23.2.16

Correndo, juventude da zona leste faz homenagem a Rubens Paiva

Ela sorria, mas ao mesmo tempo não conseguia controlar as lágrimas que lhe tomavam os olhos. “É uma sensação esquisita sentir-se aliviada com uma certidão de óbito", disse lágrimas Eunice Paiva, viúva do deputado federal Rubens Paiva, desaparecido em 20 de janeiro de 1971.

Sua declaração à imprensa foi feita em 23 de fevereiro de 1996, no 1º Cartório de Registro Civil de São Paulo, onde recebeu a certidão de óbito do marido, após 25 anos de busca e espera.

"Durante muito tempo, como não nos entregavam esse papel, eu e meus filhos (cinco) ficamos na dúvida se Rubens estava morto ou não. Essa foi a forma de tortura mais violenta que impuseram às famílias dos desaparecidos políticos", disse Eunice conforme registro da “Folha de S. Paulo”.

Pois hoje, exatos 20 anos depois daquela dolorida conquista da família Paiva, tratei de fazer uma homenagem ao ex-deputado do Partido Trabalhista Brasil –aquele do século passado, de Getúlio e de Brizola.

Como parte do projeto CORRIDA POR MANOEL, fiz na minha sexta jornada um trajeto de pouco mais de vinte quilômetros até a Escola Municipal de Educação Fundamental e Média Rubens Paiva.

Pretendia pelo menos abraçar a escola com minhas passadas –se possível fosse, talvez conversar um pouco com alguns alunos, fazer uma corrida “in memória”.



A escola Rubens Paiva é um portento no Jardim Ângela –este fica na zona leste da cidade e não deve ser confundido com o distrito de mesmo nome, na zona sul da cidade; o da zona sul é  muito mais famoso e, em anos recentes, chegou a ser a região mais violenta de São Paulo.

O prédio da escola é gigante, se comparado com a maior parte das construções à sua volta. A escola fica numa encosta de morro: mais para cima, há casas de classe média, ainda que bastante simples; para baixo, há uma comunidade carente. É cercada por ruas estreitas e tortuosas, o que não garante que motoristas dirijam por ali em baixa velocidade: há alguns dias, uma estudante foi atropelada quando se dirigia para a escola.

Antiga, a Rubens Paiva viu crescer o bairro à sua volta. Instalada ali em 1997, quando muito da região “era mato”, como dizem alguns moradores mais antigo, serviu como polo aglutinador, imã atraindo gente para seu entorno.

Assim, não admira que fervilhe de gente. Funciona o dia inteiro, com aulas nos turnos da manhã, tarde e noite. No total, entre o pessoalzinho do fundamental e os mais taludos do ensino médio, abriga cerca de 1.100 estudantes.

No pouco tempo em que estive por lá, na manhã do dia do vigésimo aniversário da entrega do atestado de óbito de Rubens Paiva, vi corredores livres e limpos. A entrada da escola é protegida por grades. 

Depois de entrar, o visitante precisa ainda passar por um portão interno. Uma vez no prédio, é bem recebido: na sala de espera, há até um bonequinho com um pequeno cartaz dizendo “Sejam Bem Vindos”.

E bem-vindo eu fui, apesar de não ter tido oportunidade de preparar minha chegada com mais vagar. Conversei com o diretor, Rubens Batista, veteraníssimo da escola, onde atua desde 1998. 

Gentilmente, ele abriu espaço para uma conversa com os alunos mais velhos. Antes, ainda tive a oportunidade de apresentar o projeto da CORRIDA POR MANOEL para alguns professores, que acompanharam nosso bate-papo com os alunos.

Lá fomos nós para a primeira conversa, com alunos de segunda e terceira séries do segundo grau.

Eram mais de 50 adolescentes na sala, e apenas dois ou três levantaram o braço quando lhes perguntei se sabiam quem eram Rubens Paiva. 

Os que responderam, porém, foram 
certeiros nas informações.

Mesmo assim, tratei de dar um pouco mais de vida àquele conhecimento, juntando informações, falando do que tinha acontecido no Brasil em 1964.

O golpe militar, as perseguições políticas, o cerco aos sindicatos, as prisões arbitrárias e ilegais, a tortura, os assassinatos, a hipocrisia reinante.

Contei aos estudantes que Rubens Paiva era um jovem e aguerrido deputado quando o golpe fechou o parlamento: entre muitos que se calavam, ergueu a voz para denunciar o crime que se perpetrava contra as instituições e o povo brasileiro.

Viveu no exterior durante um período, mas logo tratou de voltar ao Brasil. Tratou de reerguer sua vida profissional, para garantir o sustento da família. E não deixou de lutar pelo que acreditava, apoiando, por exemplo, projetos jornalísticos que desafiavam o regime.

Era demais para a truculência ditatorial então instalada. As vozes rebeldes precisavam ser caladas. E o tacão se abateu sobre a família Rubens Paiva, como relata documento da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo –nomeada justamente em homenagem ao líder estudantil e deputado nascido em Santos.

O relatório da Comissão, que reproduzo a seguir, traz detalhes da história:

“Na madrugada do dia 20 de janeiro de 1971, foram detidas por agentes do Centro de In­formações de Segurança da Aeronáutica (CISA) no aeroporto do Galeão, Cecília de Barros Correia Viveiros de Castro e Marilene de Lima Corona, sendo retiradas de avião da Varig procedente do Chile. Na revista de Cecília e Marilene, foram encontradas diversas cartas de exilados políticos no Chile para serem entregues no Rio de Janeiro. Um dos destinatários das cartas era Rubens Paiva.
Na manhã de 20 de janeiro, feriado de São Sebastião no Rio de Janeiro, Rubens Paiva e sua família foram surpreendidos por seis agentes do CISA armados com metralhadoras, que invadiram sua casa, no Leblon, logo após Rubens Paiva receber um telefonema de uma pessoa que queria lhe entregar uma correspondência proveniente do Chile. Então com 41 anos, Rubens Paiva foi levado de sua casa para prestar depoimento, em seu próprio carro, para o Quartel da 3ª Zona Aérea, localizado ao lado do aeroporto Santos Dumont, à época comandado pelo Tenente-Brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, onde sofreu as primeiras torturas.
No mesmo dia 20 de janeiro, Rubens Paiva foi conduzido para o DOI – Destacamento de Operações de Informações do I Exército, situado na rua barão de Mesquita, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, juntamente com Cecília Viveiros de Castro e Marilene de Lima Corona. Em declarações prestadas no dia 11 de setembro de 1986, na Superintendência Regional do DPF no Rio de Janeiro, Cecília afirmou que:
“ao ser colocada no carro, encontrou no interior do mesmo um homem com as mãos amarradas, com a camisa em desalinho, tendo algumas manchas de sangue sobre a mesma e o que mais marcou a declarante foi a fisionomia do mesmo, o qual estava com os olhos ‘’esbugalhado”; que estava bastante vermelho naquela ocasião; que evidentemente aquele homem estava vivo até aquele momento; (...) ao entrar no carro que a levaria ao DOI-CODI reconheceu Rubens Paiva, e também foi reco­nhecida por aquele senhor; que esse reconhecimento foi apenas visual, não tendo na ocasião trocada nenhuma palavra(....)
No decorrer do dia 20 de janeiro, os agentes do CISA mantiveram os membros da famí­lia de Rubens Paiva incomunicáveis e detidos em sua própria casa. No dia seguinte, 21 de janeiro, Eunice Paiva e sua filha Eliane, então com 15 anos, foram levadas também para o DOI. Apesar da confirmação dos agentes do DOI de que Rubens Paiva lá estava detido, Eunice e a filha não estiveram com ele. Foram interrogadas várias vezes. A filha foi libertada no dia 23 e Eunice Paiva, apenas no dia 2 de fevereiro. Eliane, ao ser liberta na Praça Saens Peña, no bairro da Tijuca, foi informada pelo agente que fazia o serviço que o pai havia “fugido”.  Ao ser libertada, Eunice viu o carro do marido, um Opel Kadett, no pátio interno do quartel, carro que, posteriormente, foi devolvido à família mediante recibo de entrega do Ministério do Exército.
A família levou roupas para Rubens Paiva, entregues no segundo andar do Ministério do Exército, no Rio de Janeiro. Dias depois, nova entrega de roupas foi recusada, sob alegação de que ele não se encontrava em nenhuma organização militar sob o comando do I Exército. Para encobrir o desaparecimento forçado de Rubens Paiva, o Primeiro Exército divulgou versão na qual alegou que:
“O paciente não se encontra preso por ordem nem à disposição de qualquer OM deste Exército. Esclareço, outrossim, que segundo informações de que dispõe este Co­mando, o citado paciente quando era conduzido por Agentes de Segurança, para ser inquirido sobre fatos que denunciam atividades subversivas, teve seu veículo inter­ceptado por elementos desconhecidos, possivelmente terroristas, empreendendo fuga para local ignorado, o que está sendo objeto de apuração por parte deste Exército.”

Ainda que sem tantos detalhes, foi a história que contei aos estudantes da Rubens Paiva. 

Convidei a turminha para fazer uma rápida corrida memorial, mas já era quase hora do intervalo, falei para ouvidos moucos.

Na segunda conversa do dia, porém, o papo foi outro. Os quase setenta alunos de três turmas da primeira série do ensino médio não afinaram na hora do convite para a ação –brincadeira, movimento. 
Fizemos algumas voltinhas da quadra de esporte da escola.



Antes, conversamos sobre as histórias de Manoel Fiel Filho e de Rubens Paiva. “Encontraram o corpo?”, quis saber um dos garotos.

Não, não e não é a resposta. Torturado e assassinado em um quartel entre 20 e 22 de janeiro de 1971, seu corpo foi enterrado e desenterrado várias vezes por agentes da repressão, até ter seus restos jogados ao mar, na costa da cidade do Rio de Janeiro, em 1973, dois anos após sua morte.

Por mais de quarenta anos, porém, o Exército sustentou a versão do desaparecimento. Apesar de a família ter recebido o atestado de óbito em 1996, as circunstâncias da morte só vieram a ser oficialmente esclarecidas em fevereiro de 2013. Documentos então revelados pela Comissão Nacional da Verdade demonstram que Paiva morreu quando estava sob custódia do  Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do 1º Exército, no Rio de Janeiro.

Depois da revelação, uma das filhas de Paiva disse frase semelhante à usada por sua mãe em 1996, quando recebeu o atestado de óbito de Rubens Paiva.  “O sentimento foi mais uma vez dar conta do luto interminável de 42 anos. Hoje é uma certa sensação de alívio” disse a psicóloga Vera Paiva em entrevista em Brasília.
Não basta, porém, identificar e reconhecer o crime, como disse Vera Paiva. “A gente imaginava que tinha acontecido, tinha indícios, mas não tinha prova material [do assassinato]. Com esses últimos documentos, um capitulo se encerrou, mas nós temos outros que é chegar, de fato, a quem procedeu a tortura e a morte de meu pai.”
Foi assim a história que relembrei com a turminha de estudantes da escola Rubens Paiva. 

Depois do bate-papo, fomos todos para a quadra de esporte, onde alguns se arriscaram a uma corridinha. 
Ao final, cantamos juntos: “Manoel Fiel Filho, presente! Rubens Paiva, Presente!”


CORRIDA PO MANOEL – sexto dia
Destino: EMEFM Rubens Paiva, no Jardim Angelo, 20,52 km em 2h41min38
Quilometragem acumulada: 72,55 km


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