Notícia publicada em uma coluna, no alto da primeira página
da “Folha de S. Paulo” de 20 de janeiro
de 1976, uma terça-feira, informa: “II Exército tem novo comandante”.
O texto começa assim: “O Palácio do Planalto anunciou ontem,
em Brasília, que o general Dilermando Gomes Monteiro é o novo comandante do II
Exército (com sede em São Paulo). O atual comandante, general Ednardo D`Avila
Melo, foi nomeado para a chefia do Departamento de Ensino e Pesquisa do
Exército”.
Não há na chamada de capa menção à morte de Manoel Fiel
Filho, ocorrida três dias antes nas dependências do DOI-Codi do II Exército.
O
caso também não é citado em nenhum dos quatro textos que, na página três do
primeiro caderno, complementam a cobertura do caso.
“Dilermando assumirá esta semana”, diz o título do texto
principal. A seguir, as notícias relacionadas: “No QG, nenhum comentário”, “Brasília chama o governador”, “Surpresa na
Arena e MDB” e “Novo comandante é velho amigo de Geisel”.
Nenhum dos textos especula sobre causas da mudança. No alto
da mesma página, em uma coluna, separado do restante das notícias por um fio –como
a dizer que uma coisa nada tem a ver com a outra--, está publicado texto em que
o jornal reproduz comunicado dos militares.
“Morte no DOI: II Exército emite nota” é o título da notícia
em três parágrafos. O primeiro deles apresenta a nota oficial, que começa
assim: “O comando do II Exército lamenta informar que foi encontrado morto, às
13 horas do dia 17 do corrente, sábado, em um dos xadrezes do DOI/CODI/II Exército,
o sr. Manoel Fiel Filho”.
Logo abaixo, notícia com título sem verbo, sem ação: “Comentário
de Prudente de Morais”. O jornalista, presidente da Associação Brasileira de
Imprensa, lembra a recente morte de Vladimir Herzog –ocorrida em outubro de
1975—e pede “apuração rigorosa das causas e pormenores dos fatos”.
Em São Paulo, a notícia cai como uma bomba sobre os
movimentos populares e, especialmente sobre o movimento sindical. A rádio-peão
já funcionava. Alguns sabiam da morte: José Francisco Campos e Miguel Huertas,
representando o sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, foram até a casa da
família de Manoel levar a solidariedade da categoria.
Era preciso mais. Depois da publicação da nota do II
Exército, a diretoria do sindicato se reúne e decide não ficar calada. Resolve
interpelar o general Ernesto Geisel, que ocupava na época a Presidência da
República.
Apesar da censura e do controle que havia sobre o mundo sindica
e sobre a sociedade, o sindicato manda a Geisel o seguinte telegrama, com cópia
para os ministros do Trabalho, da Justiça e do Exército:
“Sindicato Trabalhadores Metalúrgicos
SPaulo tomando conhecimento através imprensa nota oficial Comando II Exército
informando morte operário Manoel Fiel Filho vg seu associado desde 1956vg
matricula 50.355 vg ocorrida último dia 17 corrente mês dependências xadrezes
destacamento de operações de informações daquela unidade militar repetindo
assim lamentável episódio registrado mês de outubro de 1975 morte jornalista Wladimir (sic) Herzog vg devido respeito
pede vânia comparecer presença Vossência
a fim manifestar veemente protesto pelo ocorrido vg impondo-se enérgica e
imediatas providência sentido apuração dos fatos e punição rigorosa seus
responsáveis vg bem como impedir presos políticos continuem ser submetidos
constrangimento e violência vg a fim de
prevenir novas ocorrências da mesma gravidade pt Circunstâncias desconhecidas
causa morte ocorrida cárceres Polícia Militar provoca insegurança et intranquilidade ppt Se motivada
morte violência pretesto ...defesa Segurança Nacional vg merece repudio povo
brasileiro pt Garantias constitucionais e respeito direitos humanos não
constitue previlégio mas representa conquista civilização pt Trabalhadores
metalúrgicos cientes providências já determinadas pelo Ilustre Presidente vg no
sentido investigações para esclarecimento ocorrido vg sejam seus resultados
trazidos conhecimento público.”
O documento é
assinado pelo então presidente do sindicato, Joaquim dos Santos Andrade, que hoje é nome de uma rua íngreme colada à
antiga sede da entidade, na rua do Carmo, no centrão de São Paulo.
“O Joaquinzão enfrentou muitas vezes o regime militar,
um exemplo disso foi esse telegrama que ele mandou na época, questionando,
pedindo investigação sobre a morte do Manoel Fiel Filho”, diz Miguel Torres,
presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo.
Caminhada com dirigentes e ativistas do Sindicato dos Metalúrgicos na região central de São paulo - Fotos Paulo Segura/Divulgação |
Miguel comandou hoje uma caminha dos metalúrgicos em homenagem a Manoel,
na 11ª etapa da CORRIDA POR MANOEL. Mais de duas dezenas de dirigentes e
militantes do sindicato participaram dessa jornada, que foi da sede atual da
entidade até a antiga sede, na rua do Carmo, onde Manoel militou e que hoje
abriga o Sindicato Nacional dos Aposentados.
Alguns sindicalistas da velha guarda ainda lembram da presença de Manoel
Fiel Filho nos encontros da categoria. Campos, de 71 anos, na época era o
responsável por abonar as novas filiações ao sindicato. Foi quem assinou a
carteirinha de do operário assassinado em 1976 no DOI-Codi de São Paulo.
“O Fiel Filho tinha uma pastinha preta, vinha nas assembleias. Era do
PCB, segundo dizem”, comenta o sindicalista.
“As assembleias tinham umas cadeiras estreitas, eram mais ou menos umas
300 pessoas. Eu lembro dele, de chapéu. Eu lembro de algumas pessoas que se
tornavam quase personagens. Pessoas que iam sempre na assembleia. Ele ficava junto com o
Pernambuco, um cidadão chamado Teófanes Roberto, está com noventa e poucos
anos, foi meu assessor.”
Concentração em frente ao Palácio do Trabalhador, na rua Galvão Bueno, Liberdade |
Relembrar o passado não significa ficar com reminiscências saudosistas.
Ao longo dos cerca de dois quilômetros de nossa caminhada de hoje, Miguel
Torres destacou a importância de resgatar a memória das lutas sindicais e das
figuras dos combatentes pelos trabalhadores. O que não é exatamente a coisa
mais fácil do mundo neste momento.
“O nosso sindicato, acho que o movimento sindical como um todo, ele não
preserva muito a memória. Isso é um grande problema que nós temos aqui. Criamos
um departamento de memória sindical que o Campos [José Francisco Campos] está
tocando. Mas ainda é pouca coisa. Temos participado do Centro de Memória
Sindical, também com uma atuação muito forte, está recuperando, mas o dirigente
sindical, as entidades sindicais, têm um problema, ela quer contar a história a
partir do dirigente que está na direção. Você não consegue mostrar a história
como deve ser. Isso é uma batalha”, diz Torres.
Apesar dos percalços, é preciso ter a
história como ferramenta de luta e
conscientização, aponta o dirigente dos metalúrgicos:
“As novas gerações que estão entrando do mercado de trabalho hoje não têm
a noção para que serve o sindicato. Qual a importância do movimento sindical na
época, na vida do trabalhador, principalmente brasileiro. Não sabe que as
conquistas que têm hoje, os
benefícios foram conquistas de alguém que participou da luta sindical. Não
existe nada que não tenha sido fruto de reivindicação dos trabalhadores.
Nenhuma lei no Brasil, ou no mundo, não passou primeiro por uma construção, por
uma reivindicação, protesto, por uma mobilização. No movimento sindical é a
mesma coisa. O jovem não tem
noção disso. Não sabe porque tem o 13º, férias, 1/3 de férias, 40% do FGTS
[Fundo de Garantia por Tempo de Serviço], não sabe porque a jornada de trabalho é 44 e não 48 [horas].
Essa ideia de a gente puxar e resgatar, até para mostrar que todo mundo tem que
participar para melhorar. Hoje o
trabalhador que vai numa empresa já encontra cesta básica, convênio médico, a maioria tem transporte. Mas
aquilo foi fruto de mobilização no sindicato. Não veio de graça. Se fosse pelo
patronato isso não existia. A ideia de resgatar a memória é para mostrar a
necessidade de continuar essa luta, para avançar nos direitos, melhorar a vida
do trabalhador.”
Isso é feito na luta no dia a dia e também em cerimônias e homenagens: o
sindicato celebra, por exemplo, o Dia do Delegado Sindical Metalúrgico a 17 de
janeiro, data do assassinato de Manoel Fiel Filho.
“Essa é uma categoria guerreira, que já passou por inúmeras dificuldades
e situações de grandes desafios, venceu e se fortaleceu”, lembra o presidente
Miguel Torres.
É uma categoria que lembra e celebra seus lutadores e também participa das
campanhas para que os crimes do passado não fiquem impunes.
O Sindicato dos Metalúrgicos esteve representado, por exemplo, na
Comissão Nacional da Verdade e ajudou a elaborar o capítulo sobre os movimentos
dos trabalhadores.
O texto denuncia: “A classe trabalhadora e o movimento sindical foram
alvos primordiais do golpe de Estado de 1964, das ações antecedentes dos
golpistas e da ditadura civil militar.”
Lembra que as organizações sofreram ataques desde as primeiras horas do
golpe militar, na madrugada de 1º de abril de 1964: “Intervenções em direções
sindicais, depredação de sedes de entidades, prisões, torturas, execuções foram
acontecimentos reiterados e sistemáticos”.
Somente entre março e abril de 1964, a ditadura nomeou 235 interventores
nos sindicatos, segundo afirma texto disponível no site do Sindicato dos
Metalúrgicos. “No total, o ano de 1964 somaria a intervenção do ministério do
trabalho em 409 sindicatos e 43 federações. Entre 1964 e 1970, o número de
sindicatos atingidos pela repressão chegou a 536, e a estimativa de dirigentes
cassados neste período é de dez mil. Na base do Sindicato dos Metalúrgicos de
São Paulo, por exemplo, foi estimado em 1.800 o número de delegados denunciados
pelos interventores após o golpe.”
É bem verdade que a entidade já estava com a casca grossa, acostumada a
enfrentar o poderio do estado e dos patrões desde o seu nascimento em 27 de
dezembro de 1932.
“Os primeiros meses de vida do Sindicato foram bastante duros. Os
empregadores continuavam a demitir líderes trabalhistas e os metalúrgicos não
se arriscavam a filiar-se a entidade, temendo represálias políticas e policiais”,
diz texto sobre a história do sindicato publicado no site.
E prossegue: “Com o pequeno número de filiados, a entidade enfrentava
enormes dificuldades financeiras que comprometiam sua própria sobrevivência.
“Os diretores e sócios eram obrigados a tirar dinheiro do próprio bolso para
pagar as pequenas despesas do sindicato,” recorda Armando Suffredini, um dos
fundadores e ex-presidente da entidade. “Os que acreditavam na nossa entidade
iam trabalhar à noite na sede, depois de batalhar o dia inteiro dentro das
fábricas.””.
No período da ditadura militar, porém, a perseguição redundava em
prisões, tortura e morte de sindicalistas. O livro em que o repórter Carlos
Alberto Luppi relata o caso Manoel Fiel Filho traz uma lista de mais de 20
trabalhadores, muitos deles metalúrgicos, assassinados por agentes do regime
militar.
A morte de Manoel foi um marco, um ponto de ruptura. No governo, o
general responsável pelo DOI-Codi é substituído; no movimento sindical, as
lideranças parecem decidir que não dá mais para suportar o torniquete imposto à sociedade.
Metalúrgicos caminham por Manoel; o presidente Miguel Torres está ao meu lado, mais ou menso no meio do grupo; |
“Foi o grande alicerce para a retomada”, me disse Miguel Torres durante
nossa caminhada de hoje. Lembrou as greves de 1978 e 1979, e a decisiva
participação dos trabalhadores nas lutas democráticas ao longo da década de
1980, culminando na campanha pelas eleições diretas.
“O sindicato sempre teve essa atuação em defesa da cidadania”, resume ele
quando encerramos nossa jornada, na rua do Carmo, palco de históricas reuniões
do movimento sindical brasileiro.
CORRIDA POR MANOEL – 11º dia
PERCURSO entre a sede atual e a antiga sede do Sindicato dos Metalúrgicos
de São Paulo e Mogi, 1,9 km percorrido em 25min
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 108,92 km
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