Quando nasceu, a
rua Eli era uma coisiquinha de nada. Tinha uma casa ali, outra acolá, no meio
de um loteamento aberto no início dos anos 1920 pela Companhia Paulista de
Terrenos. Só virou rua mesmo, de verdade, com registro na Prefeitura, anos mais
tarde: foi entregue ao trânsito público em 1928, por ato assinado no dia 24 de
agosto.
Eram apenas dois
quarteirões, começando na rua Curuçá, já uma rua importante na Vila Maria –região
norte de São Paulo—e terminando em uma leve subida, encostando na rua
Araritaguaba, que hoje é larga e bastante movimentada.
Como gente, a
rua Eli cresceu, espichou-se, ganhou corpo e comprimento. Novas glebas foram
sendo incorporadas, expandia-se o número de quarteirões –os anos de 1940 e 1941
foram de grande expansão, com vários decretos municipais determinando ganhos de
área. Apesar da importância crescente no bairro –notada pelo aumentando de
quilometragem--, arquivistas, administradores e outros funcionários envolvidos
nos registros se esqueceram ou nunca fizeram questão de nos contar a razão e o por
que da denominação da artéria.
Vista da rua Eli a partir de seu ponto mais alto, na parte final -- Fotos Rodolfo Lucena |
Para os que lá
moravam, não fazia diferença, por certo. Chegava-se lá por precisão,
necessidade, oportunidade. A rua abrigava gente trabalhadora, operários
metalúrgicos, trabalhadores em tecelagens. Apesar do trabalho pesado, os ganhos
eram poucos.
Quem podia
construía uma peça nos fundos do quintal ou liberava um cômodo da casa para
alugar para outros ainda mais precisados, que estavam a recém construindo a
vida independente.
Era o caso, no
final dos anos 1940, de Manoel Fiel Filho.
Nascido em
família pobre, 14º de 17 filhos de um trabalhador do campo, desde pequeno
enfrentou a enxada e a terra seca em Quebrangulo, no interior de Alagoas, a
cerca de 130 quilômetros de Maceió.
A vida ficou
mais difícil depois que a mãe morreu, e o pai teve de cuidar da casa, da roça e
do sustento da filharada, que nem sempre tratava com a maior gentileza do
mundo.
“Meu avô era um
carrasco”, diz a filha caçula de Manoel, Márcia, que hoje vive em Bragança
Paulista. Talvez fosse a dureza do cotidiano: “Eles eram sofridos”.
Uma hora não deu mais para Manoel. Com 17 anos, juntou o pouco que tinha,
arregimentou os trocados que conseguira economizar, uma muda de roupa ou pouco
mais e encarou horas a fio na traseira de um caminhão para chegar a São Paulo.
Foi buscar seus
sonhos viajando num pau de arara –o mesmo apelido de instrumento de tortura
usado nos porões do DOI-CODI, onde, mais de vinte anos mais tarde, Manoel iria ser
assassinado.
Chegou à cidade
grande sem saber fazer muita coisa: tinha a experiência das lides do campo e a
vontade de trabalhar, ganhar o próprio sustento, conquistar uma vida melhor.
Conseguia um
emprego, aprendia o ofício, avançava. Depois de alguns anos em
São Paulo, trabalhou em padarias. Depois, foi ser cobrador de ônibus, uma linha
que cruzava pela Vila Maria, onde Manoel já morava.
Primeiro,
dividiu espaço em uma casa com seu amigo Antonio Pereira, eletricista de
profissão. Mais tarde, foi viver nos fundos de uma casa na rua Eli. Lá conheceu
o amor de sua vida.
E foi para lá
que parti nesta manhã, no segundo dia de minha CORRIDA POR MANOEL. Queria
mergulhar na história do cidadão e também aprender um pouco do que as ruas nos
contam sobre a cidade em que vivemos.
Meu caminho cruzou a cidade do oeste ao nordeste. Cedinho, desci correndo a Consolação, passando
pelo maior shopping a céu aberto de lustres no mundo –pelo menos, no dizer dos
lojistas da região.
Logo ao ver o
prédio onde funcionou, décadas atrás, o famoso bar Redondo, quebrei para a
esquerda, enveredando pela avenida Ipiranga. Bem antes de chegar à festejada
esquina com a São João, passei pela não menos famosa boate Love Story.
Inacreditável:
às 7h24 de uma quinta-feira, a “casa de todas as casas”, onde o povo que trabalha
na noite se reúne depois do expediente, estava bombando.
O som do baticum
chegava à calçada, onde alguns frequentadores ainda se cumprimentavam
afetuosamente. Pensei até em fotografar o ambiente, mas o olhar pouco amistoso
dos seguranças estilo armário me fez desistir da ideia...
No caminho para
a avenida do Estado, passei ao largo do belo e octogenário prédio do Mercado
Público, projetado pelo arquiteto
Francisco de Paula Ramos de Azevedo –que hoje é nome de praça ao lado do
Theatro Municipal. Do lado de cá da rua, porém, as coisas não estava tão boas:
talvez atingido por um carro, um poste mal se equilibrava, caído sobre a
calçada.
Cada rua que
cruzava contava um pouco da história da cidade. Primeiro, o entorno do
mercadão, com suas ruas estreitas e fedidas, pequenos armazéns e distribuidores
de mantimentos. A seguir, cortei ruas conhecidas pelo comércio que abrigam, com
a São Caetano, a “Rua das Noivas”.
Havia que atravessar a avenida do Estado para adentrar na região norte da cidade. Passei peja João
Teodoro, que sai do Bom Retiro e corta o Brás, repleto de lojas de roupas e
confecções.
Artéria
poderosa, movimentado centro comercial, a João Teodoro tem mais de 140 anos.
Seu batismo oficial ocorreu em 1875. O padrinho foi o presidente da Câmara
Municipal, Ernesto Mariano da Silva Ramos: "Proponho que se dê em sinal de reconhecimento aos relevantes
melhoramentos feitos á esta Capital pelo atual presidente da Província, dê-se à
rua que partindo do Campo da Luz se dirige a Ponte dos Lázaros o nome de Rua do
Dr. João Theodoro". O homenageado era um jurista, catedrático de direito
civil da Faculdade de Direito de São Paulo. Foi até presidente da então
Província de São Paulo.
Gente fina, hein! Nada que mude a vida dos que hoje por
ali vendem calças e calções, vestidos, camisetas, bonés, roupa de casar e roupa
de correr.
Não deu nem para prestar muita atenção nas vitrines:
havia que correr para achar a minha ponte para cruzar o rio Tietê.
O caminho
passava por homenagem a outro brasileiro ilustre: a travessia é nomeada em
honra do ex-presidente Jânio Quadros (1917-1992), que fez da Vila Maria seu
reduto eleitoral.
Jânio gostava do povo desse antigo bairro –na época do Império, dom
Pedro Primeiro tinha uma chácara na área.
Em seus discursos na comunidade, Jânio sempre começava conclamando “Povo da Vila Maria”... Certa vez, talvez achando
que a identificação não estivesse precisa o suficiente, Jânio Quadro emendou: “...da
Vila Maria Alta, da Vila Maria Baixa e, por que não dizer, da Vila Maria do
Meio...”
Essa, por certo, não existia. A Vila Maria baixa é a
parte mais perto do rio Tietê, onde começa a rua Eli.
É um começo meio tristonho, porque fechado. A rua inicia
no número 14, uma transportadora, mas não sai de nenhuma avenida, não nasce na
Marginal. Seu início é um muro, dos fundos de uma unidade do Corpo de
Bombeiros.
Quebrando a feiura do muro, um portão, saída de veículos, por onde
carros e caminhões de bombeiros podem passar em uma emergência, caso a entrada
principal esteja bloqueada.
Inteira, de cabo a rabo, a Eli tem pouco mais de um
quilômetro e meio --a numeração termina no 1.599.
No meu GPS, deu 1.650 metros, mas eu atravessei a rua várias
vezes para fazer fotos. Uma delas é de um muro pintado, o único da rua com
desenho, uma bela invenção de espírito infantil (ou assim me pareceu).
Também há apenas um prédio de apartamentos. É uma
construção imponente, com vários blocos e mais de seis andares, que se destaca
no cenário de casinhas baixas e pequenos sobrados, oficinas de automóveis,
escritórios e representações comerciais. Em breve, porém, será desafiado por um
edifício mais novo, também de vários andares, que está nas etapas finais da
construção.
Para o corredor, o piso da rua Eli manda informações
diversas, nem sempre agradáveis. O começo é de asfalto, dá para correr um
pouco; logo, porém, temos traiçoeiros paralelepípedos: há que cuidar para não
escorregar em uma pedra mais lisa ou evitar uma topada em alguma outra mal
instalada.
Mais à frente, assim que passa a marca do primeiro
quilômetro, a rua volta a ser asfaltada; estamos então em uma área mais rica do
território. Um prédio da Secretaria da Fazenda, em alvenaria bem pintada,
parece sinalizar a mudança de perfil da rua Eli, que inicia naquele ponto a
subida até a Araritaguaba.
Não foi nesse
terreno que Manoel viveu.
Pela descrição
das filhas, a moradia dos parentes de dona Thereza era na área mais baixa da
rua, perto de onde ela se inicia: “Era uns pântanos, tinha uns alagados. Acho
que era a penúltima casa”, diz Márcia, que hoje tem 56 anos –era uma
adolescente de 16 anos quando seu pai foi sequestrado, torturado e morto.
Onde quer que
fosse, a casa de dona Alzira, tia de Thereza, não existe mais. Afinal, já se passaram
mais de 60 anos desde que a então moçoila, frequentando a casa da tia, botou os
olhos no inquilino.
Dona Thereza de Lourdes, 84, dá entrevista na casa de sua filha mais nova, Marcia, em Bragança Pualista - Foto Eleonora de Lucena |
“Ele era um
homem bonito”, diz ela hoje, como um sorriso que a deixa sonhadora como se
fosse a menina de 20 anos de quando conheceu Manoel.
No maior
respeito, os dois se conheceram, conversaram, namoraram, casaram. Não puderam
ser felizes para sempre, como nos contos de fadas, mas foi bom enquanto durou.
“Tiraram minha
felicidade”, diz a Thereza de hoje.
Dia 2 - Corrida Por Manoel
Percurso de 15 km feito em 1h51min31
Distância acumulada: 18,58 km
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