Acabo de fazer o mais longo treino de minha vida de
aposentado. Rumo à maratona do Alasca, estou agora na fase final da preparação
de resistência, fazendo jornadas que vão além da hora e meia cotidiana. É o
que, no jargão dos corredores –como você sabe—chamamos de longão.
Para mim, foi longão e tempão –este, em duas acepções. A
primeira me parece mais dramática: desde maio de 2013, quando fiz a maratona de
Vancouver, no Canadá, nunca mais conseguira sequer pensar em treinar para uma
maratona, quanto mais realizar treinos longos.
A idade, as costas, a dor do asfalto, a fasciite plantar, a
fratura por estresse, a gripe não curada, a falta de tempo, a perda de
paciência, o desespero, o descaso, a depressão, tudo isso e mais um pouco se
somaram para me deixar fora de combate.
QUASE fora de combate, pois permanecia fazendo corridinhas
menores, treinos mais curtos, menos demorados, sempre na lentidão de um trote
preguiçoso e, muitas vezes, dolorido.
Era preciso mudar. E foi o que fiz depois de aposentado.
Coloquei como meta de vida esportiva voltar a correr uma maratona, que será no
Alasca daqui a um mês e pouquinho. Juntei amigos, conquistei apoios para
recuperar meu corpo e orientar meus treinos; agora estou aqui, correndo.
Por artes das alquimias de meu treinador, Alexandre Blass,
faço tudo aos poucos, em blocos pequenos que se somam para construir edifícios
gigantes. Assim, os longos são feitos em grupos de três quilômetros, sendo 300
metros caminhados e o resto corrido, trotado, feito em ritmo mais forte. Cinco
blocos somam 15 km, oito dá 24 km. Para os 30 km, são dez blocos.
Há que dar o primeiro passo: foi pouco depois das seis da
manhã, em frente à estação Sumaré do metrô linha verde. Segui pela Doutor
Arnaldo e ganhei a Paulista sob um friozinho de 16 graus, uma brisa gostosa,
estimulante.
Nos dois primeiros blocos, nem sinto a corrida (é com os
primeiros cinco quilômetros de uma maratona). Estou a ver o corpo, conversar
com as pernas, ouvir o lamento dos glúteos, sentir o “crack” que o quadril faz de
vez em quando, acompanhar de perto o movimento dos joelhos e dos tornozelos.
É que tudo é um pouco complicado para mim, gordinho, velho e
sem o físico adequado de corredor –falta-me o “physique du role”, diriam os
encenadores franceses, constatando que meu porte atlético é ótimo para um
especialista em ver TV deitado no sofá, mas pouco adequado para um corredor de
longa distância.
Vai daí que tenho de treinar muito para fazer qualquer coisa
que me interesse no mundo das corridas. Por isso essa conversa todo com cada
pedacinho de mim, cada vez que saio para um esforço a que estou menos
acostumado.
Até o km 12, porém, dá tudo certo. É bom ver a cidade
acordando: desço pela Liberdade, para num boteco para beber água e ingerir meu
gel de carboidrato, circulo a praça da Sé, desço para o largo da Concórdia –é impressionante
o movimento dos camelôs, o comércio informal que toma conta daquela região, que
é viva, pulsante com o movimento dos trabalhadores.
Eles, alheios à conversa dos vendedores, chegam ali aos
borbotões, de ônibus, trem e metrô, enchendo as ruelas do Brás rumo ao
trabalho: confecções, lojas de roupas, armarinhos, casas de eletrodomésticos,
oficinas. E aí me boto no meio deles, tentando ouvir conversas, perscrutando
expressões, criando histórias sobre as figuras que vejo.
Passo pelo parque Belém, onde está a Fundação Casa (a antiga
Febem, espécie modernizada de detenção para menores), há um Corpo de Bombeiros,
um batalhão da Polícia Militar e um parque público em formação, tudo muito
bacana.
Mais para trás, eu sei, fica a
Vila Operária Maria Zélia, que visitei durante minha jornada de 460
quilômetros por São Paulo, no início do ano passado (leia mais AQUI).
Antes de chegar ali, passei para um inusitado conjunto de
casas de orações. Nunca tinha visto de perto o Templo de Salomão, sede mundial
da Igreja Universal do Reino de Deus. Trata-se de um prédio gigantes, opulento,
messiânico (para ficar nos termos religiosos).
Ele domina o cenário e, por comparação, transforma em mínima
a igreja São João Batista do Brás, que fica exatamente em frente. No mesmo lado
do templo católico, por sinal, há outra casa de orações, também bem portentosa,
da Igreja Evangélica do Reino de Deus. Nos quarteirões seguintes, como se a Celso
Garcia fosse um shopping religioso a céu aberto, mais denominações oferecem aos
crentes uma casa para suas preces.
Respeito, mas sigo em frente, porque estou longe do meu
destino. E descubro que o terreno, que imaginava plano, começa a se encabritar
quando venho para a direita, em direção aos trilhos do metrô que vai me
acompanhar até os confins da zona leste.
Vou me perdendo e me encontrando pelas ruas até encontrar o
paredão que protege os trilhos. Por ali vou seguir. Vejo ao longe, no topo de
um pequeno morro, a igreja Nossa Senhora da Penha, e vou para o outro lado.
Já chego ao km 20 bem inteiro, alguns minutos à frente do
tempo que imaginava fazer. Faltam dez, e serão os piores, sem curvas, sem
diversões, apenas acompanhando a ótima ciclovia que margeia o metrô.
Ela pode também ser muito perigosa, imagino, pois em
diversos trechos seu usuário fica completamente escondido do mundo, entre o
muro do metrô e obras viárias –se for atacado por ladrão ou por cachorro de
rua, não tem como fugir nem a quem recorrer, o que quer que aconteça não será
visto por ninguém.
O bom é que praticamente ninguém aparece. Corro sozinho e me
surpreendo com uma calcinha roxa pendurada numa concha de sopa que, por sua vez,
está encravada em uma parede da estrutura da estação Vila Matilde.
Depois de fazer a foto, sigo correndo e rindo, deixando a
imaginação voar para criar um conto, uma novela, pensar até em um romance...
Quem perdeu a calcinha roxa? Quem a pendurou? Onde estavam, para onde iriam? E
a concha, meus senhores e senhoras, como apareceu na jogada? O que serviu? A
quem deu de comer...
Sem falar em todo o imaginário erótico e pornográfico
sobre o qual não vou me alongar pois aqui se trata de um blog muito respeitador...
E o mundo, para minhas pernas cansadas, vira uma
escalada sem fim. A partir do km 20, é uma subida só, muito leve, mas sentida,
dolorida. Às vezes acelero, mas logo a exigência do terreno me impõe a redução
do ritmo.
Estou sedento e com fome, pois não há bares nem botecos na
ciclovia –fica tudo do outro lado da avenida, não sei a quantas pistas de distância,
com carros seguindo em alta velocidade para um lado e outro, sem sinais de
trânsito.
Não quero parar para pensar em cruzar a avenida, sigo mesmo sabendo
que aquilo não é o melhor dos mundos –no Alasca, espero, terei água a cada três
quilômetros, aquela belezura de organização...
Se não for, terei de dar um jeito. Como faço aqui, lutando
contra a vontade de roubar um pouquinho, caminhar os metros a mais, dividir os
blocos de três quilômetros em intervalos menores.
Mas resisto. Na hora da
corrida de verdade, vou fazer o que me for possível; aqui, no treino, luto para
que seja possível fazer o pedido, o combinado.
É quando cruzo pela estação Artur Alvim e já consigo ver, ao
longe, as passarelas e o teto do complexo de Itaquera. Sei que o estádio do
Corinthians está logo ali, falta apenas um bloco.
Escolhi homenagear o timão porque, aqui em São Paulo, é meu
time predileto –quem me acompanha sabe que sou torcedor do Grêmio não está em
questão. Minhas filhas são corintianas, e há que respeitá-las.
Além disso, o
Corinthians acaba de ser desclassificado da Libertadores de forma dolorida. É
na derrota que a gente tem de se levantar, desfraldar a bandeira e meter os
peitos, seguir firma da batalha. Assim como a sofrida, aguerrida e brava
torcida do Grêmio, os corintianos sabemos que é preciso estar lá “para o que
der e vier”.
Então no km 28,5 de minha mais longa jornada como
aposentado, avisto o estádio. Agora é só chegar, penso eu, enquanto faço as
fotos do Itaquerão, que é um belo exemplar da arquitetura de nossos templos
futebolísticos.
Cruzo pela estação Itaquera e ainda tenho um quilômetro para
rodar. Para minha desgraça, o caminho que escolho é em subida, faço 500 metros
para cima, desço outro tanto.
Acabou!
Finalmente vou conseguir beber água.
Cansado, um tanto dolorido e muito esperanço, inicio minha
jornada de volta para casa. Por ironia, quase um contraponto à minha homenagem
ao Coringão, o trem que pego tem como destino a estação Palmeiras...
Vamo que vamo!
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