29.4.15

Jornada interior é mais desafiadora, diz recordista da Transmantiqueira

Nem só de velhos e cansados como eu vive este blog. Hoje trago para você uma entrevista que fiz com um jovem quarentão, que agora está no Paquistão, percorrendo os caminhos montanhosos de lá.

O motivo da entrevista foi outra montanha; um conjunto de montanahs, para ser exato, a serra da Mantiqueira, brasileira como ela só. Pois PABLO BUCCIARELLI, engenheiro de risco por profissão, atravessou a dita cuja em tempo recorde.
Reportagem que fiz com ele foi publicada na Folha alguns dias atrás (leia AQUI). Agora, trago a íntegra de nossa conversa por e-mail.

RODOLFO LUCENA -- O que é a TRANSMANTIQUEIRA?
PABLO BUCCIARELLI - Esse nome não tem origem conhecida, pegou no montanhismo em geral, após alguns montanhistas realizarem a ligação de duas ou mais travessias das mais conhecidas numa única jornada, podendo ser feita em estilos diferentes (acampar, pegar carona, não obrigatoriamente toda a pé; pode ser rápido também, sem carona, com mochila leve, mais próximo do estilo que adotei).
As travessias mais famosas da Serra da Mantiqueira, que, ao serem conectadas numa jornada formam a Transmantiqueira são: Travessia Marins-Itaguaré; Travessia da Serra Fina; Travessia Itatiaia ao Maromba via Rancho Caído; Travessia da Serra Negra e Travessia da Serra do Papagaio.

A Transmantiqueira ou qualquer uma das travessias citadas acima não possui demarcação, manutenção por Estado ou instituição pública ou privada, são todas áreas selvagens, povoadas de trilhas e rotas, com algumas linhas principais, mais conhecidas, mas que demandam orientação por mapa + bússola ou GPS.

A serra da Mantiqueira tem mais de mais de 500 km, com formação geológica começando na região de Bragança Paulista e terminando na região de Barbacena. Atravessa muitos municípios, sendo em ordem os principais: Joanópolis, Camanducaia (Vila de Monte Verde), São Bento do Sapucaí, Campos do Jordão, Delfim Moreira, Marmelópolis, Passa Quatro, Itanhandu, Itamonte, Itatiaia, Visconde de Mauá (Vila do Maromba), Alagoa e Aiuruoca.

Por que você resolveu fazer esse percurso?
Eu sempre estive andando pela Serra da Mantiqueira, então não tenho lembrança exatamente de como nasceu esse desejo, mas por sempre estar na serra, tive um desejo incontrolável de conectar toda sua extensão.

Em 2010 tentei sem sucesso em solitário realizar a Transmantiqueira. Parei depois de 12 horas correndo, com dores muito fortes nos pés. Também não tinha tanto conhecimento das serras como tenho nos dias de hoje, logo, muito provavelmente teria muitos problemas para atravessar as serras mais selvagens, na minha opinião a Travessia Marins-Itaguaré e a Travessia da Serra Fina.

Em 2013 realizei o percurso em dupla, com meu ex-adversário de Corrida de Aventura, Pedro Alex, de Niterói. Fizemos em 8 dias 3 horas e 15 minutos em novembro daquele ano, também numa época chuvosa e em total nível de exploração, sem assistência externa.

Depois disso, minha cabeça se voltou novamente para o sonho inicial, realizar a travessia em solitário, agora com a experiência cumulada de 2013, focando naqueles pontos que considerei os maiores desafios da travessia anterior: cuidado com os pés, privação do sono e trechos menos conhecidos.

Tenho uma aptidão a entrar em lugares inóspitos sem conhecimento prévio. Gosto de explorar, especialmente lugares incomuns, na contra-mão do turismo convencional. Sou ex-corredor de aventura, acostumado ao longo de 12 anos competindo a fazer provas em lugares sem conhecimento prévio, apenas com mapa e bússola.

Seu percurso foi feito em tempo recorde, segundo li. Há alguma entidade que avaliza isso?
Como disse, foi uma travessia cheia de ineditismos, um deles o seu tamanho, em 2013 com 424 km (em dupla) e em 2015 com 397 km (solo), ambos seguindo a mesma linha de percurso. Veja os mapas no seguinte link: http://pt.wikiloc.com/wikiloc/user.do?name=Pablo+Bucciarelli&id=935299.

A diferença das distâncias se deu pelos erros ou acertos em cada uma das jornadas.
Antes dessas travessias, a maior distância percorrida e registrada no montanhismo nacional para a Transmantiqueira havia sido feita por um gaúcho, Tiago Korb, com distância de 257 km, realizados em 15 dias, em estilo distinto do nosso em 2013 e do meu em solitário em 2015.

Ele fez sozinho, mas com barraca, devagar, aproveitando e dormindo bastante. Algo mais para o turismo do que para o montanhismo de velocidade. Seu percurso foi publicado também no Wikiloc: http://pt.wikiloc.com/wikiloc/view.do?id=3921643<http://pt.wikiloc.com/wikiloc/view.do?id=3921643.

Os registros confiáveis dependem dos dados do GPS que o montanhista tenha levado para a travessia. Sem isso, não se pode acreditar no relato desse ou daquele aventureiro que tenha feito a travessia.

Tiago fez um relato detalhado da sua travessia em formato de blog com fotos e que para os montanhistas que conhecem as travessias, atestam veracidade na sua jornada, além dos dados do GPS.

Antes dele, talvez, acredito que somente os índios possam ter feito tamanha travessia, porém nunca será possível saber qual a rota exata, sua distância, tempo levado etc.

A rota realizada por mim duas vezes é um caminho muito particular, que já faz parte de um projeto escrito por membros da FEMESP (Federação de Montanhismo do Estado de SP) e CBME (Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada), de autoria de Milton Dines, para a criação da Rota Mantiqueira, que teria marcações e abrigos para dar suporte aos montanhistas, similar ao que já se vê na Estrada Real ou no Caminho de Santiago de Compostela.

Logo, resumindo, o recorde anterior ao meu de 2013 era de Tiago com 257 km em 15 dias, que em 2013 sua distância foi ampliada para 424 km em 8 dias, 3 horas e 15 minutos, batido agora com 397 km (reduzido em função de navegação) em 6 dias, 5 horas e 20 minutos, aproximadamente 46 horas mais rápido.

Qual foi o momento mais emocionante da travessia?
O momento mais emocionante da travessia foi regido pela conexão maior com a espiritualidade. Em ambos os momentos, tive que lidar com os maiores desafios, quando tive sérias dificuldades para transpor as duas serras mais longas, Serra Fina e Serra do Papagaio, e perdi em cada uma 7 horas a mais da prevista por mim, em função das fortes chuvas, frio intenso e vegetação muito alta.

Cada uma teve suas particularidades, mas apesar das grandes dificuldades, desafios, e crises vividas me colocando em situação de cheque, sofrimento e quase abandono da rota, foi quando experimentei minha maior conexão com a natureza, com a Mãe Terra ou Mãe Natureza e com Deus ou Grande Espírito.

No sofrimento carnal senti meu espírito transcender e flutuar na mata, como que protegendo meu corpo daquele caos que enfrentava por não conseguir decifrar a rota em lugares já conhecidos, ou porque a vegetação estava modificada ou porque o ambiente era hostil pelas chuvas, ventos e neblina. Considero esses momentos vividos como ao mesmo tempo mágicos e de grande superação.

Chorei, gritei, bradei, bati no peito, sentei e orei, pedi perdão, agradeci e corri... sensações e comportamentos de padrão extremo, vividos sozinho em grande exposição no meio de regiões das mais selvagens da Serra da Mantiqueira, cheias de lendas e mistérios. Indico que assista ao documentário: Caminhos da Mantiqueira: https://www.dropbox.com/s/1npv6ba5u0scm1m/Caminhos%20da%20Mantiqueira.mp4?dl=0.

Muita gente que faz essas longas travessias solitárias fala de uma espécie de epifania. Você experimentou algo do gênero?

Minha busca foi mais do que uma performance esportiva, que tem seu valor, é claro, mas foi muito além disso. Foi uma travessia de cunho espiritual. Além de buscar uma conexão maior com a natureza e suas entidades, fui em busca de respostas íntimas. Sou adepto do xamanismo e aprendi a lidar com a energia da natureza em sua forma mais sutil, de forma que me sinto a cada dia mais conectado com ela.

Durante a travessia, diversas vezes me comuniquei com ela, em situações de pleno agradecimento, de pedidos íntimos, de leitura da geografia, nunca vi tantos animais na mata como dessa vez, talvez porque estava mais sensível e conectado.

Num dos momentos de maior sofrimento físico, ainda no início, talvez em função de correr em terreno mais duro, pedi a cura das dores que limitavam meus movimentos e me tiravam a concentração e o ânimo. Foi quando passei a mão sobre as pernas, em movimento lento, numa subida rumo à Base Marins, município de Delfim Moreira, e pedi ao meu xamã que me desse a cura se tivesse o merecimento.

Senti um sono anormal nesse momento, olhava a natureza ao meu redor e as copas das árvores moviam-se em círculos, e foi isso. Cheguei ao ponto de transição menos de uma hora depois, fiz uma parada para recuperação e sono, e sai para a travessia Marins-Itaguaré que em 2013 foi um caos para mim e Pedro Alex, um momento de grande crise e quase desistência (referência no texto de Pedro Alex: http://www.extremos.com.br/Blog/Pedro_Alex/131211_transmantiqueira_a_estetica_do_desconhecido/).

No final, prevendo realizar essa travessia em 14 horas, finalizei em apenas 8 horas e 30 minutos, e cheguei do outro lado da serra sem as dores, totalmente renovado, muito leve e solto, passando pelo pessoal da Caravana (como gosto de chamar), em especial o grupo com o fotógrafo André Dib e os cinegrafistas Samuel Oscar e Cassandra Cury a 15 km/h num trecho de trilha fechada cheio de raízes...

Você correu sozinho, mas teve apoio em alguns pontos, não é?
Sim, eu fiz a travessia toda a pé em solitário, mas em pontos demarcados da minha rota, por onde passaria, encontrei com uma equipe formada por alguns profissionais: http://www.extremos.com.br/online/2015/Transmantiqueira/noticias/0211/.

Essa equipe, como pode ser vista no link, tinha como principal objetivo registrar o feito. Com o fotógrafo André Dib e a cinegrafista Cassandra Cury foi possível obter imagens de terra profissionais na rede em tempo real, para a cobertura online, que teve grande repercussão no Montanhismo, e imagens aéreas de GoPro em drone por Samuel Oscar. Assim, a travessia tornou-se mais realística para quem acompanhava de fora. 

Também, nessa infra, a equipe de logística e suporte além de ajudar aos profissionais de imagem, me deram apoio para questões de troca de roupa, reposição de alimentos e local adequado para recuperação e sono. Meu assistente direto foi Vinícius Moysés que escreveu o diário no Portal Extremos: http://www.extremos.com.br/online/2015/Transmantiqueira/noticias/0304/.

Onde você dormia? Você mesmo carregava suas mochilas, barraca etc.?
Eu administrei o sono para tentar dormir apenas nos encontros com a equipe de suporte (Caravana Transmantiqueira). Fui bem sucedido nesse aspecto, dormindo apenas 30 minutos fora dessa área, e 5 minutos numa estrada, como descrito acima na outra pergunta. No total foram 18 horas de sono em 6 dias, 3 médias em média, sendo que minha meta era dormir 2 horas por noite.

Na travessia levei uma mochila com máximo 20 litros de volume sem equipamentos de camping ou bivouac. Nas transições fazia a reposição dos alimentos, além de alimentar e tomar meus suplementos. Mas minha alimentação básica sempre foi in natura, composto por frutas de consistência dura, lanches naturais, e guloseimas para ajudar a manter o bom humor, pois sou um chocólatra assumido.

Quanto custa um projeto desses, contando tudo?
Olha, não fiz uma conta, pois não tivemos patrocínio, nenhum membro da equipe foi por trabalho remunerado, mas por amor à montanha, amor à Mantiqueira, com o desejo de fazer voz a esse projeto que tem o propósito de chamar atenção à exploração desordenada dessa região que faz parte da transição entre os biomas do Cerrado e Mata Atlântica.

O custo desse projeto, caso fosse bancado totalmente, tanto meus gastos pessoais, como alimentação, alojamentos antes e depois, equipamentos, e da Caravana com os documentaristas e veículos de suporte, as diárias de cada profissional e o pós-travessia, a produtora com o documentário e o futuro livro, chegaria a mais de R$ 50 mil.

Por favor, fale um pouco de sua vida "civil"? Sua principal atividade qual é? Como foi sua formação? Em que sua atividade principal se relaciona ou difere de sua vida de montanhista?
Sou Físico de formação pela USP, há quase 20 anos atuando como Engenheiro de Riscos ligado ao mercado segurador, e aliando meu tempo de dedicação profissional às atividades esportivas e de exploração natural.
Minhas principais conquistas foram as vitórias na maior prova solo de Corrida de Aventura do país, a Chauás 300 km em 2010, Conquista Tu Cumbre 120 km na Argentina também em 2010, Bi-Campeonato da Haka Expedition 150 km em 2010 e 2011, Expedição Terra de Gigantes 50 km em 2010, Vice-Campeão da XK Traverse Argentina de 450 km em 2009, Vice-Campeão do Circuito Adventure Camp 2009, além de quatro participações no Desafio de los Volcanes de 500 km na Patagônia entre 2003 e 2007, considerada uma das mais difíceis provas já realizadas no mundo.

E como foi o seu começo no esporte, onde e quando você nasceu?
Nasci em São Paulo em 1975, dia 01/fevereiro, aquariano. Família italiana por parte de pai e de Santa Catarina por parte de mãe, morando no bairro das Perdizes, vivendo a infância como atleta de várias modalidades esportivas no clube Sociedade Esportiva Palmeiras, onde fui criado e aprendi a tomar gosto por esportes de alto rendimento.
Aos seis anos de idade comecei a nadar, aos oitos anos de idade a jogar futebol de salão, praticar ginástica olímpica, jogar tênis de mesa, tudo muito cedo. Fiz saltos ornamentais, lutava judô ainda, pratiquei vôlei e basquete, e a cada nova modalidade, um novo fundamento que treinava.

Tive o futebol profissional na mira, em função do clube e do meu pai ser um sócio importante, de influência e trabalhar no meio esportivo na televisão. Porém, com sua morte em 1989, aos meus 14 anos tive que focar menos no esporte e mais na carreira profissional.

Comecei a estudar Física na USP em 1995 mas já trabalhava desde 1990 para ajudar em casa. Sem opção, o esporte ficou em segundo plano, como atividade complementar. Porém, nunca deixei de praticar e seguir o estilo competitivo e focado de atleta que tomei gosto desde cedo.

 Mesmo com uma lesão séria no joelho, que me tirou do futebol amador em 1997, continuei minha busca passando por algumas modalidades que me deram grande reforço, como por exemplo o polo aquático. Foi onde conheci meu primeiro treinador para corridas, Professor José Luiz Signorini da USP, responsável por recuperar minha autoestima competitiva após a lesão no joelho.

Enquanto ministrava aulas de polo aquático, me permitiu ascender na modalidade e ainda me dava suporte nos treinos de corrida, ciclismo, canoagem e musculação. Foi um grande incentivador e quem me ajudou a buscar novos horizontes.

Hoje, sou separado, tenho 2 filhos, Caio de 9 anos e Manuela de 7 anos, que já tomam gosto pelo esporte e pela montanha. Fizeram a trilha Inca comigo em 2010 quando ainda eram bem pequenos. Enfim, sou uma pessoa de grandes movimentações na vida, de buscas, que tento aliar meu estilo de vida à rotina de trabalho e família. Ainda assim, sei que estou sempre tendo que provar minha capacidade, e ser exemplo de atitude para quem está próximo de mim.

Como faz para conseguir equilibrar a vida profissional, a família e os treinos para suas travessias e provas de montanhas...
Bem, esse é quase um segredo, até para mim mesmo. Não tenho uma fórmula, sigo meu instinto, do que deve ser priorizado em cada momento.

Hoje não sou tão radical como no passado, com dietas e treinamentos que me levavam ao extremo dos relacionamentos sociais, quase totalmente dedicado ao esporte fora do trabalho formal.

Hoje, dou mais valor aos amigos, filhos e tento aliar minhas viagens a trabalho com exploração de novos roteiros. Sou privilegiado por viajar muito, gosto de pensar em grandes viagens e novos desafios. Meu coração hoje bate mais forte pela Ásia, e por isso, tenho alguns sonhos por lá, de exploração e vida.

Também sou uma pessoa muito espiritualizada, e por isso, invisto boa parte do meu tempo na minha busca interior, mergulho que só está começando, mas já me proporcionou grandes descobertas. A grande jornada interior é muito mais desafiadora que essas que tenho realizado na natureza.


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