu na lata, sem perder o embalo da conversa: “Rumo aos cem!
É esse o espírito que quero guardar comigo, que quero aprender e tentar ensinar. É esse espírito que quero homenagear nesta série de corridas, que devem somar, até o dia 16 próximo, 89 anos do nascimento de Joaquim de Lucena, um percurso total de cem quilômetros.
    






  



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