21.1.16

Cadeirante biamputado desafia ultramaratona mais difícil do Brasil

Em 2003, o estudante norte-americano de química Andre Kajlich, então com 24 anos, fazia uma temporada na Universidade de Praga. Certa noite, depois de uma festa, começou a voltar para casa e só acordou no hospital, todo enfaixado e entubado.
Tinha sido atropelado pelo metrô. Perdeu as duas pernas e a esperança de viver. Esta, pelo menos, recuperou: hoje é um dos mais conhecidos paratriatletas de aventura do mundo.
Há três anos, tornou-se o primeiro cadeirante a enfrentar aquela ultramaratona nas montanhas da serra da Mantiqueira, desafiando e vencendo os 217 quilômetros da BR135.
Agora, volta para um desafio ainda maior. Aquela ultra cresceu, virou BR135+, chega a 260 quilômetros.
A prova começou nesta quinta-feira. Segundo Monica Otero, que acompanha Andre, ele vai enfrentar o caminho aos poucos.
“A prova começa em São João da Boa Vista, e o atleta tem a escolha de ir até Paraisópolis (217 km) ou até o pesqueiro da Montanha, próximo a Campos do Jordão (260 km). Se ele chegar bem a Paraisópolis, vamos prosseguir.”
Desta vez eu não consegui conversar com o Andre, mas, em 2013, fiz uma bela entrevista com ele, que resultou em reportagens publicadas na Folha (CLIQUE AQUI) e no meu blog, então na página da Folha na internet (CLIQUE AQUI).
Reproduzo a seguir o texto publicado na época, contando a sensacional história do Andre (fotos Arquivo Pessoal). Como você vai perceber, quando publiquei o texto ainda não sabia do resultado da prova; mesmo assim, mantive o formato original. Andre completou o desafio.

 Cadeirante dos EUA enfrenta ultramaratona na serra da Mantiqueira
POR RODOLFO LUCENA
19/01/13  12:27
O cadeirante norte-americano Andre Kajlich, de 33 anos, é o primeiro cadeirante a se aventurar pelas estradas, grotas e montanhas que integram o percurso da Brazil 135, considerada por muitos a mais difícil ultramaratona do Brasil. Prova classificatória para a temível Badwater, nos EUA, tem 217 km e começou ontem em São João do Boa Vista, na divisa entre São Paulo e Minas.

Não consegui falar com ninguém, ainda, para saber em que pé está a corrida. Mas vale aquele ditado: “O milagre não é que eu consegui terminar, o milagre é que tive coragem de estar na linha de largada”.

Para Kajlich, com quem conversei na última quarta-feira, em São Paulo, o surpreendente mesmo é estar vivo, pois suas chances de sobrevivência eram mínimas depois do acidente que o deixou sem a perna esquerda e com apenas parte da coxa direita, além de muitas cicatrizes pelo corpo todo.

Ele conta como foi: “O acidente aconteceu quando eu tinha 24 anos, em dezembro de 2003. Tivemos uma festa em minha casa, em Praga, onde eu estudava química. Fiz burritos para todos, e daí saímos para as baladas. Normalmente a gente ficava fazendo festa a noite toda, tomava café na rua na madrugada. Finalmente, quando cada um pegou seu caminho, eu disse tchau para um amigo e acordei três semanas depois em um hospital, sem as pernas. Ninguém sabe como aconteceu, mas eu caí nos trilhos do metrô, o condutor me viu, mas não pode fazer nada. Basicamente, o trem inteiro passou por cima de mim.”

Ele continua: “Quando me tiraram dos trilhos, eu estava praticamente morto, sem pressão sanguínea, e mesmo assim eles foram capazes de me salvar. Muito sortudo. Perdi toda a perna esquerda, e a direita foi cortada uma pouco acima do joelho. Quebrei costelas, o pulmão foi perfurado, o fígado também foi atingido. Quase perdi o braço esquerdo, quebrado perto do cotovelo. Os médicos pensaram que eu jamais seria capaz de me movimentar. Talvez pudesse andar de cadeira de rodas e comandar o corpo para poder, por exemplo, lavar as mãos”.

E mais: “Não houve um momento em que acordei e me vi sem as pernasEu estava inconsciente e tinha momentos de lucidez, aos poucos recobrava a consciência e depois desmaiava novamente. Finalmente, quando comecei a perceber o que tinha acontecido, fiquei muito preocupado com o futuro, sem saber o que eu seria capaz de fazer. Não sabia se seria capaz de andar ou se algum dia poderia ser feliz novamente”.

Depois de quase três meses no hospital, foi transferido de volta para os EUA, para sua família: os pais são tchecos, emigraram em 1967, Andre nasceu em Edmonds, no Estado de Washington, em 1979. 

Em um ano, já conseguia caminha com pernas mecânicas e bengala, também começava a dominar melhor a cadeira de rodas.

Voltou a Praga para terminar o curso e continuar as festas. Acabou se apaixonando por Mariana, uma fotógrafa romena um ano mais velha que ele. 

Namoraram e, quando Andrés enfim viu que era hora de voltar mesmo aos EUA, em 2008, casaram. Ele já praticava um pouco de esporte na cadeira de rodas e fazia algumas caminhadas, além de gostar de nadar.
Tudo isso deu um quilo: nos EUA, participou de um triatlo de revezamento e adorou: “. Era muito bom sentir o coração batendo forte novamente. A partir dali eu fui em frente, tive sucesso.”

Sucesso é pouco: teve uma evolução impressionante em seu desempenho esportivo. Passou a treinar forte, entrou em competições de paratriatlo, fez um meio Ironman e se classificou para o pai de todos, o Ironman de Kona, no Havaí. Tirou o segundo lugar em 2011, foi campeão em 2012. E é bom também em provas curtas: foi medalhista de prata nos Mundiais de paratriatlo de Pequim-2011 e Auckland-2012.

Com as conquistas, chegaram mais apoios. No início, ele tirava do seu salário –trabalha com pesquisas em medicina de reabilitação na Universidade de Washington, em Seattle—e contava com contribuições de parentes e amigos. Tudo muito necessário: só as próteses que usa para caminhar custam mais de US$ 100 mil. E ele caminha bem.

“Não consigo correr, mas talvez seja o melhor caminhante do mundo com esse nível de amputação”, diz ele. Tão bom que vem sendo convidado pelo Exército dos EUA para ajudar nos trabalhos de reabilitação de soldados feridos nas guerras em que o país participa.

Kajlich não cansa de procurar novos desafios, como a Brazil 135, que conheceu ao ouvir no rádio uma entrevista de outro atleta cadeirante, o brasileiro Carlos Moleda. Ficou entusiasmado, entrou em contato com os organizadores e tratou de treinar. 

Não sabia exatamente como se preparar, mas subiu montanhas nevadas com sua cadeira de rodas, enfrentou gelo e barro e vai fazer o que der na serra da Mantiqueira.

“Acho que em alguns trechos terei de sair da cadeira e puxá-la com uma corda”, diz ele, que montou um equipamento especial para enfrentar trilhas, usando rodas de mountain bike em sua cadeira e martelando o equipamento até que ficasse do jeitinho que ele considerava adequado.

E vai para a luta com um sorriso: “Depois de meu acidente e do processo de recuperação, aprendi que esses grandes desafios, cheios de incertezas, são realmente onde você aprende mais, eles te dão os momentos mais definitivos da vida. Eu aprendi muito com tudo isso, de forma que hoje vejo meu acidente de uma forma muito positiva, por causa das poderosas experiências de vida que pude ter depois, como o Ironman ou esta Brazil 135. Essas conquistas me dão base e consistência para enfrentar os próximos desafios”.


No comments:

Post a Comment