22.6.15

Aposentado corre maratona no Alasca e volta cheio de esperança

Muro, parede, hora em que o urso sobe nas costas –maratonistas conhecem bem esse momento em que as forças parecem ter abandonado o corpo e já não há nada mais a fazer senão entregar ossos e músculos à mente, para que sejam obrigados a obedecer, dar mais um passo e outro mais. Às vezes, o desastre é no km 30, outras no km 32; há quem desabe metros antes de cruzar a linha de chegada.

Para mim, foi na altura no km 29, e não houve muro, parede ou barreira a brotar do chão, isso é mais comum acontecer quando a pessoa forçou demais ou não comeu direito ao longo do percurso. Para mim, o que veio foi o canto de sereia da Preguiça, incendiado e colorido pelo combustível do Cansaço, alimentado pelo Desânimo...

“Mais um pouco e dou uma caminhada”, disse para mim mesmo. “Está muito difícil, está doendo, as pernas não estão respondendo, que diferença faz seguir ou ficar, caminhar ou correr?”, eu me perguntava enquanto, ao mesmo tempo, calculava a combinação a empregar, se caminhadas de 300 metros para trotes de 2.700 metros ou mais preguiçosos trechos de 500 m por 2.500 metros.

Afinal, bastava chegar para vencer o desafio que havia proposto para meu corpo velho e machucado. Havia dois anos que não corria uma maratona, derrubado por lesões, tarefas profissionais e os males da idade. No meio tempo, tinha me tornado oficialmente um aposentado.

Ainda que continuasse na ativa, o momento da retirada é emblemático para a vida. Será que agora vou poder fazer tudo o que sonhava quando estava limitado pelo horário de trabalho? Ou será que agora serei esquecido, como um velho, abandonado e perdido, considerado inútil pela sociedade?

Foi essa uma das razões para a criação deste desafio: voltar a correr uma maratona é mais do que um esforço físico, é uma caminhada contra o esquecimento, uma jornada contra a depressão, uma campanha pela vida, por se demonstrar ativo, forte, guerreiro.

Ainda que fosse um guerreiro cansado no quilômetro 29 da Mayor`s Midnight Sun Marathon and Half Marathon, a Maratona do Sol da Meia Noite de Anchorage, Alasca, um inesperado destino mesmo para mim, que já percorri traçados maratonísticos nos cinco continentes.

A cidade, maior centro urbano do maior Estado norte-americano, é curiosa. Espalha-se por quilômetros sem fim –sua área é três vezes maior do que a de São Paulo--, a maior parte deles sem viva alma a habitar (tem apenas 300 mil habitantes, menos que o Grajaú e um pouquinho mais do que o Jardim Ângela).

Por isso, as distâncias são grandes e as ruas, largas, quase todas do tamanho de nossas avenidas; estradas de alta velocidade ligam bairros de Anchorage, e o transporte público não é exatamente o melhor do mundo: algumas linhas de ônibus circulam de hora em hora, outras mais movimentadas largam os veículos a cada meia hora!!!

Acabei indo de táxi para a largada, numa escola de segundo grau a quase 20 km do hotel onde fiquei. O prédio é impressionante, e os recursos disponíveis para os alunos mais ainda –enorme ginásio, salas para teatro e artes, auditório, corredores imensos, refeitório gigante, vários banheiros específicos para alunos com necessidades especiais...

Dez minutos antes da largada, num dia fresco e nublado, ótimo para correr –um alívio depois de dois dias de forte calor, em que as temperaturas passaram dos 22 graus--, começou a cerimônia, que incluiu algumas palavras do diretor da prova e a execução do Hino Nacional. Guardas florestais carregaram as bandeiras do Alasca e dos Estados Unidos (antes deles, fiz essa foto solitária com o portal de largada).



Éramos um punhado de corredores em busca do desconhecido  --havia gente dos 50 Estados dos EUA e de mais de dez países, sendo eu o sujeito que percorreu maior quilometragem para chegar àquele momento, voando mais de 8.000 quilômetros desde São Paulo.

O dia era cinza e o percurso também. Não há ouro nem gelo no trajeto, apenas asfalto cobrindo uma trilha de caminhada/pedaladas. De um lado, temos a autoestrada, de outro, um enorme terreno de propriedade do Exército norte-americano. Grama, pasto árvores, verde, é para lá que olho.


Nem bem dá um quilômetro e recebo o primeiro aviso: o joelho esquerdo bambeia e um raio passa pela lateral da perna, que fica frouxa, renga, incapaz de obedecer aos comandos do cérebro. Isso dura uma fração de segundo, o tempo suficiente para jogar pavor no corredor, que se recupera e pisa firme.

Essa dor me era conhecida. Já havia sofrido com ela em alguns treinos. Não conseguira explicação, apesar de um monte de investigações feitas pelos especialistas que me acompanham  --obrigado aí, Graziella, Marcelo, Luca, Cabrita!!! Chegamos até a fazer uma ressonância do joelho, que trouxe a feliz notícia de que minhas articulações estão em forma juvenil...

Mesmo assim, doía e me deixava a perna bamba, correndo por um músculo que vim a conhecer nos últimos meses, o tal de fibular, que leva esse nome porque acompanha o osso assemelhadamente nomeado (pelo menos, é o que eu imagino).

Bueno, já disse a sabedoria popular, o que não tem remédio remediado está. Tratei de aprumar o corpo, organizar a passada e mandar brasa, aproveitar o clima agradável e a mente desperta.

Foi muito bom!!!

Parece que a corrida é um bom tratamento para a dor, pelo menos por algum tempo. Comecei a fazer quilômetros em cima de quilômetros em ritmo melhor do que o treinado. E me disse que não era hora de economizar; não dá para sair à la louca, mas também não vou caminhar e trotar, vou dar o que tenho.



Às vezes, trazia para o dia o mantra que criei na minha segunda maratona, lá em Porto Alegre, a mais rápida que fiz até hoje: velocidade não é nada, ritmo é tudo.

Observava os corredores à minha volta, tentava marcar alguns alvos, mas logo me perdia em meus pensamentos. A corrida era comigo. E assim passei do km 10 em melhores condições do que numa corrida de dez quilômetros que fizeram em Porto Alegre.

Me animei quando vi, ao longe, uma poderosa montanha, primeiro grande sinal de vida selvagem no percurso, até então muito bem comportado.

Logo ficaria mais complicado: cruzamos sobre a rodovia e entramos numa estrada de chão batido, coberta por pedregulhos dos mais diversos tamanhos –no site da corrida, dizia que poderia haver alguns do porte de uma bola de beisebol.




Mas não era uma trilha. Por ali até carro passava. Mesmo assim, era preciso prestar bastante atenção ao terreno, evitando as depressões e morrinhos no percurso. Até uma pedra pequena poderia significar torção do pé, se a pisada entrasse de mau jeito.

Apesar do caminho civilizado, a sensação era de passar em uma floresta selvagem, pois era mato cerrado dos dois lados. Aos poucos, a trilha estreitava; de vez em quando, cruzávamos pequenas pontes sobre riachos cantantes... Eu tremia só de imaginar quão gelada a água poderia estar.



Quando passei a metade da prova, comecei a me entusiasmar. Se mantivesse o ritmo, conseguiria terminar em cinco horas cravadas, menos uns dois ou três minutos talvez, mais uns três ou quatro se diminuísse...

Fazia disso um plano, um sonho... Afinal, o esperado era completar inteiro. Ponto Final. O sonhado era terminar em cerca de seis horas. O idealizado era chegar ao fim em cinco horas e meia. Qualquer coisa abaixo disso seria motivo para comemorações infindáveis. E agora os números em meu relógio diziam que estava em ritmo para fechar em cinco horas???

Que que é isso, ô meu?   

Cada olhada no relógio instigava as pernas, os braços, o corpo todo... Conseguia correr bem –para um sujeito de quase 60 anos, com duas hérnias, costas alquebradas e musculatura ainda não totalmente consertada--, não queria descansar nem seguir os planos de caminhar e correr.

Reduzia apenas nos postos de hidratação e para me reabastecer de carboidratos de acordo com o planejado. Ali precisa mesmo caminhar, não dava para beber água em copo trotando ou correndo.

Houve momento em que até me emocionei imaginando a chegada em 4h57, talvez 4h58, mas já corri mais de 30 provas de longa distância e sei muito bem que a corrida só acaba quando termina. Do jeito que eu estava, rapidamente os quilômetros começariam a ficar mais compridos, mais demorados, viria a dor, poderia até passar das sete horas, sabe-se lá...

Desencanei do tempo, mas não do entusiasmo. Fui ficando mais lento, a musculatura das pernas se endurecia, não respondia mais aos comandos. Mesmo assim, até o km 29 a perspectiva era de chegar em menos de cinco horas, se e somente se eu mantivesse um ritmo de sete minutos por quilômetro por toda a distância que restava.

Meu ritmo já estava variando muito, chegava às vezes a oito minutos, às vezes mais. Era hora de jogar a toalha, caminhar, descansar e completar inteiro minha primeira maratona como aposentado.

Tentei, porém, correr mais um quilômetro. Deu certo, as pernas obedeceram. Então disse que seguiria correndo somente até o próximo posto de hidratação. 

Deu certo.

Não vou caminhar ainda, estava me dizendo, quando vi um sujeito parado no meio da estrada fotografando o nada, matagal e pasto do lado esquerdo, pertinho da floresta.

Bueno, nada não podia ser. Apertei os olhos e vi o bichão que o matagal escondia. Um dos famosos alces de Anchorage!!! Também parei para fotografá-lo, registrar tão preciso momento.



E Voltei a correr. Em alguns momentos, desanimava, queria descansar. Mas agora era uma briga entre quem era mais cabeça dura, se eu ou se minhas pernas.

Por enquanto, eu estava ganhando. Quando cheguei ao 39 sem ter sido obrigado a caminhar, de novo comecei a sentir lágrimas escorrendo pelo rosto.

Pensava nas minhas filhas, na minha mulher, imaginava a chegada, pensava no treinamento, nas dores e na caminhada para o conserto do corpo. 

Queria continuar correndo, apesar da Preguiça e de seu canto de sereia, do monstro do Desânimo e da poética Desesperança.

O último quilômetro traz uma íngreme subida nos derradeiros metros, curtinha e dolorida. Pois até ela enfrentei, para descer correndo em direção ao parque onde estava montado o circo da chegada.

Tinha vencido meus perrengues, correra o tempo todo, sempre no máximo que eu podia, mesmo quando o máximo foi 8min30 por quilômetro. O que vale é que a gente não afrouxa –“nóis capota mais não breca”, está escrito em ximbicas velhas que torturam o léxico e a gramática.

Estava deixando de ser um corredor da ladeira da memória e voltando a ser uma maratonista vivo e ativo, APOSENTADO CORREDOR, não corredor aposentado.




Ganhei meu beijo de prêmio, chorei com minhas filhas ao telefone. Mais tarde, fui fazer meu banquete de vencedor: cachorro-quente de linguiça feita de carne de rena. Um seria de alce??? 


2 comments:

  1. Parabéns, Rodolfo! Sou leitor recente do blog e da coluna, mas pude acompanhar a reta final da preparação para o desafio. Quantas horas levou, enfim?

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  2. Amei o texto e as fotos, parabéns Rodolfo!!!

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