Concentração na chegada em frente ao prédio do DOI-CODI --fotos Eleonora de Lucena |
Uma
caminhada cívica marcou na manhã desta quarta-feira o início do projeto CORRIDA
POR MANOEL, homenagem jornalístico-esportiva a Manoel Fiel Filho, operário
metalúrgico torturado e morto pela ditadura militar há 40 anos.
Dezenas
de pessoas se concentraram na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo eMogi das Cruzes, na Liberdade (região central de São Paulo), onde foi realizado
o ato de abertura da CORRIDA POR MANOEL.
Além
de integrantes da diretoria do sindicato, como o secretário-geral, Jorge Carlos
de Moraes –o Arakém--, e a tesoureira-geral, Elza de Fátima Costa, participaram
dirigentes de entidades como Núcleo Memória, Centro de Memória Sindical, aCoordenação de Direito à Memória e à Verdade da Secretaria Municipal deDireitos Humanos e Cidadania, Memorial da Resistência. Aquiles Reis, do MPB4,
também disse presente.
Concentração no Sindicato dos Metalúrgicos, estou entre Campos e Arakém; no centro, Elza |
José
Francisco Campos, diretor e coordenador do Departamento de Memória Sindical,
lembrou a mobilização da diretoria do sindicato em 1976, logo que correu pela “rádio-peão”
a notícia da prisão e, depois, da morte de Fiel Filho.
“Nós
fomos à casa dele, levar solidariedade a dona Thereza”, disse Campos. Era o fim
da tarde de sábado, e um saco de lixo tinha sido atirado em frente à casa dela:
era o macacão azul que Manoel vestia quando fora preso.
A
informação oficial era de que Manoel havia se enforcado com as meias. “Ele foi
preso de chinelos”, afirmou Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, presidente
do Sindicato dos Metalúrgicos quando Manoel foi assassinado.
Preparação da caminhada; ao fundo, de camiseta cinza e com cartaz referente à mobilização para marcar os 50 anos do golpe militar, Carla Borges, da Secretaria Municipal dos Direitos Humanos, |
Apesar
da mordaça da ditadura, a entidade denunciou a farsa montada no DOI-CODI.
Chegou a mandar telegrama ao general Ernesto Geisel, então presidente da
República, exigindo investigações e a demissão do comandante do Segundo Exército,
que era o responsável pelo DOI-CODI.
Nas
bases do movimento sindical, a denúncia e as vozes de protesto também se ouviam.
Em poucos dias, panfletos relatando o crime da ditadura e chamando o povo
brasileiro à luta por democracia circulavam nos principais centros.
Últimos momentos antes do início da caminhada |
O
site Documentos Revelados conseguiu recuperar um desses panfletos, feito ainda
em máquina de escrever e reproduzido artesanalmente. Foi encontrado pendurado
em um gancho em uma passarela na Avenida Brasil (Rio de Janeiro).
Pelo
resumo que faz dos fatos envolvendo a morte de Manoel e das lutas populares
naquele ano de 1976, eu li o documento no ato do Sindicato dos Metalúrgicos.
Eis o texto:
“Um operário foi assassinado.
Seu nome: Manoel Fiel Filho.
Era metalúrgico. Trabalhava na fábrica Metal Arte em São Paulo.
No dia 16 de janeiro dois agentes da polícia política prenderam Manoel no
trabalho e entregaram aos militares gorilas do II Exército.
Na noite do dia seguinte, um desses agentes jogou no quintal de sua casa
um saco de lixo. Dentro do saco estavam as roupas e documentos de Manoel.
Manoel estava morto.
O que fez esse companheiro para merecer a morte depois de ser torturado
nas mãos dos gorilas assassinos do II Exército?
Que “crime” cometeu esse trabalhador?
Havia contra ele vagas acusações de “atividades subversivas”.
A ditadura o acusava do “crime” de combater o arrocho salarial.
Acusava-o do “crime” de lutar contra a carestia: contra o aumento do pão
de leite e de todos os alimentos. Contra o aumento dos aluguéis, da condução,
de tudo. Contra a roubalheira do BNH e por uma vida mais decente para os
trabalhadores.
Acusava-o de “crime” de reivindicar as liberdades democráticas e lutar
por uma sociedade sem exploradores, onde os trabalhadores que tudo produzem
sejam também o poder.
Esses “crimes” a ditadura dos patrões não tolera e quando pode pune com a
morte.
Mas esses gorilas selvagens que assassinam para defender os lucros dos
patrões também são os reis da covardia. Matam mas não reconhecem o crime. E
inventam histórias pensando que o povo é idiota e que engole qualquer mentira.
Mandaram dizer pelos jornais que Manoel se suicidou enforcando-se com uma
meia.
Onde já se viu alguém se enforcar com uma meia?
Não é a primeira vez que essas desculpas cínicas e covardes são usadas
para encobrir os crimes mais monstruosos contra presos acusados de “atividades
subversivas”.
Assim foi com o metalúrgico Olavo Hansen, preso e assassinado em maio de
1970 pelo DEOPS paulista. Também disseram que ele se suicidou envenenando-se na
prisão.
Assim foi com Mário Alves, Joaquim Câmara Toledo, João Lucas Alves, Paulo
Wright, Alexandre Vannucci Leme, Stuart Jones, Lincon Bicalho Roque, Luiz
Hirata, Rubens Paiva e muitos outros.
Assim foi com os 17 “desaparecidos”.
Assim foi com o jornalista Vladimir Herzog, assassinado há 3 meses nas
mesmas dependências do II Exército. Pelos mesmos torturadores do DOI-CODI.
Também disseram que ele se suicidou enforcando-se com um cinto.
Com medo de que esse assassinato provoque uma revolta muito grande, o
presidente da república tirou o general Ednardo D’Ávila Mello (responsável
direto pelas torturas e assassinatos em São Paulo) do comando do II Exército e
isso bastou para que a maioria dos políticos do MDB passasse a elogiar a
atitude de Geisel.
Mas porque Geisel não bota esse assassino na cadeia? Por que não manda
prender seus cúmplices? Por que não
dissolve o DOI, o CODI, o DOPS, o SNI e todos esses órgãos de repressão através
dos quais os militares gorilas perseguem, torturam e matam?
A resposta é simples: É porque Geisel não passa de um cúmplice desses
torturadores.
Os políticos do MDB, apesar da censura e das cassações, ainda podem fazer
declarações nos jornais. E se não protestam contra esse crime, se não exigem
sua apuração, se não exigem que Ednardo e seus gorilas sejam
trancafiados atrás das grades, estarão sendo cúmplices também.
Cúmplices dos torturadores: cúmplices de
Geisel. Cúmplices da ditadura!
Esse crime não pode ficar em branco, ele tem
que ser investigado. Os culpados por esse assassinato têm que aparecer. Têm que
ser desmascarados e punidos.
O sangue dos trabalhadores não pode continuar
servindo de alimento para saciar a fome e a sede desses gorilas fardados que
resolveram, as custas no nosso suor, fazer desse país um paraíso para os
grandes patrões e um inferno para os trabalhadores.
Pau neles!
Pela punição do general Ednardo e de todos os
assassinos e torturadores de presos políticos – Pelo desmantelamento dos órgãos
de repressão e pelo fim das perseguições políticas – Pela anistia completa a
todos os presos políticos do país - Lutemos pelas liberdades democráticas e
pela derrubada da ditadura – Lutemos
pelo fim da exploração e por um governo dos trabalhadores”
Com brados de “Manoel Fiel Filho – Presente!” e “Para
que não se esqueça – para que nunca mais aconteça”, fechamos o ato ali e
começamos a nos preparar para a caminhada.
Caminhada sobe pela rua São Joaquim, no bairro da Liberdade |
Além do material organizado pelo Sindicato dos
Metalúrgicos, vários grupos trouxeram cartazes e faixas lembrando a importância
de preservar a memória das lutas sindicais e populares e dos homens e mulheres
que deram suas vidas pela democracia no Brasil.
Foi esse o espírito de nossa caminhada cívica, no início da CORRIDA POR MANOEL:
uma homenagem reverente a quem fez por merecer e um alerta para que estejamos
todos vigilantes para que crimes como aquele não se repitam.
Manifestação segue pela rua Vergueiro em direção à Paulista |
Com animação garantida pelo gogó de experientes
agitadores de porta de fábrica, saímos enfim pela Galvão Bueno.
Ocupando parte da rua, descemos a Galvão e subimos
a rua São Joaquim, bem no coração da Liberdade, bairro da região central que se
tornou famoso por abrigar a comunidade japonesa – hoje, há muitos representantes
de outros países asiáticos.
Deu até para a Eleonora fazer uma composição com as nuvens e o céu querendo ficar azul |
A faixa que abria nossa passeata já informava a
razão e o por que da caminhada, de nossos gritos e de nossa luta: “Salve Manoel
Fiel Filho – OP Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e Mogi das Cruzes
reverencia sua memória”.
Para deixar tudo mais claro, porém, os colegas que
caminhavam com o megafone faziam breves discursos contando a história de
Manoel, afirmando que estávamos na rua para dizer: “Ditadura Nunca Mais”
E foi assim, caminhando e bradando slogans –-que é
uma forma de cantar--, que chegamos à rua do Paraíso, avançamos pela Abílio
Soares e tomamos a Paulista.
Companheirada cruza a avenida Paulista |
Nunca foi tão emocionante caminhar naquele platô,
nem mesmo na minha mais rápida e fulgurante chegada em São Silvestre.
Os
corredores sabemos o quanto empolga
ver a Paulista lá no alto, enquanto
resfolegamos pela Brigadeiro; e o quanto acalma e turbilhona a alma quando
enfim fazemos a curva derradeira da São Silvestre.
É nóis! Passeata inaugural da CORRIDA POR MANOEL ocupa faixas na avenida Paulista |
Pois para mim hoje foi muito mais. Corredores e
caminhantes, sindicalistas e músicos, estudantes e trabalhadores estávamos
todos revivendo e revigorando a memória com nossas passadas. E parando a cidade
e fazendo a cidade parar para ver a passeata passar, parar para ouvir a chamada
“Para que não se esqueça – para que nunca mais aconteça”.
A Paulista não era nosso destino na manhã de hoje,
mas, para mim, aqueles dois quarteirões tiveram um significado todo especial,
de conquista, de alegria, de fraternidade e parceria com todos os que ali
estavam.
Descendo a Tomás Carvalhal, luz do sol afogueia bandeira carregada por militante |
Descemos enfim a Tomás Carvalhal, no bairro do
Paraíso --triste ironia, pois ali funcionou a Sucursal do Inferno.
A essa altura, tínhamos apoio e proteção de carros
da Polícia Militar; duas viaturas abriam o caminho, liberando o trânsito para a
primeira jornada da CORRIDA POR MANOEL, e uma terceira acompanhava o final da
passeata, também protegendo nossos caminhantes.
No final da descida, já encontrávamos muros que
cercam o complexo onde funcionou o DOI-CODI. Apontando um portão fechado, não
mais utilizado hoje em dia, o ex-preso político Maurice Politi lembrou: “Era
por ali que saíam os carros”.
Do lado direito, segurando a faixa, de óculos escuros, o ex-preso político Maurice Politi |
Lembrou também que naquelas vizinhanças os
moradores conseguiam ouvir os gritos dos torturados nas celas de interrogatório
da “Casa da Vovó”, outro apelido irônico, maldoso, para o mais brutal centro de
torturas montado no Brasil durante a Ditadura Militar.
O prédio do DOI-CODI foi tombado e deverá virar um
centro de memória. No edifício da frente funciona o 36º Distrito Policial.
Foi na entrada desse conjunto, em uma área usada para estacionamento, que nos
concentramos para fazer o encerramento da Caminhada pela Vida.
Politi, diretor do Núcleo de Memória, emocionou a
todos lembrando sua experiência de sobrevivente (clique AQUI para acompanhar afala de Politi). Ativo militante contra a ditadura, aos 21 anos foi sequestrado
e levado para os porões do DOI-CODI, onde foi submetido ao tratamento selvagem
que era padrão na época.
“Quando a gente descia do carro já era recebido a
porrada com pedaços de pau”, contou ele. A ditadura escondia seus crimes: “Quando
minha mãe e meu pai vinham aqui me procurar, diziam para eles que aqui não
havia nenhum preso, não havia ninguém”.
E assim torturavam, humilhavam, matavam.
Já na
época, porém, o movimento popular se levantou contra todas essas indignidades,
contra esses crimes contra a humanidade.
Concentração em frente ao complexo de prédios onde funcionou o DOI-CODI - foto Laura Lucena |
E, agora, a gente busca relembrar a luta dos que
enfrentaram esses regime de terror. A CORRIDA POR MANOEL, como bem diz a
coordenadora do Memorial da Resistência, Kátia Neves, “é uma forma original de resistência
política contra o esquecimento e, portanto, pela preservação da memória".
Continue com a
gente. Amanhã teremos a primeira corrida, o primeiro grande mergulho na
história de Manoel Fiel Filho. Concentração às 6h45 e largada às 7h na rua
Oscar Freire, em frente à estação Sumaré do metrô.
Venha comigo!
Para que não se
esqueça, para que nunca mais aconteça!
Vamo que vamo!
CORRIDA POR MANOEL - Dia 1
3,58 km feitos em pouco mais de 45min
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