28.2.16

Viagem até o sobrado onde Manoel vivia quando foi sequestrado

Manoel Fiel Filho foi sequestrado no dia 16 de janeiro de 1976. Dois homens o pegaram na fábrica onde ele trabalhava, a Metal Arte, e o levaram para o DOI_CODI, onde foi torturado até a morte. Antes, passaram pela casa onde o metalúrgico morava com a esposa, dona Thereza de Lourdes, e a filha caçula, Márcia.

Com 16 anos, a menina trabalhava e estudava, passava o dia fora. Só dona Thereza estava no sobrado da rua Coronel Rodrigues, número 155, quando Manoel chegou de surpresa, trazido por aqueles dois desconhecidos.

Hoje, 40 anos depois, a viúva ainda se emociona quando descreve aqueles momentos. Sentada no sofá da casa de Márcia, em Bragança Paulista, onde a família vive atualmente, dona Thereza conta o momento da despedida.

Era hora do almoço. Eu comecei a chorar, ele falou assim: `Não chora, não, nêga, eu vou voltar logo`. Me deu um beijo na testa e foi embora. Era uma sexta-feira; no sábado, na hora do almoço, ele já estava morto.”

O sobrado da rua Coronel Rodrigues, número 155, último local em que o operário metalúrgico foi visto com vida e em liberdade, foi o meu destino no décimo dia da CORRIDA POR MANOEL.


Como em outras jornadas deste mergulho na história de Manoel, o percurso cortou a cidade. 

A família Fiel Filho era consistentemente zona leste: lá morava, lá Manoel trabalhava, lá a filha mais nova, Márcia, estudava. Aparecida, a mais velha, já estava casada na época, mas também vivia na região.

Para quem sai do centro, um dos acessos à zona leste é pela rua da Mooca. Partindo da Sé, do Marco Zero da cidade, na praça da Sé, há que descer a rua Tabatinguera, passar por baixo do viaduto do Glicério e cruzar o viaduto Abreu Sodré.


Foto Ayrton Vignola Jr., repórter fotográfico que correu comigo neste domingo

É uma região pobre e cinzenta; sob o viaduto, convivem moradores de rua, coletores de material reciclado e homens e mulheres que pensam apenas na próxima tragada ou na cheirada seguinte em alguma droga qualquer.

Do alto do viaduto, veem-se esqueletos de antigos armazéns da Mooca, os trilhos do trem que separam a periferia da região central da cidade. No início da manhã deste domingo, as avenidas lá embaixo estavam quase vazias; destacava-se um grupo de velhos Fuscas, talvez rumando para um encontro de colecionadores...



As primeiras centenas de metros da rua da Mooca são as mais carentes. Nas transversais, como nos baixios dos viadutos, moradores de rua. Algumas fachadas, por certo, dão acesso a cortiços em que se acotovelam várias famílias. 

Numa entrada de estacionamento, uma placa avisa: “Aluga-se cômodo para boliviano”.




Depois do primeiro quilômetro zona leste adentro, a rua da Mooca parece ganhar mais movimento, mesmo no domingão preguiçoso. Ficaram para trás os esqueletos de antigas fábricas, os armazéns de paredes pichadas. Há igrejas, padarias, restaurantes.

Com meu amigo Ayrton Vignola Júnior, repórter fotográfico, ciclista e ultramontanhista –veterano de provas cabulosas em montanhas, como a Ultramaratona dos Anjos--, seguimos descobrindo mistérios da Mooca.

Um deles deixa este gremista gaúcho de queixo caído. É a churrascaria Gre-nal Grill, que está fechada na hora quase madrugadeira quando passamos por lá.


Na sua propaganda, convivem em paz os símbolos do Grêmio e do Internacional, os times que tomam conta do coração e das emoções da gauchada –já deu até morte em choques das duas torcidas.

Na rua da Mooca, não. Ali, Grêmio e Inter convivem em harmonia à beira da churrasqueira.


Um pouco mais adiante, encontramos a escola André Xavier Gallicho

onde Márcia Fiel estudou. Parece indício de que estamos perto do destino, mas não; apenas adentramos a “região Fiel”, há ainda muito a percorrer.

A próxima etapa é subir a grandiosa avenida Sapopemba, marco da zona leste, que se vai embora por 26 quilômetros e chega até o vizinho município de Mauá.

Três horas de subidas e descidas saindo da zona oeste da cidade para chegar à rua Coronel Rodrigues



Há dois anos, percorri cada um dos encabritados metros da Sapopemba. Agora, porém, vamos parar bem antes. Passamos pelo ponto em que uma adutora serve de divisa da rua e desculpa para instalação de uma longa praça. Fazemos uma parada no bar do Pagé para hidratação e seguimos subindo.

A rua Coronel Rodrigues nasce em um dos pontos mais altos da Sapopemba, quase 800 metros acima do nível do mar.

E segue subindo por três quarteirões, depois forma um platô e desce um pouquinho. Mesmo assim, do final da rua, a 832 metros de altitude, dá para ver os confins da zona leste, imagem aberta que dá ideia das mastodônticas dimensões da cidade.



A casa onde viveu a família Fiel fica na parte inicial da rua, quase no final da primeira subidona. A julgar pelo que dona Thereza e as filhas contam pelo que disseram à imprensa os vizinhos na época do sequestro, é bem possível que Manoel jamais tenha ido até o ponto final de sua rua, jamais tenha visto a cidade que se espalhava na distância.

O sobrado em que a família morou por cerca de quatro ou cinco anos fica na parte inicial da Coronel Rodrigues, quase no alto da primeira subida. Tem cerca de seis metros de frente, e a casa começa pela garagem.


Foto Ayrton Vignola Jr.


Caseira, a família não tinha grande vida social. “Bom dia”, “boa tarde”, cumprimentos formais era o máximo que trocavam com os vizinhos, segundo texto publicado em 1976 na “Folha de S. Paulo”.

“É uma boa freguesa, paga sempre direitinho”, disse alguém à reportagem, referindo-se à dona Thereza. Também sobre ela foi dito: “É uma boa dona de casa”.

Os homens que chegaram com Manoel por volta do meio-dia de 16 de janeiro de 1976 bagunçaram a casa toda. Chegaram armados, com “arma grande”, embrulhada em jornal, como nos disse a viúva de Manoel.

Na época, ela contou mais detalhes ao repórter Carlos Alberto Luppi, conforme o livro “Manoel Fiel Filho – Quem Vai Pagar Por Este Crime?”:

“Logo antes do almoço, ele passou por aqui com dois homens em trajes civis, que se diziam funcionários da Prefeitura. Estava muito branco, e eu observei logo que os homens eram policiais. Estavam com duas metralhadoras embrulhadas num papel de jornal. Eu esbarrei numa delas e um dos homens gritou: “Não mexa nisso aí. Saia daí!’ “

Os dois homens reviraram a casa toda, mexeram em tudo: livros, armários. “Ainda bem que não encontramos prova alguma, hein, Manoel!”, disse um deles, conforme o relato de dona Thereza.

Ela quis saber de que prova estavam falando. “Estamos procurando um jornalzinho”, disse um polícia.

Dona Thereza disse então que tinha o jornal do Sindicato dos Metalúrgicos, e Manoel pediu para ela ser deixada em paz.

A conversa já estava chegando ao fim. Um dos homens ordenou: “A senhora não vai abrir a boca nem avisar pra vizinho algum que estivemos aqui”.

Dona Thereza perguntou para onde estavam levando o marido, o que seria dele: “Se ele não voltar hoje, volta amanhã”, respondeu-lhe um dos policiais.

Ela não se deu por achada, não calou a boca. Seguiu questionando os policiais, conforme registra o livro de Luppi.

 “O que vou dizer para minha filha quando ela chegar e perguntar pelo pai?”, interpelou.

“A senhora diz pra ela que o Manoel teve que fazer um trabalho extra na fábrica à noite e por isso vai chegar tarde”, disse um agente.

Dona Thereza contra-ataca: “Mas meu marido não faz hora extra à noite. Nunca fez e a menina não vai acreditar”.

“Então a senhora fale para ela o que bem entender.”

Ela não se calou: “Os senhores estão dizendo que são da Prefeitura, que ele vai assinar uns papeis, mas quem cuida dos assuntos dele com a Prefeitura sou eu”.

Não tinha mais nada a ser dito, os policias já lhe carregavam o marido.

Manoel ainda teve tempo para tentar consolar a mulher: “Não chora, não, nêga, eu vou voltar logo”. Deu-lhe um beijo na testa e se foi.



CORRIDA POR MANOEL – décimo dia
Destino: Rua Coronel Rodrigues, 155, percurso de 18,77 km realizado em 2h26min16


Distância acumulada: 107,02 km

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