Celia era uma garota linda, aventureira e rebelde. Fumava,
mantinha curta a cabeleira, pregava a autonomia das mulheres e não se filiava a
religião nenhuma –muito pelo contrário. Só isso bastaria para escandalizar a
sociedade argentina naquele fim dos anos 1920, ainda mais que a moçoila era a
caçulinha dileta de uma família de poderosos estancieiros.
Pois ela não estava nem aí. Além de tudo, defendia e
praticava, no frescor de seus 20 aninhos, a independência sexual.
Vai daí que, quando se engraçou com um rapagão desempenado,
que se apresentava como engenheiro e se dizia empreendedor do ramo da
construção civil, não demorou muito para ficar grávida, fora do casamento!!!, e
sem a benção paterna!!!
Para obrigar a família a aceitar o inevitável, engendrou com
Ernesto Guevara uma fuga de casa. Papá La Cerna se rendeu ao fogo da filha, e
não só se fez o casório como também ela, ainda menor de idade, ganhou o direito
de levar sua parte na herança.
Com a grana, Ernesto e Célia compraram uma plantação de erva
mate em Puerto Caraguatay, uma zona rural da província de Misiones, no distrito
de Montecarlo, a 1.200 quilômetros ao norte de Buenos Aires. Lá o intrépido
engenheiro poderia trabalhar e manter a gravidez da mulher longe de línguas
fofoqueiras.
Não só, como o próprio Guevara pai conta em seu livro "Meu
Filho, o Che", de 1981: "Era um lugar emocionante, cheio de animais
ferozes, trabalho perigoso, roubos e assassinatos, ventos com chuvas
intermináveis e doenças tropicais. Lá, na misteriosa Missiones, tudo atrai e
emociona. Atrai como tudo o que é perigo e emociona como toda paixão".
A citadina Celia se deu bem no meio do mato. Sua barriga de
grávida vicejou saudável e, em meados de maio, avisou o marido que tinha
chegado a hora. Foi só baixar até a praia, no próprio terreno Guevarista, nas
barrancas do rio Paraná, para pegar um barquinho ruma a Buenos Aires.
Para o parto do primogênito, a família queria a segurança e os
recursos da capital. Mas a natureza falou mais alto: na descida do rio, passando
por Rosario, as dores se fizeram sentir. Ela estava com oito meses e meio de
gravidez, não havia como prosseguir.
Assim, às 15h05 do dia 14 de maio de 1928, nasceu no
hospital Centenário aquele que o mundo conheceria por Che, comandante Guevara, herói
da humanidade, combatente da liberdade e da justiça. Nos registros oficiais,
Ernestito veio à luz no dia 14 de junho, de “parto prematuro”, explicação dada
para encobrir o fato de que o garoto fora gerado antes do casamento, realizado
em dezembro de 1927.
Passadas as naturais celebrações com a família e o período
de resguardo, o trio calafrio voltou para as barrancas do rio Paraná, no
distrito de Montecarlo.
E foi lá que este aposentado corredor –mas não corredor aposentado—se
encontrou a treinar dias atrás, em uma manhã fresquinha...
A cidade de Montecarlo é o principal ponto turístico na
região, ficando entre Foz do Iguaçu e as reduções jesuíticas de Santo Inácio.
Também é famosa pela produção de orquídeas –lá se realiza uma festa nacional
dedicada a essa flor (este site AQUI traz informações turísticas sobre a
região).
Implantada em região encoxilhada, praticamente não há trecho
plano. No meu curto treino, feito para desencaroçar as juntas depois de longa
viagem, estive sempre subindo ou descendo longas e suaves (às vezes, nem
tanto).
A cidade ainda dormia enquanto eu corria, mas deu para
perceber a quantidade de lojas de flores e o uso generoso da palavra orquídea
nos nomes de lojas, restaurantes, oficinas, hotéis e pousadas –a que eu fiquei,
por sinal, era bem boazinha, ainda que bastante simples; em contrapartida, o
café da manhã era esquálido.
Com cerca de três quilômetros de corrida já chegara à
estrada que corta os arrabaldes de Montecarlo; por algumas centenas de metros, corri
ao lado de uma plantação de árvores. A madeira seria destinada a fabricação de
móveis, outro dos orgulhos locais –há várias lojas de mesas, cadeiras, camas e
armários apresentados como “artísticos”.
Lá do alto, só me restava voltar. E assim fiz, cumprindo
seis gostosos quilometrozinhos sem dor, cheios de curiosidade pelo território
desconhecido e de emoção por trilhar percursos que possivelmente foram percorridos
pela família Guevera, já lá se vão mais de 80 anos (clique AQUI para saber mais
sobre os caminhos de Che na Argentina).
Dali partiria, já alimentado, limpo e de roupas civis, para
visitar a joia mais rara da região: el Hogar Misionero del Che.
Do lar dos
Guevara, construído por Ernesto pai com as próprias mãos (não sem ajuda de
algum empregado, por supuesto, pois a família era simples e aventureira, mas
tinha recursos), sobram ruínas tomadas pela grama, cobertas de limo e musgo,
debilmente protegidas por uma cerquinha de madeira que fecha o perímetro do quadrilátero quase nonagenário.
Uma casa apresentada como réplica daquela em que Che viveu
sua primeira infância abriga um museu simples e emocionante. A inscrição “Caraguatay
– Aqui comenzó la historia”, escrita em cartaz que encima a entrada geral do
museu dá o tom do que o visitante vai encontrar nas salas quase desnudas.
A riqueza maior
do memorial são fotos de Che menino, com a mãe e o pai, em cenas domésticas.
Em
uma delas, por exemplo, o garoto testa com o pé a temperatura do arroio Salamanca,
que serpenteia cantante por trás da propriedade, gerando pequena cascata e
piscina natural.
Há ainda cartazes, pinturas, imagens lembrando a trajetória
do Comandante. Uma pintura, em especial, marca o lugar, posicionando o Che
guerreiro em meio à paisagem missioneira.
No terreno em frente à casa, uma pequena rótula apresenta
árvores plantadas por filhos de Che quando da reinauguração do memorial, há
quase dez anos. Lá estão os nomes de Camilo, Aleida e Celia.
E há também a
indefectível lojinha, onde o visitante encontra recuerdos do passeio, como botoms,
chaveiros, canetas, camisetas e erva mate guevarista.
Sai-se de lá de espírito leve, ainda que circunspecto. A
história de Che pode ter começado ali, mas sua luta continua, abraçada por
milhares e milhões no mundo, emocionando até velhinhos de barba branca.
Vamo que vamo!
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