Desde que eu fiz 50 anos que penso no que iria fazer
quando me aposentasse.
Como muita gente, imaginava um período livre das
trocentas horas de trabalho
que a militância na redação envolve, uma vida sem
patrões e sem chefiados, tempo para dedicar ao ócio e ao prazer. Pensava
também, e ficava louco de raiva só de pensar, na burocracia envolvida em todo o
processo da aposentadoria.
Pois quando chegou a hora, de fato não foi o melhor dos
mundos. Mas o INSS funcionou muito melhor do que eu esperava, ainda que minha
aposentadoria demorasse para sair quase cinco vezes mais do que o tempo médio
divulgado pelo Instituto. Amarguei filas e conversei com funcionários –todos
eles educados, cordiais, alguns até simpáticos—em três postos na cidade de São
Paulo, que visitei cinco vezes ao longo de seis meses.
No fim, pensei, bem mais duro do que a burocracia para
obter a aposentadoria foi o trabalho todo que tive, ao longo de quase quarenta
anos, e que me deu o direito de enfim buscar esse prêmio –pago por mim e por
todos os trabalhadores brasileiros.
Comecei a trabalhar com 17 anos, e a primeira entrada na
minha Carteira do Trabalho é de três de fevereiro de 1975, menos de quinze dias
antes de eu completar a maioridade.
Meu primeiro emprego registrado –antes, já
ganhara dinheiro fazendo algumas traduções como free-lancer—foi numa
instituição que já nem existe mais. Na época, porém, meu empregador era um jovenzinho, digamos
assim.
O banco Sul Brasileiro fora criado em 1972, da fusão de
três outras instituições financeira dos Rio Grande do Sul, o Banco Nacional do Comércio (Banmercio), o Banco
da Província e o Banco Industrial e
Comercial do Sul. Desses aí, lembro com carinho de uma agência do
banco da Província que ficava em uma esquina da rua Uruguai, bem no centro de
Porto Alegre.
Meu pai, funcionário do estado, recebia pagamento lá. E
eu, gurizão ainda, adorava ir com ele até o banco, especialmente no verão.
Aquela agência tinha um ar condicionado superpoderoso, coisa desconhecida nos
lugares que eu então frequentava –escola, minha casa e casas de parentes.
Mas o melhor, mesmo, eram as escadas rolantes –posso
estar errado, mas, para meu conhecimento de menino, estiveram entre as
primeiras na cidade, em meados dos anos 1960. Enquanto meu pai curtia uma fila,
eu, moleque, ia para cima e para baixo naquelas fabulosas escadas automáticas,
espécie de tapete mágico elétrico na imaginação do garoto.
Mesmo com os aportes dos três bancos, o Sul Brasileiro
não vingou. Dias depois de terem se completado dez anos de minha entrada, o
banco sofreu intervenção no dia sete de fevereiro de 1985, por falta de grana,
e seguiu ladeira abaixo até ser incorporado a outro banco.
Que fique registrado: eu não tive culpa nenhuma nisso.
Para ser totalmente fiel aos fatos, não durei uma semana na nobre função de
auxiliar de escritório. Por alguma razão que foge à minha sabedoria e
imaginação, não fique de mandalete ou office-boy, que era a função normal do
tal auxiliar de escritório.
Fui alocado na área de crédito rural e incumbido de
conferir as contas diárias de empréstimos e recebimentos. No final, era
obrigatório dar soma zero.
No primeiro dia, fiz e refiz mais de dez vezes todas
as contas, usando uma enorme máquina de calcular daquelas de manivela, que eu
mal tinha aprendido a dominar; na dúvida, voltava a conferir na mão, sempre
usando um lápis de ponta muito fina.
Sempre dava errado. No fim do expediente, o expediente
não terminava para mim. Quando, afinal, conseguia fechar as contas, tinha pela
frente outro suplício: escrever à máquina um relatório padrão com o resumo das
operações e sem erros.
Eu datilografava com dois dedos (como faço até hoje) e
era muito rápido –passei com vantagem no
teste que exigia mínimo de 160 caracteres por minuto--, mas não garantia a
precisão e limpeza do documento final. Vai daí que também era um tal de tirar e
botar papel até conseguir o zero erro.
No segundo dia de trabalho, já estava quase louco. No
terceiro, aproveitei o intervalo do cafezinho para ir até o emprego do meu pai,
que tinha ficado superfeliz com a minha contratação, para dizer a ele que iria
pedir as contas. Se ficou chateado, não sei; o certo é que me apoiou, disse
para eu fazer como achasse melhor.
Vai daí que minha experiência como bancário se resume a
três momentosos dias. Mas aprendi muita coisa, sendo a mais importante o respeito
aos bancários e a admiração pela sua capacidade de concentração e abstração.
Claro que a gente odeia ir a banco e, não poucas vezes, acaba estourando com o
funcionário que nem de longe é o responsável pelas filas e pelo desrespeito que
sofremos. Mas, mesmo nesses momentos de raiva, tento lembrar a dureza que é a
vida daquele cara que está atrás do balcão.
Mas me deixei levar pela memória e voltei 40 anos no
tempo, mais de mil quilômetros no espaço. É bom retornar à história que estava
contando antes que meu leitorado durma.
Para resumir a história, acabei me aposentando em agosto do ano passado –a
primeira grana só fui receber em outubro e, apesar de toda a minha preparação,
não fiz nada de especial com o dinheiro, apenas ajudou a pagar as contas e
continuar levando a vida.
Aposentado, fui, como muitos, pensar no que fazer. Claro
que, também como muitos, continuo trabalhando, pois a aposentadoria não dá
camisa a ninguém. Mas alguma sensação de liberdade e de esperança acompanha a
nova condição. Até uma certa coragem
inesperada, uma capacidade de fazer bravata e de enfrentar desafios...
Foi por isso, talvez, que inventei este projeto. Depois
de dois anos só cuidando de lesões, tentando diminuir dores e participando de
algumas poucas e curtas corridas, resolvi desafiar o corpo e o tempo, colocando
de novo a maratona como meta. É uma forma de, digamos assim, reviver, remoçar,
reencontrar o próprio ser e reencontrar essa distância, essa corrida pela qual
sou tão apaixonado.
Nasceu assim o projeto Primeira Maratona como Aposentado.
E o primeiro treino foi no dia primeiro de fevereiro, vinte semanas antes da
maratona do Alasca, que é meu objetivo neste programa. Quis que a jornada fosse
especial e, assim, usei aquela corrida para reler, relembrar, reviver a “maratona”
que fiz entre diversos postos do INSS para enfim conseguir a alforria.
Às sete horas daquele domingo, estava postado em frente à
APS SP Pinheiros (APS quer dizer Agência de Previdência Social), no número 68
da rua Butantã. Sem mais aquelas, me fui –veja o filminho dos primeiros passos.
Foi naquela agência que protocolei o início do processo
burocrático. Não sabia que era uma das dez mais movimentadas da cidade, com 647
atendimentos diários e média de 13.418 atendimentos por mês. Talvez se tivesse
escolhido outra as coisas andassem mais rápidas –ou não, sei lá.
Os caras disseram que precisavam verificar os dados de
minhas carteiras do trabalho (tenho duas, cheias), e que eu receberia uma carta
avisando de quando poderia ver o resultado. A carta chegaria em um mês, acho
eu, mas o novo atendimento ainda levaria uns 90 dias...
Ainda bem que não preciso esperar documentos para queimar
o asfalto.
Parti direto pela rua Butantã em direção à marginal Pinheiros, pois
o meu segundo encontro com o INSS seria do outro lado do rio, na agência da
avenida Vital Brasil. Foi a primeira vez que, como aposentado, cruzava o
Pinheiros correndo e registrei o fato num filminho que produzi com a minha
câmera esportiva. Taí ele, ó.
Pois cheguei até o tal posto, mas não cheguei. Corria
pelo lado par da avenida, lembrando que o posto ficava do outro lado da
avenida, pouco depois da estação do metrô. Perdido em meus pensamentos,
passei da estação, passei do posto e, quando vi, já estava quase pegando o rumo
da saída de São Paulo.
Voltei atrás, perdi tempo, ganhei mais de um quilômetro
no meu percurso, que havia calculado inicialmente em cerca de dez quilômetros.
Era uma temeridade enfrentar tal distância, considerando as dores do corpo e o
estágio do meu treinamento, que até então envolvia sessões de quatro e seis
quilômetros, combinado corrida e caminhada. Fui assim mesmo, considerando o
momento especial.
O erro que me obrigou a passar duas vezes pelo posto do
INSS na Vital Brasil foi emblemático. Afinal, durante as tratativas para minha
aposentadoria, também tive de ir lá duas vezes, uma para saber o resultado
daquele primeiro exame de minha carteira e outra para levar um catatau de
documentos que me exigiram (cópia de todas as páginas das duas carteiras e
declarações de ex-empregadores).
Tudo bem. O dia estava lindo e eu não me sentia cansado. Voltei
para o que chamo de “lado de cá” do rio, preparando espírito para a parte mais
longa daquele treino. Também tive o pior trecho, subindo a Teodoro Sampaio na
mão do trânsito. É horrível, porque a gente tem de confiar na habilidade e
controle dos motoristas, a quem não vemos –por isso, sempre que corro na rua
prefiro seguir na contramão, pelo menos eu sei onde estão os adversários.
Em compensação, tive uma grande alegria no final do
trecho. Eleonora vinha acompanhando, de carro, meu percurso, e parara quase na
esquina da Teodoro com a Henrique Schaumann. Ele tinha água gelada e todos os
equipamentos para eu renovar meu curativo –estava correndo de tala, com curativos
para proteger os ferimentos de uma cirurgia recente (mas essa história você já
conhece; se não conhece, por favor, clique na aba Acidente!, no alto da página,
que vai ter toda a história, tintim por tintim).
Depois daquele refresco, quase na metade do meu percurso
(veja acima o mapa completo), saí renovado. Desci a Sumaré, que é meu playground,
e pretendi seguir reto. O suporte para minha câmera de cabeça estava
incomodando um pouco, e eu também já sentia a musculatura mais cansada.
Resolvi fazer uma segunda parada no final da avenida.
Tomei uma água de coco e, com um monte de guardanapos dobrados, improvisei num
protetor para a minha testa. Daí segui lépido e fagueiro para o final (foto abaixo).
O ponto culminante de minha jornada, tal como na maratona
burocrática pelo INSS, seria no posto da Francisco Matarazzo, pouco depois do
parque da Água Branca. Lá também tive de ir duas vezes. Por culpa de erro do
pessoal que fez o atendimento no posto da Vital Brasil, segundo me disse uma
simpática atendente.
Era uma senhora um pouco mais nova que eu, que tinha sido
jornalista no início de sua vida de trabalho. Conhecia, assim, um pouco dos
perrengues da profissão. Disse que eu precisaria voltar ao outro posto e pedir
a devolução dos documentos que eu havia entregue, porque os caras não tinham
completado todas as lacunas.
Abusando um pouco da simpatia dela, abri meu coração com
reclamações. Expliquei que trabalhava havia 40 anos (39 anos e meio, para ser
exato) e que não tinha culpa de falhas de empregadores ou mesmo falência de
empresas (além do Sul Brasileiro, outras firmas por onde passei desapareceram –mas
a culpa não é minha, volto a dizer).
Enfim, ela acabou dizendo que talvez fosse melhor eu
buscar novamente os documentos solicitados, em vez de solicitar uma abertura de
processo na outra agência. Afinal, minha “maratona” já durava meio ano, muito
mais do que a média oficialmente informada pelo INSS.
Em reportagem publicada no “Agora” em 2013, é
dito o seguinte: “O segurado do INSS que pede a
aposentadoria na capital de São Paulo leva, em média, 33 dias para conseguir o
benefício, de acordo com dados obtidos pelo Agora por meio da Lei de Acesso à
Informação. Os números da Previdência mostram ainda que, a agência do
Anhangabaú, na região central, é a mais rápida, com tempo de concessão do
benefício em 17 dias. O resultado negativo ficou a cargo da agência Aricanduva,
na zona leste. Nesse posto, a liberação da aposentadoria leva 48 dias, 15 dias
a mais do que a média na capital paulista.”
Para mim, foram cerca de sete meses,
pois só na visita seguinte ao posto da Francisco Matarazzo é que deram a
aprovação final. Fui atendido por uma funcionária mais sisuda que a
ex-jornalista –ríspida, até, mas eficiente. Ela olhou a carta que eu levei com
os pedidos do INSS, os documentos que incluí, escreveu algo num papel e mandou
que eu assinasse.
“Pronto”, falou ela, me dispensando: a
partir de então só precisava esperar a carta de confirmação e as informações
sobre onde buscar os minguados caraminguás que o governo me reservou.
Com minha corrida, encerrada depois de
quase duas horas e pouco mais de onze quilômetros percorridos, festejei tudo
isso e mais um pouco, comemorei estar vivo e disposto a sonhar. Que o venha o
Alasca e que essa seja a primeira maratona do resto de minha vida.
Ganhei até beijim de prêmio. Quer
coisa melhor?
Vamo que vamo!
De boa ... acho q essa maratona foi a mais dura q vc fez..... a do Alasca.... vai tirar de letra....rsrsrs
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