“Ainda bem que você está conseguindo correr”, me disse hoje
alguém com carinhosa simpatia. É o que também lembram fisioterapeuta,
treinador, médico que me acompanham na tentativa de fazer com que eu consiga
seguir rodando pelo asfalto da vida. Tentativa que enfrenta fortes
dificuldades: ao longe de sete meses lesões e dores impediram que o corpo velho
saísse pelas ruas com o ritmo e a velocidade que eu desejava. Precisava,
talvez.
Pelo menos, agora, consigo correr, ainda que seja aos
soluços, aos gorgulhos, percorrendo pequenos trechos, descansando, caminhando,
para seguir depois um novo trecho e assim por diante, até atingir a distância
ou o objetivo desejado.
Por mais que não seja ótimo, por mais que não seja a mesma
coisa que mergulhar em quilômetros sem fim, esquecendo do mundo e de mim, é
bom, é gostoso, é liberador, libertador, permite que eu volte a ter na corrida
uma amiga para construir reflexões.
Assim é que estou conseguindo, apesar das dificuldades,
levar adiante este projeto Rumo aos 100, de homenagem corrida ao meu pai,
Joaquim de Lucena, e aos joaquins de luta de nossa história.
Meu destino Joaquim de hoje foi a rua Machado de Assis, na
região da Vila Mariana, zona sul, a pouco mais de seis quilômetros de meu ponto
de largada, a estação Sumaré do metrô, na zona oeste de São Paulo.
Final da rua Machado de Assis, na região da Vila Mariana |
Alguém pode reclamar: o que Machado tem a ver com Joaquim? Pois veja que o nome completo do maior escritor brasileiro, se é que se pode legitimamente fazer esse tipo de listagem, é nada menos que Joaquim Maria Machado de Assis –aliás, em seu primeiro poema publicado, ele se assinou J.M.M Assis.
Pois o “Bruxo de Cosme Velho” –um dos apelidos do escritor-
não só se chama Joaquim como tem joaquins como personagem. Estou falando, é
claro, do filósofo Quincas Borba, que aparece nas “Memórias Póstumas de Brás
Cubas” e, depois, no próprio “Quincas Borba”. O nome é também dado ao cachorro
do personagem.
São joaquins celebrados em prosa e verso, personagens que
comovem e enraivecem, que provocam solidariedade e indignação, tal e qual cada
um de nós nas nossas vidas. E que, por seus atos e palavras, por sua
exuberância ou simplicidade, ensimesmamento ou expansividade, provocam mudanças
nas vidas ao seu redor –e mesmo muito mais longe.
É o que fazia também o Joaquim de verdade, real e concreto,
que venho lembrando tanto nessas minhas corridas. Exemplo disso é o relato que
fez um velho amigo de meu pai, também querido de nós todos, os filhos de
Joaquim. Para saber mais, confira o vídeo abaixo.
VAMO QUE VAMO, RUMO AOS 100
Percurso de hoje: 8,85 km (confira o vídeo abaixo para saber
mais sobre o destino Machado de Assis)
Total percorrido até agora: 53,85 km
POR QUE RUMO AOS 100
Meu pai morreu no dia 10 de julho. Seu
último aniversário, em 16 de setembro de 2017, foi passado no hospital.
Dias antes, a família havia recebido o
resultado de uma série de exames que se desenrolavam a passos de tartaruga
desde o final de agosto: câncer no estômago.
Por causa dos exames e das dores, meu
pai recebia medicamentos que, às vezes, o deixavam meio grogue. Mesmo assim,
estava lúcido, conversava e gostava de lembrar momentos do passado.
No dia do aniversário, a ordem do
hospital foi subvertida com a chegada das gentes mais próximas, que trazia
bolo, docinhos, refrigerante.
Como a presença das visitas era
restrita, os festejos acabaram sendo em várias levas. Eu apareci para a segunda
rodada de bolo, apagar as velinhas, cantar o “Parabéns”, repetindo também a
versão gauchesca da canção, que termina assim: “Que tu tenhas, sempre e todo o
dia, paz e alegria na lavoura da amizade”.
Apesar de parecer meio de saco cheio,
meu pai enfrentou com galhardia as brincadeiras. Cantou junto, meio arrevesado,
fez esforço para soprar as velinhas, posou para fotos e mais fotos, deu
beijinhos, ofereceu a careca para outros beijinhos.
De vez em quando, dava uma risada meio
tossida, falava qualquer coisa, enquanto eu chorava por dentro, tentando
represar a emoção e me preguntando, em silencia, por que eu achava que tinha de
segurar o choro.
Era melhor.
Chegou a hora das despedidas, os
presentes já abertos, abraços apertados, copos largados pelos lados, docinhos
devorados.
Fui ainda mais uma vez abraçar e
cumprimentar meu pai. E falei: “Oitenta e oito anos, hein, que beleza!”
Ao que ele respondeu na lata, sem
perder o embalo da conversa: “Rumo aos cem!”
É esse o espírito que quero guardar
comigo, que quero aprender e tentar ensinar. É esse espírito que quero
homenagear nesta série de corridas, que devem somar, até o dia 16 próximo, 89
anos do nascimento de Joaquim de Lucena, um percurso total de cem quilômetros.
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