Eu estava
no quilômetro seis quando ouvi o toque dos sinos. O som me tirou de uma espécie
de torpor em que eu estava metido, um pouco pelo cansaço, outro tanto por
algumas dores, mais um pedaço pela solidão que me dominava no caminho.
Levantei a
cabeça do asfalto encabritado que me levaria até o centro de Lajeadinho, um
lugarejo na serra gaúcha, o ponto exato onde foi plantada a primeira macieira
que vicejou em terras brasileiras, já lá se vão 80 anos completados neste 2015.
Os sinos
bimbalhavam na torre da capelinha azul e branco fundada em 1901 e reconstruída
em 1949, homenagem à Nossa Senhora do Monte Bérico (fotos Eleonora de Lucena).
Eu respeito as crendices de
fábulas de todos quanto acreditam nelas, por isso explico aqui quem foi essa
Madona: trata-se de uma aparição ocorrida na vila italiana de Monte Bérico em
1426, quando a peste castigava a região.
Não me
estendo mais, mas curiosos e crentes podem se informar com detalhes sobre os atos
milagrosos clicando AQUI.
Para mim,
não ouve milagre nenhum. Ao ouvir aquele som, só me lembrei de uma frase: “Não
perguntes por quem os sinos dobram”.
Ela é citada no livro de Hemingway que
aborda os terríveis acontecimentos da Guerra Civil Espanhola, prévia dos
monumentais enfrentamentos da Segunda Guerra Mundial. E tem um desdobramento,
corolário, resposta à pergunta que não deve ser feita: “Eles dobram por ti”.
Ali, me
sentia morrendo e me reconstruí, recomecei, pensando que em breve chegaria ao
quilômetro sete e meio, onde haveria água fresca e onde eu poderia tomar um
sachê de carboidrato, o que me ajudaria muito a chegar ao final daquela prova
de dez quilômetros.
No meio da
alegria da retomada, também senti uma certa depressão: depois de trocentas
maratonas no lombo, estava ali sofrendo para completar um dezinho...
Acontece
que não é assim que funciona. O fato é que as lesões e o tempo de treinos
curtos e aperiódicos que vivi antes de iniciar esta empreitada cobraram sua
parte. Tenho de reaprender a correr e a aguentar o asfalto. E estou fazendo
isso.
A corrida
em Veranópolis –município onde fica Lajeadinho—não era de meros dez
quilômetros. De fato, era a segunda etapa de uma meia maratona que nunca fora
feita. Eu planejara correr os 21 km em março, em Israel, mas não tive condições
(saiba mais clicando AQUI).
Então, com
orientação de meu treinador, Alexandre Blass, mudamos o projeto: em abril, faria
duas provas de 10 km, uma em cima da outra, lá nas terras gaúchas. Era uma
forma de testar a resistência do corpo sem impor um volume inesperado...
Na noite de sábado, fiz uma gostosíssima prova
na orla do Guaíba, em Porto Alegre. Reunimos Reckziegels e Lucenas que correm,
mais agregados de toda a sorte, e cada um fez sua prova, no sue ritmo, para
festejar depois. Uma coisa família, assim, gostosa que só ela, tendo como
troféu um churrasco noturno e longas conversas da parentada.
Na
madrugada seguinte, o despertar foi dolorido, às 5h, para pegar quase três
horas de estrada de Porto Alegre a Veranópolis, para a tal segunda etapa da
meia maratona.
Valeu a
pena.
O mote da
corrida era a Festa da Maçã, pois o município se orgulha de ser o pioneiro no Brasil
no plantio dessa fruta. A se acreditar nos registros, tudo se deu da seguinte
forma.
Nos idos de
1935, o agricultor José Bin, então com 37 anos, comprou uma maçã no mercadinho
Zanchetta, em Veranópolis. Levou para casa o fruto importado da Califórnia e,
com um afiado canivete, repartiu a maçã, dando um pedacinho a cada um de seus
14 filhos (tinham sido 18, mas quatro não resistiram aos primeiros dias de
vida).
Todos
gostaram tanto que ele resolveu experimentar com as sementes, fazendo um
plantio nos fundos da casa simples em que a família morava, no fim de uma picada
no interior do interior de Lajeadinho. Três pés nasceram, mas só uma vingou
mesmo.
E como:
teve safra em que aquela árvore pioneira chegou a dar mil frutos. E a nova
mação brasileira ganhou cepa e nome próprio, homenagem a José Bin –esse tipo de
maçã está hoje quase extinto, mas ainda aparece em feiras e exposições como a
de Veranópolis.
Eis a
razão e o por quê da estarmos ali uns 80 e poucos corredores, no frio da manhã
serrana, esperando a hora da largada. Eu trazia no peito o número quatro,
indicação de que era o quarto mais velho na corrida.
Antes da partida,
encontrei ainda o 1 e o 2; buscamos o 3 para uma foto do quarteto velhusco, mas
foi em vão; ao final, porém, conseguimos reunir outra trupe de veteranos...
Quando
enfim deu-se a largada, todos se foram e a mim parecia que eu tinha ficado.
Não, era só impressão: eu simplesmente era o mais lento de todos, o último dos
últimos já na partida.
Por alguns metros, acompanhei de perto os corredores que
fechavam o cortejo; aos poucos, porém, eles foram se afastando enquanto
galgávamos a primeira das muitas subidas do percurso.
Passados
500 metros, eu já sabia que não teria coelho para me puxar nem poderia me
incentivar dizendo que iria em perseguição deste ou daquele colega de
infortúnio. Tive de mudar o meu espírito, tentar entender por que estava
correndo ali, o que eu poderia tirar de bom do fato de ser o último, correndo
sozinho.
Quase
sozinho: atrás de mim vinha a ambulância com seu ronronar protetor.
Diferentemente do que acontece com ônibus-prego em algumas provas, os caras
ficaram na deles, se aguentando no meu ritmozinho, sem roncar motor nem
oferecer nada, numa boa.
Por isso, agradeço a gentileza da companhia distante
do motorista Admir Bussolotto (mais alto), da técnica de enfermagem Marta
Vieira e do enfermeiro Fábio Motta.
Eu sabia
que eles estava lá atrás, mas esperava não precisar deles. Queria mais era
(re)aprender a correr sozinho, saber manter um ritmo mesmo sem ter ninguém a
quem perseguir, não entregar os pontos mesmo quando não havia ninguém olhando
para aplaudir minha bravura.
Era só eu,
o asfalto, as montanhas ao longe, a vista sensacional –tive de parar uma vez,
por alguns segundos, para fazer uma foto. E as dores musculares, que nem eram
tão fortes assim.
O que mais
aparecia era o cansaço, e uma maldita preguiça me dizendo para afrouxar. Quando
os sinos tocaram, guardei tudo num canto qualquer do cérebro e acordei para o
trecho que faltava.
Estende as
pernas, amplia a passada, encurta a passada, levanta o tronco, olha
para o
mundo, pensa na maratona –e que maratona, o Alasca me espera!. Vou embora,
correndo sozinho, curtindo a montanha, o cheiro de interior, o clima da serra.
Chego
melhor do que saí. Cumpri a meia maratona de um jeito heterodoxo, mas bem feito
–uma em 1h07, outra em 1h08, melhor do que nada.
Sem dores profundas, e com a
serena sensação de que vou conseguir prosseguir no treinamento. Se conquistarei
a maratona, não posso saber nem prometer, mas que leva jeito, ah isso leva.
Comi maçã
e, enquanto vasculhava as belezas de Lajeadinho, ouvi meu nome ser anunciado.
Fui o quarto lugar na minha categoria --que ninguém se lembre de que também
éramos apenas quatro os cinquentões quase sessentões. E me saí com medalha e
medalhão.
Que beleza!
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