Manoel
Fiel Filho foi sequestrado no dia 16 de janeiro de 1976. Dois homens o pegaram
na fábrica onde ele trabalhava, a Metal Arte, e o levaram para o DOI_CODI, onde
foi torturado até a morte. Antes, passaram pela casa onde o metalúrgico morava
com a esposa, dona Thereza de Lourdes, e a filha caçula, Márcia.
Com
16 anos, a menina trabalhava e estudava, passava o dia fora. Só dona Thereza
estava no sobrado da rua Coronel Rodrigues, número 155, quando Manoel chegou de
surpresa, trazido por aqueles dois desconhecidos.
Hoje,
40 anos depois, a viúva ainda se emociona quando descreve aqueles momentos.
Sentada no sofá da casa de Márcia, em Bragança Paulista, onde a família vive
atualmente, dona Thereza conta o momento da despedida.
“Era hora do
almoço. Eu comecei a chorar, ele falou assim: `Não chora, não, nêga, eu vou
voltar logo`. Me deu um beijo na testa e foi embora. Era uma sexta-feira; no
sábado, na hora do almoço, ele já estava morto.”
O sobrado da rua Coronel Rodrigues,
número 155, último local em que o operário metalúrgico foi visto com vida e em
liberdade, foi o meu destino no décimo dia da CORRIDA POR MANOEL.
Como em outras jornadas deste mergulho
na história de Manoel, o percurso cortou a cidade.
A família Fiel Filho era
consistentemente zona leste: lá morava, lá Manoel trabalhava, lá a filha mais
nova, Márcia, estudava. Aparecida, a mais velha, já estava casada na época, mas
também vivia na região.
Para quem sai do centro, um dos acessos
à zona leste é pela rua da Mooca. Partindo da Sé, do Marco Zero da cidade, na
praça da Sé, há que descer a rua Tabatinguera, passar por baixo do viaduto do
Glicério e cruzar o viaduto Abreu Sodré.
Foto Ayrton Vignola Jr., repórter fotográfico que correu comigo neste domingo |
É uma região pobre e cinzenta; sob o
viaduto, convivem moradores de rua, coletores de material reciclado e homens e
mulheres que pensam apenas na próxima tragada ou na cheirada seguinte em alguma
droga qualquer.
Do alto do viaduto, veem-se esqueletos
de antigos armazéns da Mooca, os trilhos do trem que separam a periferia da
região central da cidade. No início da manhã deste domingo, as avenidas lá
embaixo estavam quase vazias; destacava-se um grupo de velhos Fuscas, talvez
rumando para um encontro de colecionadores...
As primeiras centenas de metros da rua
da Mooca são as mais carentes. Nas transversais, como nos baixios dos viadutos,
moradores de rua. Algumas fachadas, por certo, dão acesso a cortiços em que se
acotovelam várias famílias.
Numa entrada de estacionamento, uma placa avisa: “Aluga-se
cômodo para boliviano”.
Depois do primeiro quilômetro zona
leste adentro, a rua da Mooca parece ganhar mais movimento, mesmo no domingão
preguiçoso. Ficaram para trás os esqueletos de antigas fábricas, os armazéns de
paredes pichadas. Há igrejas, padarias, restaurantes.
Com meu amigo Ayrton Vignola Júnior,
repórter fotográfico, ciclista e ultramontanhista –veterano de provas
cabulosas em montanhas, como a Ultramaratona dos Anjos--, seguimos descobrindo mistérios da
Mooca.
Um deles deixa este gremista gaúcho de
queixo caído. É a churrascaria Gre-nal Grill, que está fechada na hora quase
madrugadeira quando passamos por lá.
Na sua propaganda, convivem em paz os
símbolos do Grêmio e do Internacional, os times que tomam conta do coração e
das emoções da gauchada –já deu até morte em choques das duas torcidas.
Na rua da Mooca, não. Ali, Grêmio e
Inter convivem em harmonia à beira da churrasqueira.
Um pouco mais adiante, encontramos a escola André Xavier Gallicho
onde Márcia Fiel estudou. Parece
indício de que estamos perto do destino, mas não; apenas adentramos a “região
Fiel”, há ainda muito a percorrer.
A próxima etapa é subir a grandiosa
avenida Sapopemba, marco da zona leste, que se vai embora por 26 quilômetros e
chega até o vizinho município de Mauá.
Três horas de subidas e descidas saindo da zona oeste da cidade para chegar à rua Coronel Rodrigues |
Há dois anos, percorri cada um dos
encabritados metros da Sapopemba. Agora, porém, vamos parar bem antes. Passamos
pelo ponto em que uma adutora serve de divisa da rua e desculpa para instalação
de uma longa praça. Fazemos uma parada no bar do Pagé para hidratação e
seguimos subindo.
A rua Coronel Rodrigues nasce em um dos
pontos mais altos da Sapopemba, quase 800 metros acima do nível do mar.
E segue
subindo por três quarteirões, depois forma um platô e desce um pouquinho. Mesmo assim, do final da rua, a 832
metros de altitude, dá para ver os confins da zona leste, imagem aberta que dá
ideia das mastodônticas dimensões da cidade.
A casa onde viveu a família Fiel fica
na parte inicial da rua, quase no final da primeira subidona. A julgar pelo que
dona Thereza e as filhas contam pelo que disseram à imprensa os vizinhos na
época do sequestro, é bem possível que Manoel jamais tenha ido até o ponto
final de sua rua, jamais tenha visto a cidade que se espalhava na distância.
O sobrado em que a família morou por
cerca de quatro ou cinco anos fica na parte inicial da Coronel Rodrigues, quase
no alto da primeira subida. Tem cerca de seis metros de frente, e a casa começa
pela garagem.
Foto Ayrton Vignola Jr. |
Caseira, a família não tinha grande
vida social. “Bom dia”, “boa tarde”, cumprimentos formais era o máximo que
trocavam com os vizinhos, segundo texto publicado em 1976 na “Folha de S. Paulo”.
“É uma boa freguesa, paga sempre
direitinho”, disse alguém à reportagem, referindo-se à dona Thereza. Também
sobre ela foi dito: “É uma boa dona de casa”.
Os homens que chegaram com Manoel por
volta do meio-dia de 16 de janeiro de 1976 bagunçaram a casa toda. Chegaram
armados, com “arma grande”, embrulhada em jornal, como nos disse a viúva de
Manoel.
Na época, ela contou mais detalhes ao
repórter Carlos Alberto Luppi, conforme o livro “Manoel Fiel Filho – Quem Vai
Pagar Por Este Crime?”:
“Logo antes do almoço, ele passou por
aqui com dois homens em trajes civis, que se diziam funcionários da Prefeitura.
Estava muito branco, e eu observei logo que os homens eram policiais. Estavam
com duas metralhadoras embrulhadas num papel de jornal. Eu esbarrei numa delas
e um dos homens gritou: “Não mexa nisso aí. Saia daí!’ “
Os dois homens reviraram a casa toda,
mexeram em tudo: livros, armários. “Ainda bem que não encontramos prova alguma,
hein, Manoel!”, disse um deles, conforme o relato de dona Thereza.
Ela quis saber de que prova estavam
falando. “Estamos procurando um jornalzinho”, disse um polícia.
Dona Thereza disse então que tinha o
jornal do Sindicato dos Metalúrgicos, e Manoel pediu para ela ser deixada em
paz.
A conversa já estava chegando ao fim.
Um dos homens ordenou: “A senhora não vai abrir a boca nem avisar pra vizinho
algum que estivemos aqui”.
Dona Thereza perguntou para onde
estavam levando o marido, o que seria dele: “Se ele não voltar hoje, volta
amanhã”, respondeu-lhe um dos policiais.
Ela não se deu por achada, não calou a
boca. Seguiu questionando os policiais, conforme registra o livro de Luppi.
“O
que vou dizer para minha filha quando ela chegar e perguntar pelo pai?”, interpelou.
“A senhora diz pra ela que o Manoel teve
que fazer um trabalho extra na fábrica à noite e por isso vai chegar tarde”,
disse um agente.
Dona Thereza contra-ataca: “Mas meu
marido não faz hora extra à noite. Nunca fez e a menina não vai acreditar”.
“Então a senhora fale para ela o que
bem entender.”
Ela não se calou: “Os senhores estão
dizendo que são da Prefeitura, que ele vai assinar uns papeis, mas quem cuida
dos assuntos dele com a Prefeitura sou eu”.
Não tinha mais nada a ser dito, os
policias já lhe carregavam o marido.
Manoel ainda teve tempo para tentar
consolar a mulher: “Não chora, não, nêga, eu vou voltar logo”. Deu-lhe um beijo
na testa e se foi.
CORRIDA POR MANOEL – décimo dia
Destino: Rua Coronel Rodrigues, 155,
percurso de 18,77 km realizado em 2h26min16
Distância acumulada: 107,02 km
No comments:
Post a Comment