Ela sorria, mas ao mesmo tempo não conseguia
controlar as lágrimas que lhe tomavam os olhos. “É uma sensação esquisita
sentir-se aliviada com uma certidão de óbito", disse lágrimas Eunice
Paiva, viúva do deputado federal Rubens Paiva, desaparecido em 20 de janeiro de
1971.
Sua declaração à imprensa foi feita em 23 de
fevereiro de 1996, no 1º Cartório de Registro Civil de São Paulo, onde recebeu a
certidão de óbito do marido, após 25 anos de busca e espera.
"Durante muito tempo, como não nos
entregavam esse papel, eu e meus filhos (cinco) ficamos na dúvida se Rubens
estava morto ou não. Essa foi a forma de tortura mais violenta que impuseram às
famílias dos desaparecidos políticos", disse Eunice conforme registro da “Folha
de S. Paulo”.
Pois hoje, exatos 20 anos depois daquela dolorida
conquista da família Paiva, tratei de fazer uma homenagem ao ex-deputado do
Partido Trabalhista Brasil –aquele do século passado, de Getúlio e de Brizola.
Como parte do projeto CORRIDA POR MANOEL, fiz na
minha sexta jornada um trajeto de pouco mais de vinte quilômetros até a Escola
Municipal de Educação Fundamental e Média Rubens Paiva.
Pretendia pelo menos abraçar a escola com minhas
passadas –se possível fosse, talvez conversar um pouco com alguns alunos, fazer
uma corrida “in memória”.
A
escola Rubens Paiva é um portento no Jardim Ângela –este fica na zona leste da
cidade e não deve ser confundido com o distrito de mesmo nome, na zona sul da
cidade; o da zona sul é muito mais
famoso e, em anos recentes, chegou a ser a região mais violenta de São Paulo.
O
prédio da escola é gigante, se comparado com a maior parte das construções à
sua volta. A escola fica numa encosta de morro: mais para cima, há casas de
classe média, ainda que bastante simples; para baixo, há uma comunidade
carente. É cercada por ruas estreitas e tortuosas, o que não garante que motoristas
dirijam por ali em baixa velocidade: há alguns dias, uma estudante foi atropelada
quando se dirigia para a escola.
Antiga,
a Rubens Paiva viu crescer o bairro à sua volta. Instalada ali em 1997, quando
muito da região “era mato”, como dizem alguns moradores mais antigo, serviu
como polo aglutinador, imã atraindo gente para seu entorno.
Assim,
não admira que fervilhe de gente. Funciona o dia inteiro, com aulas nos turnos
da manhã, tarde e noite. No total, entre o pessoalzinho do fundamental e os
mais taludos do ensino médio, abriga cerca de 1.100 estudantes.
No
pouco tempo em que estive por lá, na manhã do dia do vigésimo aniversário da
entrega do atestado de óbito de Rubens Paiva, vi corredores livres e limpos. A
entrada da escola é protegida por grades.
Depois de entrar, o visitante precisa
ainda passar por um portão interno. Uma vez no prédio, é bem recebido: na sala
de espera, há até um bonequinho com um pequeno cartaz dizendo “Sejam Bem Vindos”.
E
bem-vindo eu fui, apesar de não ter tido oportunidade de preparar minha chegada
com mais vagar. Conversei com o diretor, Rubens Batista, veteraníssimo da escola,
onde atua desde 1998.
Gentilmente, ele abriu espaço para uma conversa com os
alunos mais velhos. Antes, ainda tive a oportunidade de apresentar o projeto da
CORRIDA POR MANOEL para alguns professores, que acompanharam nosso bate-papo
com os alunos.
Lá
fomos nós para a primeira conversa, com alunos de segunda e terceira séries do
segundo grau.
Eram
mais de 50 adolescentes na sala, e apenas dois ou três levantaram o braço
quando lhes perguntei se sabiam quem eram Rubens Paiva.
Os que responderam,
porém, foram
certeiros nas informações.
Mesmo
assim, tratei de dar um pouco mais de vida àquele conhecimento, juntando
informações, falando do que tinha acontecido no Brasil em 1964.
O golpe militar,
as perseguições políticas, o cerco aos sindicatos, as prisões arbitrárias e
ilegais, a tortura, os assassinatos, a hipocrisia reinante.
Contei
aos estudantes que Rubens Paiva era um jovem e aguerrido deputado quando o
golpe fechou o parlamento: entre muitos que se calavam, ergueu a voz para
denunciar o crime que se perpetrava contra as instituições e o povo brasileiro.
Viveu
no exterior durante um período, mas logo tratou de voltar ao Brasil. Tratou de
reerguer sua vida profissional, para garantir o sustento da família. E não deixou de lutar pelo que acreditava, apoiando, por exemplo,
projetos jornalísticos que desafiavam o regime.
Era
demais para a truculência ditatorial então instalada. As vozes rebeldes
precisavam ser caladas. E o tacão se abateu sobre a família Rubens Paiva, como
relata documento da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo –nomeada justamente
em homenagem ao líder estudantil e deputado nascido em Santos.
O
relatório da Comissão, que reproduzo a seguir, traz detalhes da história:
“Na madrugada do dia 20 de janeiro de 1971, foram detidas por agentes do Centro de Informações de Segurança
da Aeronáutica (CISA) no aeroporto do Galeão, Cecília de Barros Correia
Viveiros de Castro e Marilene de Lima Corona, sendo retiradas de avião da Varig
procedente do Chile. Na revista de Cecília e Marilene, foram encontradas
diversas cartas de exilados políticos no Chile para serem entregues no Rio de
Janeiro. Um dos destinatários das cartas era Rubens Paiva.
Na manhã de 20 de janeiro, feriado de São Sebastião no Rio de
Janeiro, Rubens Paiva e sua família foram surpreendidos por seis agentes do
CISA armados com metralhadoras, que invadiram sua casa, no Leblon, logo após
Rubens Paiva receber um telefonema de uma pessoa que queria lhe entregar uma
correspondência proveniente do Chile. Então com 41 anos, Rubens Paiva foi
levado de sua casa para prestar depoimento, em seu próprio carro, para o
Quartel da 3ª Zona Aérea, localizado ao lado do aeroporto Santos Dumont, à
época comandado pelo Tenente-Brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, onde sofreu
as primeiras torturas.
No mesmo dia 20 de janeiro, Rubens Paiva foi conduzido para o DOI
– Destacamento de Operações de Informações do I Exército, situado na rua barão
de Mesquita, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, juntamente com Cecília
Viveiros de Castro e Marilene de Lima Corona. Em declarações prestadas no dia
11 de setembro de 1986, na Superintendência Regional do DPF no Rio de Janeiro,
Cecília afirmou que:
“ao ser colocada no carro, encontrou no
interior do mesmo um homem com as mãos amarradas, com a camisa em desalinho,
tendo algumas manchas de sangue sobre a mesma e o que mais marcou a declarante
foi a fisionomia do mesmo, o qual estava com os olhos ‘’esbugalhado”; que
estava bastante vermelho naquela ocasião; que evidentemente aquele homem estava
vivo até aquele momento; (...) ao entrar no carro que a levaria ao DOI-CODI
reconheceu Rubens Paiva, e também foi reconhecida por aquele senhor; que esse
reconhecimento foi apenas visual, não tendo na ocasião trocada nenhuma
palavra(....)
No decorrer do dia 20 de janeiro, os agentes do CISA
mantiveram os membros da família de Rubens Paiva incomunicáveis e detidos em
sua própria casa. No dia seguinte, 21 de janeiro, Eunice Paiva e sua filha
Eliane, então com 15 anos, foram levadas também para o DOI. Apesar da
confirmação dos agentes do DOI de que Rubens Paiva lá estava detido, Eunice e a
filha não estiveram com ele. Foram interrogadas várias vezes. A filha foi
libertada no dia 23 e Eunice Paiva, apenas no dia 2 de fevereiro. Eliane, ao
ser liberta na Praça Saens Peña, no bairro da Tijuca, foi informada pelo agente
que fazia o serviço que o pai havia “fugido”. Ao ser libertada, Eunice
viu o carro do marido, um Opel Kadett, no pátio interno do quartel, carro que,
posteriormente, foi devolvido à família mediante recibo de entrega do
Ministério do Exército.
A família levou roupas para Rubens Paiva, entregues no segundo andar
do Ministério do Exército, no Rio de Janeiro. Dias depois, nova entrega de
roupas foi recusada, sob alegação de que ele não se encontrava em nenhuma
organização militar sob o comando do I Exército. Para encobrir o
desaparecimento forçado de Rubens Paiva, o Primeiro Exército divulgou versão na
qual alegou que:
“O paciente não se encontra preso por
ordem nem à disposição de qualquer OM deste Exército. Esclareço, outrossim, que
segundo informações de que dispõe este Comando, o citado paciente quando era conduzido
por Agentes de Segurança, para ser inquirido sobre fatos que denunciam
atividades subversivas, teve seu veículo interceptado por elementos
desconhecidos, possivelmente terroristas, empreendendo fuga para local
ignorado, o que está sendo objeto de apuração
por parte deste Exército.”
Ainda que sem tantos detalhes, foi a história que contei aos estudantes
da Rubens Paiva.
Convidei a turminha para fazer uma rápida corrida memorial,
mas já era quase hora do intervalo, falei para ouvidos moucos.
Na segunda conversa do dia, porém, o papo foi outro. Os quase setenta
alunos de três turmas da primeira série do ensino médio não afinaram na hora do
convite para a ação –brincadeira, movimento.
Fizemos algumas voltinhas da
quadra de esporte da escola.
Antes, conversamos sobre as histórias de Manoel Fiel Filho e de Rubens
Paiva. “Encontraram o corpo?”, quis saber um dos garotos.
Não, não e não é a resposta. Torturado e
assassinado em um quartel entre 20 e 22 de janeiro de 1971, seu corpo foi
enterrado e desenterrado várias vezes por agentes da repressão, até ter seus
restos jogados ao mar, na costa da cidade do Rio de Janeiro, em 1973, dois anos
após sua morte.
Por mais de quarenta
anos, porém, o Exército sustentou a versão do desaparecimento. Apesar de a
família ter recebido o atestado de óbito em 1996, as circunstâncias da morte só
vieram a ser oficialmente esclarecidas em fevereiro de 2013. Documentos então
revelados pela Comissão Nacional da Verdade demonstram que Paiva morreu quando
estava sob custódia do Destacamento de Operações de Informações -
Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do 1º Exército, no Rio de
Janeiro.
Depois da revelação, uma
das filhas de Paiva disse frase semelhante à usada por sua mãe em 1996, quando
recebeu o atestado de óbito de Rubens Paiva. “O sentimento foi mais uma vez dar conta do
luto interminável de 42 anos. Hoje é uma certa sensação de alívio” disse a
psicóloga Vera Paiva em entrevista em Brasília.
Não basta, porém,
identificar e reconhecer o crime, como disse Vera Paiva. “A gente imaginava que
tinha acontecido, tinha indícios, mas não tinha prova material [do assassinato].
Com esses últimos documentos, um capitulo se encerrou, mas nós temos outros que
é chegar, de fato, a quem procedeu a tortura e a morte de meu pai.”
Foi assim a história que
relembrei com a turminha de estudantes da escola Rubens Paiva.
Depois do
bate-papo, fomos todos para a quadra de esporte, onde alguns se arriscaram a
uma corridinha.
Ao final, cantamos juntos: “Manoel Fiel Filho, presente! Rubens
Paiva, Presente!”
CORRIDA PO MANOEL –
sexto dia
Destino: EMEFM Rubens
Paiva, no Jardim Angelo, 20,52 km em 2h41min38
Quilometragem acumulada:
72,55 km
Sua determinação é emocionante, Rodolfo. Parabéns!
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