A rua Ibó vai de posto a posto, pode-se
dizer. Nasce na esquina com a avenida Regente Feijó, grande artéria da zona
leste de São Paulo; ali, do lado esquerdo, o lado ímpar da rua, há uma venda de
gasolina.
De marca diferente, mas quase igual em
tamanho, o outro posto fica no extremo oposto, no lado par da Ibó, quando ela se
encontra com a avenida Sapopemba, uma das vias mais emblemáticas da cidade,
marcante na história de São Paulo e dolorosa na carreira deste corredor.
A Sapopemba foi mote de debates, comentários,
piadas e provocações durante a campanha eleitoral para a prefeitura paulistana,
nos idos de 1985.
Com uma só frase, o ex-presidente Jânio
Quadros (1917-1992) derrubou a empáfia de seu oponente, Fernando Henrique
Cardoso, que se licenciara do posto de senador não eleito (suplente de Montoro,
assumiu quando o colega de partido venceu as eleições para o governo de São Paulo,
em 1982) para disputar o executivo municipal.
Jânio quis saber se o sabe-tudo FHC sabia
onde ficava Sapopemba. A blague desarmou o peemedebista e deixou sua equipe em
polvorosa –os assessores chegaram a montar polpudos dossiês sobre a avenida que
corta a zona leste paulistana.
A Sapopemba também cortou meu coração. Para
ser mais exato, meu joelho; para ser mais exato ainda, a cabeça da tíbia
direita, o platô onde se insere a rótula. Foi ali que tive minha segunda
fratura por estresse na minha curta, mas movimentada, carreira de corredor. O fato
se deu em 2013, quando percorri a avenidona de cabo a rabo, num projeto para
homenagear os 460 anos de São Paulo (saiba mais clicando AQUI).
Pois foi pela Sapopemba que cheguei à rua Ibó,
para onde Manoel Fiel Filho levou sua jovem esposa em 1954. Naquela rua, em uma
casa que hoje já não existe mais, moraram logo depois do casório.
Final da rua Ibó, no ponto em que ela se encontra com a avenida Sapopemba - Fotos Rodolfo Lucena |
Lá viveram por muitos anos, lá viram as
filhas crescerem –de lá viram a mais velha sair para construir sua própria
família.
Naquela época, quando o século passado
começava sua segunda metade, a região da Água Rasa, nas cercanias da Mooca, já
vivia a efervescência industrial de que hoje vemos ruínas.
Correr num domingo pela rua da Mooca é como
visitar uma cidade fantasma, pelo menos em seus primeiros quarteirões. Se,
durante a semana, a região vive em burburinho, quando o comércio fecha o silêncio
toma conta da via.
Cruzando o viaduto sobre os trilhos do trem –espécie
de marco divisório entre a região central da cidade e a zona leste--, dá para
ver os telhados de enormes construções que um dia abrigaram armazéns ou
máquinas de agitadas metalúrgicas –hoje são ruínas.
Nesse cenário pouco empolgante, cinzento,
sigo na corcoveada rua –são subidas e descidas leves, ao longo de três ou
quatro quilômetros. Presto atenção nas transversais, pois é uma delas que vai
me levar à Água Rasa. Nisso, sou surpreendido por uma rua que homenageia a
atriz francesa Sarah Bernhardt (1844-1923); a lembrança é curiosa em meio a um
monte de ruas em que são lembradas figuras não muito conhecidas do passado
paulista e brasileiro. Dois quarteirões depois, como a me dizer que o tonto
sou, e que homenagens nas cidades podem ser feitas a quem se queira, quando se
queira, vem um rua que celebra a heroína francesa Joana D`Arc (1412-1431).
É melhor eu prestar atenção no trajeto, se
não logo me perco.
Mas não: acerto o passo descendo a rua do
Acre, cruzo a avenida Salim Farah Maluf, subo a primeira e dolorida lomba da
icônica Sapopemba e logo me dou de cara com meu destino de hoje, quinto dia da
CORRIDA POR MANOEL.
Metalúrgico quando morreu, Manoel tinha sido
antes padeiro e cobrador de ônibus. Quando morou na rua Eli, onde conheceu sua
futura esposa, ainda não era operário. Mas ganhava o suficiente para sustentar
família e foi acolhido pelos pais de dona Thereza.
O namoro se deu à moda da época, e o casório
também seguiu a apropriada liturgia. Apesar dos ganhos modestos –o pai de
Thereza trabalhava na limpeza de ruas, e ele mesmo era tecelã--, a família da
noiva tratou de produzir o casamento com a pompa que lhe era possível.
Ela estava linda, exultante, quando passou pelo
corredor da grandiosa igreja da Vila Formosa. Na rua São Caetano, a “Rua das
Noivas”, tinha garimpado um vestido que lhe caía no corpo com perfeição. A tiara
e o véu que usou no dia ainda hoje arrancam suspiros da filha mais velha: “Olha
isso!”, diz Aparecida, 60, mostrando a foto do casamento dos pais.
Dina Thereza mostyra imagem de seu casamento com Manoel - Foto Eleonora de Lucena |
No civil, o enlace se deu no dia nove de
dezembro de 1954; dois dias depois, aconteceram as núpcias no religioso. O novo
casal foi morar em uma casinha nos fundos da casa dos pais de Thereza, na Água.
O endereço era rua Ibó, 340 –em alguns documentos, porém, o nome da rua aparece
grafado de maneira diferente.
“Fomos morar nos fundos da casa de minha mãe”,
confirma dona Thereza em entrevista para este corredor. Era um conjunto
movimentado, a julgar pela lembrança da filha mais velha, Aparecida.
“Morava a minha avó com meu avô na frente,
nós na casa na sequência. Morava a mãe,
eu e o pai, e a minha avó alugava uma casinha que tinha do lado. Sempre tinha
inquilino novo.”
Quando Aparecida nasceu, o pai já estava de
emprego novo. Tinha finalmente iniciado carreira como metalúrgico. Na função de
serralheiro, entrara em 19 de julho de 1956 na Indústria de Móveis Cromados,
que funcionava na avenida Santo Amaro, 622.
Reprodução de regsitro de Manoel Filho Filho no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo |
Talvez por ser o emprego muito longe de sua
casa, Miguel não ficou muito tempo naquela empresa. No ano seguinte já estaria na Metal Arte,
onde ficou por 19 anos –seu último dia de trabalho foi a sexta-feira 16 de
janeiro de 1976, quando dois policiais não identificados o levaram dando
explicações esfarrapadas para o sequestro.
Na rua Ibó a família ficou por longos anos.
As filhas guardam de lá memórias gostosas. “A gente ficava muito em casa, tinha
um quintal, tinha galinha, árvores”, lembra Aparecida.
A casa onde morou a família de Manoel Fiel Filho ficava à esquerda desse conjunto, um dos mais antigos da rua Ibó |
Quando era preciso algum reparo, Manoel
assumia a responsabilidade. E ensinava para as filhas algumas tarefas. “Ele
pintava as casas dos vizinhos”, conta a viúva. “Nós também pintávamos, na
brocha”, diz Aparecida. “Ele não tinha filho homem, tinha de ser as mulheres
mesmo”, completa Márcia, a caçula.
Também era rigoroso. “Gostava de limpeza, não
podia ver um cisquinho”, fala dona Thereza. “Engraxava nossos sapatos, os de ir
à escola”, diz a filha caçula.
Mesmo quando as meninas cresceram. Manoel não
abandonou os cuidados, conforme conta Márcia: “A minha irmã estava grávida da
primeira menina dela, casou às pressas, meu cunhado também não ganhava muito
bem. Sábado, meu pai ia lá na feira perto da casa dela, enchia a sacola de
frutas e legumes e levava para eles. Saía de casa, não falava onde ia”.
Cuidava da filha casada e não tirava o olho
da que tinha ficado em casa, adolescente ainda. “Às vezes eu estava na casa de
uma amiga, ele aparecia: `Vim te buscar`. Não tinha carro, era de ônibus. Ele
saía atrás de mim. Com 15 anos eu estudava e trabalhava. Trabalhava na Casas
Buri, perto da Vinte e Cinco de Março, na Barrão Duprat. A escola era [Escola
Estadual] André Xavier Gallicho, na Rua da Mooca [4650]. Três quadras antes de
acabar a Rua da Mooca”.
Manoel e Thereza, à direita, com parentes na casa da rua Ibó |
Manoel fazia um bom bacalhau nos encontros da
parentada, gostava de ouvir Elis Regina, adorava o Corinthians e, com a turma da
família, evitada discutir político ou religião –“meu pai era completamente ateu”,
fala a caçula, Márcia, 56.
Fosse por seu estilo calado, fosse por
preocupações com a segurança da mulher e das filhas, o certo é que Manoel não
costuma comentar em suas atividades sindicais.
Quando pergunto às filhas o que elas lembram
da vida profissional de Manoel, quem responde é Aparecida: “A única coisa que a
gente pode te contar com certeza é que a gente não sabia de nada em que ele
participava”.
Dona Thereza confirma, falando como se o tempo
tivesse parado: “Nós fomos saber agora”.
“Ele era muito certinho nos horários dele. A
única coisa é que ele ia ao sindicato”, diz Aparecida. “De sábado ele falava: `Preciso
ir no sindicato`. Era o Sindicato dos Metalúrgicos”, completa a mãe.
Depois da morte de Manoel, em encontros com
antigos colegas de trabalho ou de atuação sindical, a família foi descobrindo
coisas. Informações nebulosas, nada em que se possa por certeza.
Aparecida conta: “Falam cada coisa. Falam que
ele ia para Minas fazer palestra... O que é lenda e o que é verdade?”
“Meu pai está parecendo agente secreto”, brinca
Márcia.
Aparentemente, porém, os amigos sabiam ou
imaginavam que Manoel talvez estivesse na mira dos informantes da ditadura
militar, talvez sua atividade sindical –era delegado sindical, representante de
fábrica—tivesse chamado atenção.
Dona Thereza lembra de um encontro no
sindicato –provavelmente uma homenagem a Manoel— em que amigos do operário
contaram que ele tinha sido aconselhado a fugir, a sair do Brasil.
“Como é que eu vou se a minha mulher não está
sabendo de nada? Eu não tenho dinheiro para ir. Como é que eu vou?”, teria
perguntado Manoel, recusando o caminho da fuga.
Dona Thereza conclui, as lembranças já lhe
tomando conta das emoções: “ Ele ficou para morrer, para matarem ele”.
Corrida por Manoel - Dia 5
Destino: rua Ibó, 340 (15,24 km feitos em 2h08min18)
Distância acumulada: 51,82 km
Corrida por Manoel - Dia 5
Destino: rua Ibó, 340 (15,24 km feitos em 2h08min18)
Distância acumulada: 51,82 km
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