Em São Paulo, os trilhos são
uma espécie de muro ao rés do chão, parede (quase) invisível que corta e separa
a cidade.
Para dentro da linha férrea
estão o centro, a praça da Sé, as
mansões dos Jardins, os modernosos prédios da avenida Paulista.
Do lado de lá,
seja para o Norte, o Sul, o leste ou o Oeste, ficam as periferias, com seus
eventuais bolsões de progresso e riqueza, mas de qualquer forma com carências
que boa parte dos moradores do centrão urbano não conhecem.
Carros passam de um lado
para o outro por viadutos e vias expressas. As gentes, porém, enfrentam mais
dificuldades, como mais uma vez constatei hoje, quando parti de pertinho do
Marco Zero de São Paulo em direção ao início da Zona Leste.
Por onde passam automóveis,
não passam pessoas. Talvez eu não tenha encontrada a travessia correto: o fato
é que tive de sair da Radial Leste –monumental complexo viário campeão de
trânsito entre as rotas consideradas mais importantes pela CET (Companhia de Engenharia de
Tráfego: pelos postos de controle passam 2,7 veículos por segundo, em média, nos
horários de rush.
Com toda essa carralhama, não
havia jeito senão fazer um atalho –que, no meu manual, sempre aumenta a distância.
Azar e caverocas, como dizia minha mãe. Em compensação, conheci mais um
pedacinho do passado de São Paulo.
Passei por baixo do viaduto Alcântara
Machado, onde funciona uma movimentada comunidade do povo da rua.
Pelo que pude perceber, há
vários grupos, associações de catadores e até uma enorme academia de ginástica,
com muitas máquinas para musculação e outros exercícios.
Mini-hortas ou flores
decorativas são cultivadas em garrafas de plástico penduradas em um alambrado;
as paredes de alguns barracos funcionam também como mural em que colocam um
alerta para a cidade que divide, discrimina e convive com a desigualdade.
Cruzando por eles, pego a rua
Paulino Mônaco em busca de uma passarela de pedestres que vai me permitir
cruzar para o outro lado da linha férrea. O quarteirão é feio: de um lado, a
cerca protegendo os trilhos; de outro, armazéns fechados; na esquina, um bar em
que bêbados discutem em altos brados na manhã que ainda vai curta.
A passarela é bela, porém
abandonada. De ferro, com alambrados lindamente desenhados, que, com a falta de
cuidados, viraram pedaços de ferro-velho carcomidos pelo tempo e pela ferrugem.
Não vi em nenhum lugar a data de construção, mas deve ser pelo menos
centenária.
Enfim do lado de lá dos
trilhos, oficialmente no bairro da Mooca, dou de cara com o belo prédio onde
está instalado o Museu da Imigração.
Prédio onde funciona o Museu da Imigração - Foto Divulgação; as demais são de minha autoria |
Originalmente, o edifício era a Hospedaria
dos Imigrantes, abrigo inaugurado em 1887 para dar guarida aos chegantes ao
Brasil de então.
Sigo em frente, sentindo os músculos
ainda um pouco cansados da jornada do dia anterior. Por isso mesmo, hoje
caminho, mas sem deixar a peteca cair: vou a passos rápidos, tentando manter a
coluna ereta e a passada firme. Tenho de proteger o corpitcho envelhecido,
senão qualquer hora voltam as dores na lombar, no quadril e alhures.
Hoje, pelo menos, não voltaram.
Pude encontrar em paz, sem maiores altercações comigo mesmo, o meu destino de hoje:
rua Siqueira Bueno, 668.
Ali, num prédio de dois andares
de altura, frente estreita e dezenas de metros de fundos, funcionava em 1976 a
Metal Arte, metalúrgica especializada em peças de iluminação –como suportes
para luminárias; fazia também acessórios para automóveis.
Com 19 anos de casa, Manoel
Fiel Filho estava entre os mais antigos dos cerca de 700 funcionários da
empresa. Ele foi admitido na Metal Arte Indústrias Reunidas no dia primeiro de
julho de 1957, com salário de CR$ 2,25 por hora de serviço.
Trabalhava das 7h às 17h30, com
intervalo de uma hora para almoço, das 11h30 às 12h30, segundo registros
citados por Carlos Alberto Luppi em seu livro “Manoel Fiel Filho – Quem Vai
Pagar por Este Crime?”.
Então com 30 anos, Manoel tinha
1,59 m de altura e pesava 70 quilos. Toda sua documentação estava em ordem.
Cumprira o serviço militar em quartel, como atestava seu certificado de número
90902. Tinha o título de eleitor número 76179 e votava na quarta Zona Eleitoral
de São Paulo.
Talvez para ele, porém, o
documento mais importante fosse outro, a Carteira Profissional. Os dados:
número 23.044, série 82, de 27 de novembro de 1950.
Prezava a seriedade no
trabalho, de onde quase nunca se ausentou ao longo de seus 19 anos de empresa. Ao
que se saiba, há apenas duas faltas contabilizadas, ambas em 1971, por causa de
dores na coluna.
Nada que fizesse com que
perdesse a admiração e a confiança de chefes e colegas. Era “extremamente
tranquilo e trabalhador”, segundo a gerência da empresa. Fazia horas extras “sempre
que fosse preciso e sem se queixar de nada”, disseram os entrevistados de
Luppi.
Começando como ajudante, foi
galgando postos. Era encarregado do setor de prensas hidráulicas, lembra sua
viúva, Thereza Fiel, em entrevista para este corredor.
O trabalho duro e o posto de
chefe lhe valiam um salário de Cr$ 3.300. Com todas as trocas de moeda ao longo
dos 40 anos passados desde então, não vou nem me atrever a fazer o cálculo dde
quanto isso daria em valores de hoje. Era, de qualquer forma, um ganho razoável
para a época; dava mais de seis salários mínimos, cujo valor, em janeiro de
1976, era de Cr$ 532,80.
Sempre chegava cedo ao trabalho, segundo o vigilante
Arnaldo contou para Luppi. Seis da manhã já estava na porta da fábrica, onde
ficava até o final do expediente e mais além: quando tocava o apito no fim da
tarde, saía para um rápido lanche e voltava para o terceiro turno, o das horas
extras.
A dedicação foi também atestada pelo gerente industrial
da Metal Arte, Jorge Vito, citado no livro: “Manoel era homem de comportamento
exemplar não participava de grupos e jamais foi visto distribuindo panfletos
entre os operários”.
Até aí morreu o Neves, porque, se Fiel Filho
efetivamente distribuísse material clandestino deveria fazê-lo clandestinamente,
por suposto, fora das vistas de chefetes, subchefetes e gerentes em geral.
Alguma ação mobilizatória ele tinha. Era delegado
sindical, representante de fábrica, como lembra o dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos
José Francisco Campos –o homem que abonou a ficha de filiação de Manoel em
1956.
A data da filiação de Manoel ao sindicato indica sua
preocupação com as ações trabalhistas e com o trabalho de reivindicação: ele
tinha apenas recentemente começado na profissão de metalúrgico, depois de atuar
em ofícios diversos, incluindo trabalho em uma padaria e como cobrador de
ônibus.
Ficou pouco tempo no primeiro emprego de operário, em
uma metalúrgica que funcionava perto da rua dos Trilhos, segundo lembra dona
Thereza. Em menos de um ano, saiu de lá para se empregar na Metal Arte.
No dia 16 de janeiro de 1976, dois homens desceram de
um carro em frente à empresa, que fica em um quarteirão da Siqueira Bueno
colado à Radial leste (ali a via se chama Alcântara Machado), à sombra do viaduto
Guadajara, inagurado em 1970.
Era pouco depois das nove da manhã, de acordo com
reportagem de Ricardo Kotscho publicada na época no jornal “O Estado de S.
Paulo”.
Os dois
homens, segundo o texto, procuraram o chefe de pessoal. Identificaram-se como
''elementos do DOPS", que precisavam falar com o operário Manoel Fiel
Filho [outros relatos dão conta de que a polícia, na verdade, estava atrás de
um certo Fiori ou Flores].
A
reportagem de Kotscho segue: “O chefe de pessoal lembra que Manoel não mostrou
nenhuma preocupação quando os dois homens lhe disseram que ele precisava ir ao
DOPS "para fazer um reconhecimento”. Só perguntou se era preciso trocar de
roupa, ao que os dois homens responderam que não: - É uma coisa muito simples,
só prestar alguns esclarecimentos. Em duas horas ele está de volta.”
Manoel
nunca mais voltou.
Já na
época a Metal Arte estava em processo de transição –tinha sido vendida a
investidores estrangeiros. A Metal Arte foi vendida a empresário estrangeiro.
Hoje, o
local em que Manoel trabalhava faz parte de um depósito de uma empresa que
fabrica colchões. Nesta manhã, o prédio de número 668 na Siqueira Bueno estava
fechado.
Em frente
ao depósito, sob o viaduto Guadalajara, funciona um serviço de atendimento a
moradores de rua.
Mais para
a esquerda, um murão protege um conjunto de prédios elegantes. Para diminuir
sua feiúra, um grafite desfaz o azul-cinzento que cobre as paredes do restante
do quarteirão.
CORRIDA POR MANOEL – sétimo dia
Destino: Rua Siqueira Bueno, 668, Mooca, onde
funcionava a fábrica Metal Arte, onde Manoel Fiel Filho trabalhava; 6,62 km
caminhados em 1h23min43
Quilometragem acumulada: 79,17 km
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