1.9.18

Rumo aos cem! – em memória de Joaquim de Lucena


Meu pai morreu no dia 10 de julho. Seu último aniversário, em 16 de setembro de 2017, foi passado no hospital.

Dias antes, a família havia recebido o resultado de uma série de exames que se desenrolavam a passos de tartaruga desde o final de agosto: câncer no estômago.

Por causa dos exames e das dores, meu pai recebia medicamentos que, às vezes, o deixavam meio grogue. Mesmo assim, estava lúcido, conversava e gostava de lembrar momentos do passado.

No dia do aniversário, a ordem do hospital foi subvertida com a chegada das gentes mais próximas, que trazia bolo, docinhos, refrigerante.

Como a presença das visitas era restrita, os festejos acabaram sendo em várias levas. Eu apareci para a segunda rodada de bolo, apagar as velinhas, cantar o “Parabéns”, repetindo também a versão gauchesca da canção, que termina assim: “Que tu tenhas, sempre e todo o dia, paz e alegria na lavoura da amizade”.



Apesar de parecer meio de saco cheio, meu pai enfrentou com galhardia as brincadeiras. Cantou junto, meio arrevesado, fez esforço para soprar as velinhas, posou para fotos e mais fotos, deu beijinhos, ofereceu a careca para outros beijinhos.

De vez em quando, dava uma risada meio tossida, falava qualquer coisa, enquanto eu chorava por dentro, tentando represar a emoção e me preguntando, em silêncio, porque eu 
achava que tinha de segurar o choro.

Era melhor.

Chegou a hora das despedidas, os presentes já abertos, abraços apertados, copos largados pelos lados, docinhos devorados.
Fui ainda mais uma vez abraçar e cumprimentar meu pai. E falei: “Oitenta e oito anos, hein, que beleza!”

Ao que ele respondeu na lata, sem perder o embalo da conversa: “Rumo aos cem!”

É esse o espírito que quero guardar comigo, que quero aprender e tentar ensinar. É esse espírito que quero homenagear na série de corridas que começo hoje e que deve somar, até o dia 16 próximo, 89 anos do nascimento de Joaquim de Lucena, um percurso total de cem quilômetros.

Correr é o meu jeito de festejar, de homenagear, de chorar, de pesquisar, de perguntar e de tentar encontrar respostas.

Já corri 460 quilômetros por São Paulo, ao longo de quarenta e poucos dias, para homenagear a cidade que na época chegava aos 460 anos de fundação.

Já fiz quarenta corridas, em 2016, para marcar os quarenta anos do assassinato do metalúrgico Manoel Fiel Filho, morto nas câmaras de tortura da ditadura militar.

Percorri quilômetros sem conta pelos intestinos do Brasil no projeto cívico-esportivo-cultural Maratonando com o MST, em que visitei, como jornalista-corredor-militante, assentamentos e acampamentos do povo sem terra.

No ano passado, quando fiz sessenta anos e entrei oficialmente na velhice, percorri no ano o equivalente a sessenta maratonas, aproveitando a jornada para discutir questões de saúde, qualidade de vida e inclusão social dos mais velhos. 

Agora, corro por meu pai.



Escolhi como destino desta primeira jornada a estação de metrô São Joaquim. Ela toma emprestado o nome da rua a que chegam as escadarias do subterrâneo—uma importante artéria do bairro Liberdade.

Por sua vez, a rua foi nomeada em homenagem a um figurão que lá morou no século 19, o comerciante português Joaquim Lopes Lebre, criador do serviço médico assistencial que gerou o complexo médico-hospitalar Beneficência Portuguesa em São Paulo.

Segundo conta a Wikipédia, “Pelos serviços prestados à comunidade portuguesa no Brasil, bem como às vítimas das inundações que assolaram Portugal em 1877, o rei Luís I concedeu-lhe o título de barão de São Joaquim em 1878, elevando-o à dignidade de visconde em 1881. Em 1890, o rei Carlos I elevou-o a conde.

O São Joaquim propriamente dito foi, segundo a crença cristã, o pai de Maria, mãe de Jesus Cristo.

Escolhi esse destino para a largada do projeto RUMO AOS 100 porque meu pai, durante seu primeiro terço de vida, talvez mesmo um pouco mais, comungou com a religiosidade.

Por fé, desejo de sair de casa ou única opção para um filho de família pobre seguir nos estudos –ou talvez tudo isso junto--, entrou no seminário no final da adolescência, embrenhando-se no interior do Rio Grande do Sul, no convento dos jesuítas em Pareci.

“Entrei como noviço. O noviciado é um período de introdução à vida religiosa. Depois de dois anos, se faz os votos de pobreza, castidade e obediência, continua estudando. Era formação de jesuíta, os jesuítas têm a fama de serem os mais severos”, contou ele em um depoimento colhido por minha filha mais velha, Laura, em 2010.

Ali estudou teologia, sociologia, psicologia, fez curso de latim –ao longo da vida, costumava citar frases que lhe ficaram na memória. Gostava de tentar apaziguar discussões com o ditado “De gustibus e de coloribus non discutambus”, uma corruptela aportuguesada do original latino “De gustibut et coloribus non est disputandum” –Gosto não se discute ou, para os mais moderninhos, cada um com seu cada qual e vamo que vamo.

Apesar de ter sua cultura enriquecida, logo percebeu que aquele não era o seu caminho. “Um seminário de formação de padres tem toda uma estrutura, seu regimento. Eu logo me desiludi da convivência como um todo. Pedi dispensa e tive que aguardar um certo tempo para ser dispensado dos votos. Me desiludi das regras deles, saí da escola, desisti de ser padre”.

Era irrequieto, como diz sua irmã caçula, Ana Maria, neste depoimento em vídeo em que lembra um pouco da convivência com o irmão e da própria existência da família Lucena, tão sofrida.



Volto à questão da religiosidade de Joaquim Lucena, que fez com que eu escolhesse essa alusão a São Joaquim como primeiro destino de meu projeto.

Ele largou o convento, mas manteve a vontade de ajudar na promoção humana. Entrou na faculdade de Serviço Social, que então estava recém nascendo como disciplina e profissão de grau universitário.

Foi lá que conheceu minha mãe, Cecília, filha de família supercatólica. Casados, os dois participaram do Movimento Familiar Cristão. O apoio de parte da igreja e de muitos dos casais que participavam do MFC ao Golpe de 64 faz com que ele comece a se afastar do catolicismo.

Ele fala sobre isso na entrevista que deu a Laura:

“Eu tive a minha fase de católico. Apesar de ter aproveitado muito e de isso ter influenciado muito a minha formação, aos poucos fui compreendendo que a fé em Deus e na igreja católica nada tinha a ver com o ser humano. Esse processo esteve distante de todos meus familiares.

Uma explicação para essa transformação foi o sentimento de que a vida acontece como acontece. Nasce, cresce, vai trabalhar, adoece, tem saúde, não tem saúde. E termina com a morte. Não tem nada de outro mundo.”

Talvez fosse melhor acabar este texto no ponto da última frase. Mas não. Quero dizer que, de certa forma, a corrida também ensina isso para quem quiser aprender: as coisas são como são.

A gente treina, se esforça, faz planos. E leva um tombo. Ou o contrário: corre ainda mais ou melhor do que imaginava ser possível. Ou seja: nem sempre o resultado, qualquer que seja, é diretamente proporcional ao esforço, dedicação e tempo que o corredor coloca no projeto. O resultado é aquele obtido, e pronto, não menos nem mais.

O corredor balança. Há quem se deprima por ter terminado a maratona em um minuto a mais do que desejava; há quem exulte de forma esplendorosa em uma corrida qualquer, de casa até a esquina, sem relógio, sem lenço nem documento. Cada corrida é o que é.

Fernando Pessoa, o poeta português, ensinou isso em um poema sobre a natureza das coisa. Assinado por Alberto Caiero, um de seus heterônimos, diz:

“A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
 Basta existir para se ser completo.
 Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais. Naturalmente.
 Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.
 Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.”

Eu adoro Fernando Pessoa. Meu pai também gostava dele, mas adorava Camões muito mais, com enlevo e entusiasmo. Volta e meia, com intrépida grandiloquência, desatava a declamar: “As armas e os barões assinalados...”

A leitura de Camões, repetidas e repetidas vezes, acompanhou meu pai até o fim de seus dias. Uma semana antes do fim, ainda li para ele os primeiros versos de “Os Lusíadas”.

Espero que a poesia acompanhe a minha corrida, que minha corrida acompanhe a poesia.



Hoje foram pouco mais de sete quilômetros de jornada, chegando até onde Eleonora estava me esperando, participando comigo também deste momento, como em todos os outros, há quase quarenta anos.

Amanhã tem mais: farei uma homenagem a outro Joaquim, o Câmara Ferreira, comunista, guerrilheiro, lutador da causa da democracia.

Vamo que vamo, rumo aos cem!



Percurso do dia: 7, 19 km (abaixo, vídeo produzido logo ao final da corrida)




Reproduzo a seguir obituário publicado no jornal "Folha de S. Paulo" (clique no título para acessar o texto original e galeria de fotos)

JOAQUIM DE LUCENA (1929 - 2018)
Apaixonado pela vida, foi um construtor de sonhos

Gaúcho lutou em defesa da democracia e pela formação de líderes sociais

Ricardo Hiar
SÃO PAULO

Não foi apenas a formação como assistente social que tornou o gaúcho Joaquim de Lucena um homem engajado em causas sociais. A preocupação com a comunidade, com a formação de lideranças e o desejo de uma sociedade mais justa estavam na essência dele.

Para se proteger do frio de Porto Alegre (RS) era comum que Joaquim saísse de casa usando boina e casaco, itens que nem sempre estavam com ele no regresso. Bastava ver alguém passando frio que não pensava duas vezes para tirar seu casaco e oferecer ajuda.

Ele tinha uma paixão genuína pelo aprendizado e sempre buscou se especializar nas áreas em que atuou. Filho de um alfaiate, começou a trabalhar cedo e foi estudar num colégio jesuíta, onde permaneceu por quatro anos. A base educacional dessa experiência o ajudou a ser o pioneiro da família numa universidade.

No período da ditadura militar no Brasil, Joaquim foi um resistente que lutou pela democracia. De formação religiosa, lançou o livreto “A nova igreja e a história”, abordando o papel da igreja junto aos pobres. Pelo trabalho, foi perseguido, processado e até demitido de um emprego.

Mesmo com as consequências, não desistiu de suas lutas sociais e de agir por ideias.

Joaquim foi um lutador apaixonado pela vida e um construtor de sonhos. Ele dizia que não sabia dançar, mas, se ouvisse Bolero, de Maurice Ravel (1875-1937), dançava e cantava como uma criança.

Teve quatro filhos do casamento de 25 anos com Cecília: Rodolfo, Tereza, Rafael e João. Anos depois da separação, casou com Sulanir e, aos 72 anos, foi pai de Francisco.

Sempre ativo, Joaquim se reinventou depois dos 60 e ainda atuou como terapeuta. Na terça-feira (10), morreu aos 88 anos, vítima de um câncer. Deixa a esposa e cinco filhos.






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