Hoje trago para você uma história muito
bacana, que mostra a tenacidade dos corredores mais velhos. Trata-se das
aventuras da turma de Limeira, no interior de São Paulo, onde um grupo de
veteranos mantém acesa a chama do esporte, inspirando e mobilizando gente muito
mais jovem.
Até dois meses atrás, quando lancei este
blog, nunca tinha ouvido falar desse grupo.Quem chamou minha atenção para os masters
de Limeira foi a jornalista Daíza Lacerda, uma jovem de 30 anos que está se
iniciando nas artes da corrida –orientada por um veterano que tem mais que o dobro
de sua idade, o Fumaça (olhaí os dois na foto/Arquivo Pessoal).
Pois a Daíza mandou para mim uma
simpática cartinha eletrônica me convidando para conhecer a turma e participar
das corridas que organizam na cidade. E falou também dos problemas que
enfrentam: a cidade perdeu há pouco sua principal pista de atletismo, por causa
de obras para contenção de enchentes. Os treinos são feitos numa pista nova,
improvisada, mas a turma não dá o braço a torcer.
Conversa vai, conversa vem, foi a minha
vez de fazer o convite, chamando a Daíza para uma colaboração para o blog,
deixando que ela mesma contasse a história dos seus companheiros de treinos e
inspiradores para a corrida.
Ela gentilmente aceitou e acabou
mandando o texto que publico a seguir; também mandou uma batelada de fotos.
Infelizmente, não dá para publicar todas. Espero que as imagens que escolhi já
sirvam para você conhecer melhor essa sensacional turma de corredores que
enfrentam o tempo e as adversidades em nome da saúde e do prazer de correr.
Bueno, fique agora com o texto da DAÍZA
LACERDA, a quem mais uma vez agradeço pela contribuição.
VETERANOS DE LIMEIRA PERDEM A PISTA, MAS NÃO A POSE
Para
eles, a idade parece quase um detalhe. Circulando com suas rugas, cabelos
brancos e peles flácidas, parte dos vovôs e vovós de Limeira quer saber mesmo é
de correr. Nas trilhas com pedra e areia fofa do Horto Florestal de Limeira,
eles não perdem o riso e nem a competitividade. Do alto dos seus 60, 70 ou
quase 80 anos de idade, começam cada ano com uma nova medalha na coleção.
Com
recorde de 230 inscritos, o Campeonato Municipal de Pedestrianismo de Limeira está
sendo realizado pelo 22º ano consecutivo, atraindo cada vez mais velhinhos para
as corridas gratuitas que acontecem mensalmente em distintos bairros.
Para
quem não para de correr, é o termômetro do poder de fogo das canelas, em evento
organizado de forma artesanal: fichinhas feitas à mão, que faz às vezes do
chip, e linha de chegada delimitada por um barbante, o funil. Mas tem suquinho
na chegada, lanche comunitário e sorteio de camisetas para quem participa.
Há
também enfrentamentos com a turma dos veteranos da região, que participam do Campeonato
Máster do Interior. Não é proibido para menores (até 34 anos), que podem se
meter a besta, sem pontuação para equipes. Mas os novinhos têm de ser humildes
e se sujeitarem a engolir poeira da véiarada, um bando de homens e mulheres
inspiradores. Afinal, o máster é disputa de verdade para nervos e músculos
lapidados em anos e quilômetros sem fim de asfalto ou terra, sem páreo para
ratos de academia.
DE
REPENTE, 72
Essa
história toda começou com o Fumaça, que alguns até conhecem como José Carlos da
Silva. Aos 72 anos, ele também não larga o osso. Está há meses na lida com “uns
probleminhas” no nervo ciático, que deve deixá-lo de molho por outros meses. Mas
a aposentadoria não está nos seus planos. Reduzir, sim. Parar, jamais. Está
firme e forte no propósito de participar dos Jogos Regionais do Idoso (Jori) e
Jogos Abertos do Interior deste ano, e faz planos para quando mudar de
categoria.
Figura
lendária no atletismo de Limeira e região, Fumaça corre desde os 18 anos,
quando trocou o futebol (que lhe rendeu o apelido) pelas pistas. É da época em que
o município sequer tinha local para reunir a dúzia de corredores que estavam
perdidos por aí. Ele calcula cerca de 500 troféus e outras 500 medalhas no
gigante histórico de competições.
A
mais recente é a melhor colocação do Estado nos Jogos Abertos do Interior de
2014. Trouxe para Limeira o ouro nos mil metros, vencidos em 3min42 em sua
categoria. “Ainda dou trabalho para eles!”, celebra. De todas as premiações,
acredita que pelo menos umas 50 vieram depois dos 60 anos.
Sem
aviso, a idade chegou na vida corrida. “De tanto que corri, nem percebi. Não
parei. De repente, estou com 72”, conta, paciente, em meio a inúmeras
interrupções de atletas ou colegas de trabalho que insistem em lhe consultar,
ora sobre as próximas provas, ora sobre a parte burocrática da Associação
Limeirense de Atletismo (ALA), da qual é treinador.
Fumaça
conta que a idade não lhe trouxe muitos problemas de saúde, o que credita à
vida de treinos. Para ele e para os pupilos entre 10 e 80 anos. Trata a fisgada
no ciático como algo pontual, provavelmente adquirido em outras atividades que
não a corrida. “É claro que a corrida também caleja. Mas essa dor não desejo
para ninguém. É uma das piores, mexe com tudo. Mas agradeço aos médicos que
estão me ajudando”.
Ele
dá bronca na terceira idade. “Não tem nada que esperar a aposentadoria para
iniciar no esporte. Ficar só no dominó, esperando o infarto, ou só começar
quando o médico mandar”, prega ele, sobre a vontade que deve prevalecer à
necessidade.
No
campeonato municipal, as cabeças brancas (ou tingidas) são mais numerosas nos
últimos cinco anos, como ele calcula. E a necessidade de o município ter um time
de velhinhos para representação no Jori contribuiu para que uma parcela
deixasse, de fato, o dominó de lado para correr. Praticar o esporte é bom. Mas
a coisa muda quando há disputa pelo pódio.
“Na
pista, a pessoa tem a chance de andar, parar, sentar. Sem a responsabilidade de
participar, vai bem. Colocou responsabilidade, daí pesa. Não é fácil carregar
300 habitantes nas costas, nas competições”.
A
contragosto, reconhece a necessidade de aliviar o passo. “Tem que controlar,
aprender a dosar. Quando eu chegar nos 75, vou correr 800 metros. Aí vou pegar
uns velhinhos mais fracos”, planeja.
UM
LUGAR PARA CHAMAR DE NOSSO
A
história de Fumaça se mistura com a da pista de atletismo de Limeira. O traçado
oval de 300 metros com pedriscos, recheado com grama, foi inaugurado em 1967.
Desde agosto é uma cratera cheia de barro, concreto, máquinas e homens, que
constroem ali um piscinão para conter a água da chuva e evitar enchentes
naquela e outras regiões.
O
projeto existe há uma década e saiu do papel em convênio de R$ 25 milhões com o
governo federal. O plano é devolver a pista nas mesmas condições de treino de
antes da obra, que deve ser concluída em dois anos. Mas já houve atrasos devido
à lentidão do governo em liberar a verba para continuidade dos trabalhos.
Para
quem esteve ali desde sempre, a despedida não foi fácil. "Vi jogarem a
primeira grama no campo. Acompanhei os tratores passando, as minas d'água.
Presenciei a construção dos alicerces das arquibancadas. Depois, treinavam
velho, novo, gordo, magro, branco, preto. Só não podia fumar, jogar bola, e
levar cachorro e papagaio”, conta Fumaça sobre a antiga casa, frequentada não
só pelos atletas da ALA, mas alunos de academias e anônimos em geral, usando o
local para garantir um passo à frente do sedentarismo.
Na
defesa da corrida como base para qualquer esporte, a agenda de disputas se
misturou com o trabalho desenvolvido na pista que nascia, e ele não competiu na
estreia. Mas competiu em outras, ou mandou “seus meninos” disputarem – e
ganharem – por ele. A pista já não era apta a receber jogos abertos ou
regionais, devido às exigências "a nível de seleção".
As
oficiais têm de ter 400 metros, com piso de tartan, uma espécie de borracha, e
não de carvão, como a pista limeirense. "Mas já vi algumas de tartan
piores que a nossa de carvão", alfineta o treinador.
A
casa nova e provisória fica próxima da antiga, em área pública que passou por
adequações para receber os atletas, que agora são desafiados com subida e
descida em mais de 400 metros do traçado oval. É a topografia do local onde não
foi possível mexer, resultando numa pista com desníveis. Mas isso não foi
problema, considerando o lado masoquista dos usuários. O que dizem é que a
subida desafiadora de hoje vai calhar com tempos melhores quando a velha pista
for retomada.
Fumaça
lembra que os poucos atletas da época da construção treinavam na rua. Mas a
pista própria do município fomentou o esporte, com a criação de escolinha para
crianças. Com o crescente número de atletas, faltava uma identidade.
m
1991, os praticantes se organizaram em grupo e criaram a Associação Limeirense
de Atletismo (ALA), que tem sede na pista. "Daí para frente, formamos
muitos campeões, como o Odair dos Santos, paralímpico que começou conosco.
Doutores, industriários e engenheiros da cidade passaram por aqui. E a
população tem que aproveitar o que tem".
O
MÁSTER CHEGA AOS 30
Limeira
tem outra figura jurássica das corridas. E ela é sempre vista por aí com um
chapeuzinho, carregando pastas, a pé ou de bicicleta. De cabelos muito brancos
e olhos bem azuis, seu Rui Camargo é idealizador, junto com Fumaça, do
Campeonato Máster do Interior, que completa 30 anos em 2015.
À
frente da Camal (Corredores Amigos Másters do
Atletismo de Limeira), seu Rui gosta de exatidão nos números. Tem 77
anos de idade, 390 medalhas, 101 troféus e 753 corridas concluídas. Aliás, 754
corridas e 391 medalhas, considerando o pódio da abertura do campeonato
municipal.
Para
desespero da esposa, não enche os cômodos da casa só com as medalhas e troféus,
mas com cadernos e mais cadernos de anotações de suas competições e do máster.
Dita que, em 2014, foram 39 participantes acima de 60 anos, 29 com mais de 65,
18 acima dos 70, nove que passaram a linha dos 75 e um que representa os 80+.
Se
lá nos anos 1980 a idade média dos participantes era 40 anos, na última década
explodiu a invasão dos aposentados. Nos aquecimentos, atividades da terceira
idade e o orgulho dos netos são assuntos. Na hora da prova, fim de papo e o
bicho pega entre os concorrentes, a maioria correndo por equipes independentes
ou vinculados aos departamentos de esporte de municípios.
Nos
mesmos moldes artesanais do “filhote” municipal, o pega pra capar regional
deste ano já tem data e local: 29 de março, às 8h, com largada e chegada na
pista da ALA em Limeira (Rua Capitão Antonio Esteves dos Santos, Jardim
Piratininga, ao lado da Câmara Municipal). Com expectativa de 200 participantes
no campeonato, durante o ano, as outras cidades da liga sediarão outras etapas:
Cordeirópolis, Jundiaí, Cajamar, Sumaré, Mogi Mirim, Mogi Guaçu e Campinas.
O
ÚLTIMO GOLE
Corredor
e organizador de corridas, seu Rui era refém da bebida no início dos anos 1960.
Trocou os copos pelas ruas numa data marcante para ele: 1º de maio de 1962, sua
estreia na Corrida do Trabalhador. Não parou mais e garante que nunca precisou
de médicos na trajetória, sem histórico de lesões. Ou quase. A esposa o
desmente e entrega, contando o dia que o marido chegou com o rosto sangrando,
após um tropeço num treino. Nada além de um susto. Ou, azar, nas palavras dele.
Mas
seu Rui tem exemplos para não abusar. Já viu dois colegas idosos morrendo em
meia maratona, nos últimos cinco anos. Os dois casos ocorreram em Campinas, e
os atletas não alcançaram a linha de chegada, tomados por ataques cardíacos no
percurso.
“Na época, pressionamos para que não participassem, mas insistiram.
Assinaram um termo de responsabilidade e mesmo assim deu problema depois”, lembra.
“Se passou dos 60, não adianta querer o ritmo de quem tem 30 ou 40. Tem de se
conhecer. O corpo avisa dos limites”, alerta ele. Embora muitos de 60+ passem
brincando pelos de 30+, como já testemunhei.
A
SÃO SILVESTRE MORREU
Quando
seu Rui começa a relembrar das corridas das antigas, pergunto da São Silvestre
e recebo uma avalanche de fúria. “Não existe mais São Silvestre. É corrida para
10 pessoas, cinco homens e cinco mulheres. O resto é figurante”.
Instantaneamente perco o riso, sendo que me esforcei no ano passado para ser
uma “figurante”. Depois é que entendo suas razões.
“Corri
quatro vezes a São Silvestre, quando havia eliminatórias no interior para poder
participar. O Fumaça, em 1966, ficou na 31ª colocação geral, foi o 1º do
interior e 11º brasileiro. Participavam no máximo 460 pessoas, era tudo
gratuito. Eram premiados os melhores do interior e do Estado, além dos
estrangeiros.
Naquele ano foram 34 países”. Para comprovar o passado perdido,
saca edições da Gazeta Esportiva e outros jornais com notícias das
eliminatórias e as classificações. Ele e Fumaça são identificados em fotos,
além de outros atletas da região.
Crítico
ferrenho do modelo atual de corridas de “ostentação”, seu Rui queria mesmo é
protestar contra o esporte como comércio. Mas ele mesmo reconhece que é “bater
em ferro frio”. Ainda que para ele o modelo certo seja o das antigas, as
ilusões também ficaram lá atrás.
“A corrida é uma distração, não é cara. É
melhor do que passar o dia inteiro no sofá em frente da TV ou no computador.
Enquanto eu tiver saúde, corro. Senão, caminho. Corro para manter a forma, sem
a ilusão de ganhar. Antes, partia pra cima. Agora, se alguém me passa, deixo
que vá”.
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