Esta
CORRIDA POR MANOEL que venho fazendo é uma homenagem a todos os manoeis, joãos,
marias e amelias que não se calaram frente a ditadura militar e dedicaram suas
vidas ao combate pela liberdade, pela democracia, pela justiça, por um mundo
melhor para seus filhos, netos, para todos.
É
também uma celebração à imprensa combativa. Manoel foi sequestrado pela polícia
política da ditadura sob nebulosas acusações de distribuir o “Voz Operária”,
jornal clandestino do Partido Comunista Brasileiro.
A
brutalidade insana da ditadura se abateu sobre muitos que trabalharam nesse
jornal e em outras publicações de partidos e grupos que, desde a
clandestinidade, buscavam levar esperança para a população brasileira. A
perseguição aos boletins e panfletos, documentos, livros e jornais mostra que
os opressores sabem quão forte é o poder da palavra.
Sempre
que podiam, caíam sedentos sobre as gráficas clandestinas de onde saía a voz da
resistência. Num desses episódios, invadiram a casa onde, em São Paulo, eram
produzidos jornais e material de apoio aos militantes que organizavam a
guerrilha do Araguaia.
Vídeo de entrevista de Cesar Teles, durante homenagem realizada na Câmara Municipal - foto Reprodução/Anibal Castro de Souza |
Cesar Teles e sua mulher, Amélia, dirigentes do Partido
Comunista do Brasil, foram presos naquele dia 28 de dezembro de 1972. Os filhos
pequenos do casal, Janaína e Edson, também foram levados.
Em
depoimento à revista “Leituras da História”, citado pelo Jornal “Brasil de
Fato”, Amelinha lembra o dia da prisão.
“Eram
18h, na Rua Loefgreen, Vila Clementino, quando nós paramos o carro. O Danieli
[NR.: Carlos Nicolau Danieli, dirigente do
PCdoB],
já havia descido alguns minutos antes para encontrar um companheiro e nós fomos
cercados por quatro carros, que pararam na nossa frente – eu não sei como eles
apareceram ali – [...] era aquele momento em que tudo estava escurecendo. Eles
cercaram os lados, desceram com metralhadoras na mão: ‘terrorista, terrorista,
terrorista!’, gritaram.”
De
fato, o trabalho de Cesar Teles devia aterrorizar o regime ditatorial. “Nós publicávamos mil e quinhentos jornais todo o mês,
para mandar para toda a comunidade. Com mimeógrafo a óleo ou a álcool. Mandava
para o exterior – Suécia, Inglaterra, França, Itália, e outros países da
Europa. E nós ouvíamos a rádio, a de Moscou, a de Pequim, nós éramos
rádio-escuta também”, lembra Amelinha.
Cesar
se foi no final do ano passado. Morreu aos 71 anos.
“César
dedicou sua vida a tentar a ajudar os mais pobres. Torcedor do Atlético-MG,
gostava de bater bola. Foi sindicalista ferroviário. Era exímio dançarino de
salão. Lutou contra a ditadura. Adorava orquídeas. Foi o responsável pela
logística da Guerrilha do Araguaia. Cantava óperas. Penou cinco anos na prisão,
participou das campanhas da Anistia e das Diretas Já. Cobrou o paradeiro dos
desaparecidos políticos, exigiu castigo legal aos violadores dos direitos
humanos” –esse é um brevíssimo resumo de uma vida de combates, escrito pelo
repórter Mario Magalhães, autor de “Marighella”.
No
último dia 26 de fevereiro, familiares, amigos e
companheiros de luta de Cesar Teles realizaram uma homenagem ao ex-líder
sindical. Foi no auditório da Câmara Municipal de São Paulo.
Antes de subir
para acompanhar a cerimônia, fiz por Cesar uma breve etapa da CORRIDA POR
MANOEL, “abraçando” a Câmara com minhas passadas.
Lá
em cima, no oitavo andar, a casa estava cheia, repleta de gente e de emoções.
Muitos “cabeça branca”, antigos companheiros de César, mas também muita gente
jovem e um exército de feministas –entre tantas lutas a que se dedicou, uma
delas foi pela emancipação da mulher.
Amelinha
falou, Janaína falou, houve vários depoimentos e celebrações.
E
Cesar também falou. Foi trazido ao auditório por meio de um vídeo, uma
entrevista que dera à filha anos antes, parte de um trabalho acadêmico de
Janaína, que é historiadora.
Os
minutos voaram enquanto ele contava histórias de sua luta, de como montou, com
Amelinha e os filhos, a casa onde instalou a gráfica que tanto infernizou a
ditadura militar.
A
impressora ficava em um dos quartos. Cobertores eram presos à porta e às
janelas para abafar o som. O rádio tocava em alto volume, e a máquina cuspia
panfletos, jornais, propaganda. Quando não estava operando, ficava desmontada,
dentro de um armário, e a casa ficava aberta para os vizinhos.
A
vida da família Teles, aliás, era aberta aos vizinhos, era uma casa como
qualquer outra da comunidade. Cesar, que dirigia um táxi para garantir a
sobrevivência financeira, não poucas vezes usava o carro para levar um vizinho
a um hospital ou fazer outra gentileza.
“Por nossa ação, a casa não cairia”, afirmou
ele no vídeo, certo da rede de proteção que tinha montado na comunidade.
De
fato, a família acabou presa em outras circunstâncias, quando Cesar foi levar
um dirigente do PCdoB a um encontro.
Janaína e Edson com os pais, Amelinha e Cesar Teles - foto Reprodução |
Para
piorar as coisas, a prisão encontrou um Cesar debilitado. A exposição constante
aos gases da impressão –tintas e outros líquidos tóxicos—havia debilitado sua
saúde; passara sete meses internado para tratamento de tuberculose e outras
complicações. O que não diminuiu a violência dos torturadores.
Amelinha
também sofreu barbaridades, como ela relata em depoimento realizado em 2004: “O coronel Carlos Alberto
Brilhante Ustra foi
o primeiro a me dar um tapa na cara, me jogou no chão com aquele tapa. Me
torturou pessoalmente. Foi ele quem mandou invadir a minha casa, buscar todo
mundo que estava lá, meus filhos e minha irmã. Durante cerca de dez dias,
minhas crianças me viram sendo torturada na cadeira de dragão, me viram cheia
de hematomas, com o rosto desfigurado, dentro da cela. Nessa semana em que meus
filhos estavam por ali, eles falavam que os dois estavam sendo torturados.
'Nessas alturas, sua Janaína já está dentro de um caixãozinho'. Disseram também
que eu ia ser morta. Isso foi o tempo todo. O tempo todo, o terror. Ali era um
inferno".
Por
maior que fosse o sofrimento, quem sobreviveu tratou de se recuperar, enrijecer
o espírito e continuar lutando. Na cadeia, Cesar Teles e outros companheiros
presos conseguiram iludir a vigilância da ditadura e contrabandearam para fora
um documento em que não só denunciavam ao mundo o tratamento a que eram
submetidos como também apontavam 233 responsáveis diretos pela tortura.
A
carta, que ficou conhecida como “Bagulhão”, está publicada integralmente em um
livro organizado pela Comissão da Verdade de São Paulo e disponível para todos
na internet (clique AQUI para acessar o texto).
Diz
o livro: “O documento original, um calhamaço com as assinaturas dos 35 presos, saiu
sigilosamente do presídio e chegou ao destinatário
em segurança. A operação incluiu a montagem de um compartimento no interior de uma
singela garrafa térmica, na qual as 28 folhas tamanho ofício foram alojadas”.
A
carta ganhou o mundo. A reação da repressão foi imediata, como conta o livro
“Bagulhão”:
“Passaram
a intimidar familiares e amigos dos presos políticos, com cartas de ameaças de
morte, via correio, assinadas com pincel atômico, em letras pretas, com a sigla
A.A.B. que significava Associação Anticomunista Brasileira. Em 1978, o jornal
da imprensa alternativa `Em Tempo foi o primeiro e único a publicar na íntegra
a lista dos 233 torturadores. Esse jornal publicou ainda mais duas listas de
agentes públicos acusados de tortura, feitas por presos políticos de outros
estados. A edição do Em Tempo tinha uma tiragem de vinte mil exemplares que se
esgotou tão logo o jornal foi para as bancas, o que fez com que batesse recorde
de vendas. O jornal sofreu, em represália, na mesma semana que divulgou os
nomes dos torturadores, dois atentados. Um na sucursal de Curitiba (PR)`, que
teve sua sede invadida e pichada de spray: “233”. O outro atentado ocorreu em
Belo Horizonte, quando colocaram ácido nas máquinas de escrever. Esses fatos
chegaram a ser publicados pelo próprio jornal Em Tempo. Depois disso, o jornal
não teve mais como existir, foi fechado. “
Depois
do final da ditadura, Cesar e seus familiares continuaram sua militância e
trataram também de lutar para expor a parte mais sangrenta e desumana do
período da ditadura militar.
Em
2006, a família entrou na Justiça contra o coronel Carlos Alberto Brilhante
Ustra, acusado de sequestro e tortura. Era uma ação civil que pedia a
declaração de ocorrência de danos morais e à integridade física.
Em
reportagem publicada na época na “Folha de S. Paulo”, Mário Magalhães registrou
as razões da família: “A história deve ser contada como aconteceu, para que não
se repita'', diz a professora Maria Amélia de Almeida Teles. O aposentado César
Teles responde à contestação do coronel Ustra sobre a demora para acionar a
Justiça: “Denunciamos o que houve assim que saímos do pau-de-arara'' -os autos
de um processo da década de 1970 confirmam. A historiadora Janaína Teles diz
que a opção pelo processo contra o comandante do DOI-Codi -e não o Exército e a
União- ocorreu porque “as pessoas que morreram na ditadura tinham nomes,
sentimentos e história''. “Os que mataram, também'', afirma.”
Pois
a Justiça reconheceu a razão da família. Ustra morreu no ano passado, aos 83
anos, tendo como resumo de sua biografia o carimbo oficial: foi um torturador.
Cesar,
ao contrário, foi uma luz.
Percurso:
“abraço caminhado” à Câmara Municipal de São Paulo, 2 km feitos em 24min39
Distância
acumulada: 110,92 km
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