Outro dia saiu notícia a respeito de um juiz que havia
emitido sentença em 28 segundos. Mais tarde, outro magistrado, analisando o
comportamento de sua excelência senhor Rapidinho, constatou, com base registros
eletrônicos, que, de fato, a sentença estava pronta antes mesmo do
julgamento...
Casos como esse, verificados em pleno século 21, com vigência
completa da democracia no Brasil, eram comuns durante a ditadura militar.
Julgamentos sumários, em que mal havia espaço para o
contraditório –ou simplesmente não havia chance de defesa--, eram a regra nas
auditorias militares, as casas da Justiça Militar.
Ainda que apresentadas como prédios impolutos, onde mandava
o direito, também foram palco de cenas de tortura.
O caso de Manoel Fiel Filho, assassinado sob tortura no dia
17 de janeiro de 1976 em uma cela do DOI-Codi de São Paulo, é exemplar.
Em uma das salas do prédio onde funcionava a Auditoria Militar
do Exercito, na avenida Brigadeiro Luiz Antonio –meu destino de hoje na CORRIDA
POR MANOEL--, Arylton da Cunha Henriques, juiz auditor em exercício, assinou
despacho em que dizia:
“Efetivamente, no caso sub examen, após atentar-se cuidadosamente para a prova pericial,testemunhal, exames etc., não se pode chegar a nenhuma outra conclusão, senão aquela do suicídio, na sua expressão mais simples.”
“Efetivamente, no caso sub examen, após atentar-se cuidadosamente para a prova pericial,testemunhal, exames etc., não se pode chegar a nenhuma outra conclusão, senão aquela do suicídio, na sua expressão mais simples.”
Assim considerando, assinou o termo determinando o
arquivamento do Inquérito Policial Militar sobre a morte de Manoel Fiel Filho. A
data é 3 de maio de 1976, três meses e 16 dias depois do assassinato do
operário.
Todo o processo andou em alta velocidade.
Foi instaurado em 19 de janeiro, dois dias depois do crime,
na mesma data em que era destituído o então comandante do II Exército, general
Ednardo D`Ávila.
Em 25 de fevereiro, o coronel Murillo Fernando Alexander,
encarregado do IPM, deu por encerrado suas atividades. Ao expor suas
conclusões, afirma:
“Em face do acima exposto e que dos autos consta, procedidas
que foram todas as diligências que se fizeram necessárias à completa elucidação
do presente, investigados todos os aspectos que pudessem contribuir para a
configuração de qualquer ilícito penal, a hipótese de suicídio de MANOEL FIEL
FILHO emerge das provas apuradas, não só testemunhais, mas, principalmente, das
periciais, conclui-se que o fátuo apurado não constitui crime capitulado no
Código Penal Militar ou no Código Penal Civil, nem transgressão disciplinar
prevista nos Regulamentos Militares.”
No dia seguinte, o novo comandante do II Exército, general
Dilermando Gomes Monteiro, chancela a solução dada ao caso pelo coronel
Alexander e determina que os autos do IPM sejam encaminhados à Auditoria
Militar.
O procurado militar Darcy Araújo foi o responsável por
analisar a documentação.
Disse, com erro de português ao separar sujeito do
verbo, que “as provas apuradas, [sic] são suficientes e robustas, [sic] para
nos convencer da hipótese do suicídio de MANOEL FIEL FILHO”.
Totalmente convencido, pediu em 28 de abril de 1976 o
arquivamento dos autos “pela inexistência de crime a punir”. Cinco dias depois,
o auditor substituto concordou e mandou engavetar o processo.
Ao contrário do que afirmou o coronel
Alexander, as provas periciais não deveriam levar á conclusão de suicídio. Foi
o que disse o próprio legista encarregado do caso, em entrevista publicada em
quatro de novembro de 1978 na “Folha de S. Paulo”.
Autor da necropsia, o professor de medicina legal José
Antonio de Mello, então catedrático da Faculdade de Direito de Guarulhos, disse
o seguinte:
“A morte do operário Manoel Fiel Filho ocorreu por
estrangulamento, e não por enforcamento. Lembro-me perfeitamente disso. Não
detectei se isso foi cometido por terceiros ou pelo próprio operário porque
isso não é da minha alçada, e sim das autoridades policiais. Devo, entretanto,
dizer, por dever profissional, que casos de estrangulamento são, em quase sua
totalidade, casos de homicídio, ou seja, alguém mata alguém. O
autoestrangulamento é coisa raríssima na medicina legal. Em 20 anos de profissão
e já tendo feito milhares de necropsias, o caso do operário Manoel Fiel Filho
seria o primeiro deles. Sem dúvida alguma, é um caso sui-generis na medicina.”
O depoimento do médico foi mais uma arma para desmascarar a
farsa. Quem tentou expor a ferida, representando a família do operário, foi o
advogado Belisário dos Santos Júnior.
Nascido em São Paulo em 1948, Belisário se formou em 1970,
no período mais violento da ditadura militar. Na faculdade, atuou no movimento
estudantil e chegou a ser presidente do diretório acadêmico XI de Agosto.
Quando começa sua carreira profissional, em pouco tempo
passa a ser um dos advogados que não aceitam intimidações do regime militar e
se dispõem a defender os presos políticos, mesmo nas piores condições para o
exercício do direito.
Foi o primeiro advogado a assumir o caso, atuando na área penal. Em conversa por telefone, me contou ter sido chamado por dom Paulo Evaristo
Arns, então arcebispo de São Paulo, que tinha montado a Comissão de Justiça e
Paz para defender os perseguidos pelo regime.
Depois, Belisário mandou para um breve depoimento por
escrito, em que fala um pouco de seu trabalho, do processo, de suas emoções na
época e das atividades dos advogados que defendiam presos políticos durante a
ditadura militar.
Reproduzo a seguir o texto de Belisário dos Santos Júnior, a quem agradeço pela contribuição.
"Meu escritório, à época, era na própria
Brigadeiro Luiz Antonio, algumas quadras abaixo da Auditoria Militar, para onde
sempre me desloquei caminhando.
"A decisão de arquivamento foi adotada
pelo Juiz Auditor Arylton da Cunha Henriques, juiz auditor substituto. À época,
havia juízes concursados e indicados pelo STM. Arylton era advogado
convocado para ser juiz auditor, sem qualquer concurso ou prova.
"O inquérito foi arquivado por decisão
monocrática (sem que passasse por um colegiado). O inquérito tinha poucas
páginas. Não houve qualquer apuração substancial.
"Assim, não houve sessões do Conselho ou
audiências para tanto. O juiz decidiu ali mesmo no prédio da auditoria, em seu
gabinete no térreo da casa na Brigadeiro Luiz Antonio.
"Arylton era homem de meia idade,
careca, afável com os advogados.
"Ele próprio, nos intervalos de suas
convocações, era advogado. Mas também era dado a declarações polêmicas, como se
pode ver na internet, a respeito de colher depoimento de testemunhas no caso
Rio Centro. “Não deixarei a Justiça Militar se transformar em um teatro...”
"Pedi a reabertura do inquérito,
alegando provas novas (CPP artigo 18, da época). Havia provas de que a morte
fora por tortura –juntei declarações dadas à imprensa por um perito forense
admitindo que as marcas não indicavam suicídio e declarações obtidas pela
Comissão Justiça e Paz.
"Diante do indeferimento, apresentei
diretamente um recurso ao STM, denominado correição parcial, manifestando em
nome da família indignação com a desconsideração do material probatório novo
apresentado.
"O objetivo era reabrir a investigação
do homicídio e apurar a responsabilidade do comandante da época.
"Durante a minha atuação como advogado,
fui preso três vezes e meu escritório sofreu uma invasão pela polícia política.
"Para aceitar o caso do Fiel Filho, fiz
reunião com minha sócia da época, Maria Regina Pasquale, e com minha mulher e
minhas filhas pequenas (então com nove e seis anos) explicando-lhes ser
imperativo que atuássemos. Ainda me emociono ao lembrar a cena.
"Fiz reuniões com a família Fiel,
mormente Da. Thereza, uma senhora de olhar profundamente triste, eternamente a
perguntar “Por quê?”"
CORRIDA POR MANOEL – 28ª etapa
Destino: Auditoria Militar, onde o advogado Belisário dos
Santos Júnior atuou contra a ditadura; percurso de 8,92 km, realizado em 1h54
Distância acumulada: 293,79 km
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