Muro, parede, hora em que o
urso sobe nas costas –maratonistas conhecem bem esse momento em que as forças
parecem ter abandonado o corpo e já não há nada mais a fazer senão entregar
ossos e músculos à mente, para que sejam obrigados a obedecer, dar mais um
passo e outro mais. Às vezes, o desastre é no km 30, outras no km 32; há quem
desabe metros antes de cruzar a linha de chegada.
Para mim, foi na altura no
km 29, e não houve muro, parede ou barreira a brotar do chão, isso é mais comum
acontecer quando a pessoa forçou demais ou não comeu direito ao longo do
percurso. Para mim, o que veio foi o canto de sereia da Preguiça, incendiado e
colorido pelo combustível do Cansaço, alimentado pelo Desânimo...
“Mais um pouco e dou uma
caminhada”, disse para mim mesmo. “Está muito difícil, está doendo, as pernas
não estão respondendo, que diferença faz seguir ou ficar, caminhar ou correr?”,
eu me perguntava enquanto, ao mesmo tempo, calculava a combinação a empregar,
se caminhadas de 300 metros para trotes de 2.700 metros ou mais preguiçosos
trechos de 500 m por 2.500 metros.
Afinal, bastava chegar
para vencer o desafio que havia proposto para meu corpo velho e machucado.
Havia dois anos que não corria uma maratona, derrubado por lesões, tarefas
profissionais e os males da idade. No meio tempo, tinha me tornado oficialmente
um aposentado.
Ainda que continuasse na ativa,
o momento da retirada é emblemático para a vida. Será que agora vou poder fazer
tudo o que sonhava quando estava limitado pelo horário de trabalho? Ou será que
agora serei esquecido, como um velho, abandonado e perdido, considerado inútil
pela sociedade?
Foi essa uma das razões
para a criação deste desafio: voltar a correr uma maratona é mais do que um
esforço físico, é uma caminhada contra o esquecimento, uma jornada contra a
depressão, uma campanha pela vida, por se demonstrar ativo, forte, guerreiro.
Ainda que fosse um
guerreiro cansado no quilômetro 29 da Mayor`s Midnight Sun Marathon and Half
Marathon, a Maratona do Sol da Meia Noite de Anchorage, Alasca, um inesperado
destino mesmo para mim, que já percorri traçados maratonísticos nos cinco
continentes.
A cidade, maior centro
urbano do maior Estado norte-americano, é curiosa. Espalha-se por quilômetros
sem fim –sua área é três vezes maior do que a de São Paulo--, a maior parte
deles sem viva alma a habitar (tem apenas 300 mil habitantes, menos que o
Grajaú e um pouquinho mais do que o Jardim Ângela).
Por isso, as distâncias
são grandes e as ruas, largas, quase todas do tamanho de nossas avenidas;
estradas de alta velocidade ligam bairros de Anchorage, e o transporte público
não é exatamente o melhor do mundo: algumas linhas de ônibus circulam de hora
em hora, outras mais movimentadas largam os veículos a cada meia hora!!!
Acabei indo de táxi para a
largada, numa escola de segundo grau a quase 20 km do hotel onde fiquei. O
prédio é impressionante, e os recursos disponíveis para os alunos mais ainda –enorme
ginásio, salas para teatro e artes, auditório, corredores imensos, refeitório
gigante, vários banheiros específicos para alunos com necessidades especiais...
Dez minutos antes da
largada, num dia fresco e nublado, ótimo para correr –um alívio depois de dois
dias de forte calor, em que as temperaturas passaram dos 22 graus--, começou a
cerimônia, que incluiu algumas palavras do diretor da prova e a execução do
Hino Nacional. Guardas florestais carregaram as bandeiras do Alasca e dos
Estados Unidos (antes deles, fiz essa foto solitária com o portal de largada).
Éramos um punhado de
corredores em busca do desconhecido
--havia gente dos 50 Estados dos EUA e de mais de dez países, sendo eu o
sujeito que percorreu maior quilometragem para chegar àquele momento, voando
mais de 8.000 quilômetros desde São Paulo.
O dia era cinza e o
percurso também. Não há ouro nem gelo no trajeto, apenas asfalto cobrindo uma
trilha de caminhada/pedaladas. De um lado, temos a autoestrada, de outro, um
enorme terreno de propriedade do Exército norte-americano. Grama, pasto
árvores, verde, é para lá que olho.
Nem bem dá um quilômetro e
recebo o primeiro aviso: o joelho esquerdo bambeia e um raio passa pela lateral
da perna, que fica frouxa, renga, incapaz de obedecer aos comandos do cérebro.
Isso dura uma fração de segundo, o tempo suficiente para jogar pavor no
corredor, que se recupera e pisa firme.
Essa dor me era conhecida.
Já havia sofrido com ela em alguns treinos. Não conseguira explicação, apesar
de um monte de investigações feitas pelos especialistas que me acompanham --obrigado aí, Graziella, Marcelo, Luca,
Cabrita!!! Chegamos até a fazer uma ressonância do joelho, que trouxe a feliz
notícia de que minhas articulações estão em forma juvenil...
Mesmo assim, doía e me
deixava a perna bamba, correndo por um músculo que vim a conhecer nos últimos
meses, o tal de fibular, que leva esse nome porque acompanha o osso
assemelhadamente nomeado (pelo menos, é o que eu imagino).
Bueno, já disse a
sabedoria popular, o que não tem remédio remediado está. Tratei de aprumar o
corpo, organizar a passada e mandar brasa, aproveitar o clima agradável e a
mente desperta.
Foi muito bom!!!
Parece que a corrida é um
bom tratamento para a dor, pelo menos por algum tempo. Comecei a fazer quilômetros
em cima de quilômetros em ritmo melhor do que o treinado. E me disse que não
era hora de economizar; não dá para sair à la louca, mas também não vou
caminhar e trotar, vou dar o que tenho.
Às vezes, trazia para o
dia o mantra que criei na minha segunda maratona, lá em Porto Alegre, a mais
rápida que fiz até hoje: velocidade não é nada, ritmo é tudo.
Observava os corredores à
minha volta, tentava marcar alguns alvos, mas logo me perdia em meus
pensamentos. A corrida era comigo. E assim passei do km 10 em melhores
condições do que numa corrida de dez quilômetros que fizeram em Porto Alegre.
Me animei quando vi, ao
longe, uma poderosa montanha, primeiro grande sinal de vida selvagem no
percurso, até então muito bem comportado.
Logo ficaria mais
complicado: cruzamos sobre a rodovia e entramos numa estrada de chão batido,
coberta por pedregulhos dos mais diversos tamanhos –no site da corrida, dizia
que poderia haver alguns do porte de uma bola de beisebol.
Mas não era uma trilha.
Por ali até carro passava. Mesmo assim, era preciso prestar bastante atenção ao
terreno, evitando as depressões e morrinhos no percurso. Até uma pedra pequena
poderia significar torção do pé, se a pisada entrasse de mau jeito.
Apesar do caminho
civilizado, a sensação era de passar em uma floresta selvagem, pois era mato
cerrado dos dois lados. Aos poucos, a trilha estreitava; de vez em quando, cruzávamos
pequenas pontes sobre riachos cantantes... Eu tremia só de imaginar quão gelada
a água poderia estar.
Quando passei a metade da
prova, comecei a me entusiasmar. Se mantivesse o ritmo, conseguiria terminar em
cinco horas cravadas, menos uns dois ou três minutos talvez, mais uns três ou
quatro se diminuísse...
Fazia disso um plano, um sonho...
Afinal, o esperado era completar inteiro. Ponto Final. O sonhado era terminar
em cerca de seis horas. O idealizado era chegar ao fim em cinco horas e meia.
Qualquer coisa abaixo disso seria motivo para comemorações infindáveis. E agora
os números em meu relógio diziam que estava em ritmo para fechar em cinco horas???
Que que é isso, ô meu?
Cada olhada no relógio
instigava as pernas, os braços, o corpo todo... Conseguia correr bem –para um
sujeito de quase 60 anos, com duas hérnias, costas alquebradas e musculatura
ainda não totalmente consertada--, não queria descansar nem seguir os planos de
caminhar e correr.
Reduzia apenas nos postos
de hidratação e para me reabastecer de carboidratos de acordo com o planejado. Ali
precisa mesmo caminhar, não dava para beber água em copo trotando ou correndo.
Houve momento em que até
me emocionei imaginando a chegada em 4h57, talvez 4h58, mas já corri mais de 30
provas de longa distância e sei muito bem que a corrida só acaba quando termina.
Do jeito que eu estava, rapidamente os quilômetros começariam a ficar mais
compridos, mais demorados, viria a dor, poderia até passar das sete horas,
sabe-se lá...
Desencanei do tempo, mas
não do entusiasmo. Fui ficando mais lento, a musculatura das pernas se
endurecia, não respondia mais aos comandos. Mesmo assim, até o km 29 a
perspectiva era de chegar em menos de cinco horas, se e somente se eu
mantivesse um ritmo de sete minutos por quilômetro por toda a distância que
restava.
Meu ritmo já estava
variando muito, chegava às vezes a oito minutos, às vezes mais. Era hora de
jogar a toalha, caminhar, descansar e completar inteiro minha primeira maratona
como aposentado.
Tentei, porém, correr mais
um quilômetro. Deu certo, as pernas obedeceram. Então disse que seguiria
correndo somente até o próximo posto de hidratação.
Deu certo.
Não vou caminhar ainda,
estava me dizendo, quando vi um sujeito parado no meio da estrada fotografando
o nada, matagal e pasto do lado esquerdo, pertinho da floresta.
Bueno, nada não podia ser.
Apertei os olhos e vi o bichão que o matagal escondia. Um dos famosos alces de
Anchorage!!! Também parei para fotografá-lo, registrar tão preciso momento.
E Voltei a correr. Em
alguns momentos, desanimava, queria descansar. Mas agora era uma briga entre
quem era mais cabeça dura, se eu ou se minhas pernas.
Por enquanto, eu estava
ganhando. Quando cheguei ao 39 sem ter sido obrigado a caminhar, de novo
comecei a sentir lágrimas escorrendo pelo rosto.
Pensava nas minhas filhas,
na minha mulher, imaginava a chegada, pensava no treinamento, nas dores e na caminhada
para o conserto do corpo.
Queria continuar correndo, apesar da Preguiça e de
seu canto de sereia, do monstro do Desânimo e da poética Desesperança.
O último quilômetro traz
uma íngreme subida nos derradeiros metros, curtinha e dolorida. Pois até ela
enfrentei, para descer correndo em direção ao parque onde estava montado o
circo da chegada.
Tinha vencido meus
perrengues, correra o tempo todo, sempre no máximo que eu podia, mesmo quando o
máximo foi 8min30 por quilômetro. O que vale é que a gente não afrouxa –“nóis capota
mais não breca”, está escrito em ximbicas velhas que torturam o léxico e a
gramática.
Estava deixando de ser um
corredor da ladeira da memória e voltando a ser uma maratonista vivo e ativo,
APOSENTADO CORREDOR, não corredor aposentado.
Ganhei meu beijo de
prêmio, chorei com minhas filhas ao telefone. Mais tarde, fui fazer meu
banquete de vencedor: cachorro-quente de linguiça feita de carne de rena. Um
seria de alce???
Parabéns, Rodolfo! Sou leitor recente do blog e da coluna, mas pude acompanhar a reta final da preparação para o desafio. Quantas horas levou, enfim?
ReplyDeleteAmei o texto e as fotos, parabéns Rodolfo!!!
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