A
rua João Ramalho, no bairro das Perdizes, zona oeste de São Paulo, tem uma
lomba de respeito. Trata-se de uma subida curta, mas portentosa, especialmente
se o caminhante parte dos baixios da avenida Sumaré.
Em
apenas três quarteirões, a subida totaliza mais de 50 metros de altura.
A
gente enfrenta isso com o corpo inclinado, tentando diminuir a área de resistência,
procurando montar uma estrutura mais aerodinâmica para romper a barreira do
ambiente poluído que aqui em São Paulo alguns chamam de ar livre.
Fisioterapeutas
e especialistas em movimento provavelmente vão criticar essa postura. Para andar
para a frente e para o alto, ensinam alguns desses conhecedores, há que
empurrar o chão, colocar os pés sob o corpo e deixar o tronco levemente
inclinado, mas não dobrado...
Eu
tinha tudo isso na cabeça, mas já passava das seis da tarde, eu tinha feito uma
corrida de mais de dez quilômetros de manhã, no dia anterior havia rodado 18
quilômetros... Resfolegava, mas subia.
O
prêmio seria grande. Iria até o Tuca, o Teatro da Pontifícia Universidade
Católica, o teatro da Puc, ou só Tuca mesmo, palco de grande momentos da luta
democrática no período da ditadura militar e, hoje, ambiente de encontro de
homens e mulheres, partidos e movimentos sociais, ONGs e celebridades que se
dispõem a enfrentar o golpe contra a democracia em curso nos dias de hoje, a
tentativa de solapar as instituições e romper a ordem constitucional.
Desta
vez, portanto, a jornada da CORRIDA POR MANOEL não faz um mergulho no passado,
buscando recompor memórias de luta e de resistência democrática. É que a luta e
a resistência democrática estão à nossa porta, voltaram a dominar a ordem do
dia, são exigências do tempo presente.
Foto Jornalistas Livres |
Vai
daí que, na tarde de 16 de março de 2016, quase 52 anos depois do golpe militar
que colocou o Brasil na trilha do atraso, da barbárie e do terror, dos
assassinatos políticos e das covardes encenações de suicídio –como aconteceu
com Manoel Fiel Filho e Vladimir Herzog--, mulheres e homens de bem deste país
retornam às trincheiras em defesa da democracia reconquistada.
Minha
caminhada até o Tuca foi curta, pouco mais de três quilômetros. Ganhei muito,
porém, ouvindo a sabedoria de gente como o jurista Pedro Serrano e a professora
Marilena Chauí.
Serrano,
do alto de seu saber acadêmico, deu uma verdadeira aula sobre as origens
psicossociais da turba que vocifera nas ruas seus gritos de ódio, açulada por
figuras autoproclamadas impolutas e defensoras da ordem.
Quando
ele começou a falar, quase que me desliguei para não prestar atenção, pois o
início mais parecia outra daquelas perorações de gente vive nos ambientes
professorais de ar refrigerado. Depois, porém, ele mostrou a que veio.
Iniciou, de fato, com fala erudita, citando a filósofa Hannah Arendt, para
trabalhar o conceito de ralé. Explicou que, ao contrário do povo, que defende a
democracia, a ralé busca a ordem: “Ela quer a ordem e expressa essa ordem não
pelo sentimento da razão, mas pelo sentimento do ódio”.
Por
isso mesmo, falou, esse grupo busca idolatrar figuras como o juiz, o promotor,
o delegado, símbolos de autoridade e segurança.
Para a ralé, a democracia é muito complicada. O jogo democrático é inseguro, instável,
exige capacidade para enfrentar o movimento dos contrários, exige espaço para o
contraditório.
Serrano
foi um dos tantos que ganharam aplausos quentes e carinhosos da multidão.
Éramos muitos na noite calorosa: o auditório de 700 lugares estava lotadaço; na
ruas, assistindo a tudo por um telão, estávamos em outras tantas centenas.
“Não
vai ter golpe” era o grito que cantávamos, assim como a palavra de ordem que
vem da história das lutas pela democracia no planeta Terra: “Não passarão”.
A
atmosfera de camaradagem só foi quebrada algumas vezes por algumas pessoas que,
escondidas por cortinas e venezianas, batia panelas em andares altos de um
prédio de apartamentos em frente ao Tuca. Alguém mais raivoso chegou a jogar
ovos na massa de democratas, mas a provocação não prosperou.
Enquanto
isso, as lideranças democráticas presentes ao ato convocados pelos estudantes
do Centro Acadêmico 22 de Agosto (Direito-PUC) e pelo coletivo Fórum 21 se
sucediam no palco.
Professores
e acadêmicos falaram ao lado de dirigentes sindicais e de movimentos populares:
lá estavam a CUT e a UNE, o líder dos sem teto de São Paulo e comandantes de organizações
de ex-presos políticos, além de agremiações de mulheres e jornalistas pela
democracia --aliás, muito boa a fala da representante dos jornalistas.
Cantando seu protesto e anunciando sua participação nas trincheiras
legalistas, a galera do funk também disse presente.
Depois
da festa funkeira, foi a vez de a professora Marilena Chauí dar seu recado.
Eu
nunca a tinha visto desse jeito. Já acompanhara algumas de suas participações
em debates acadêmicos, já a vira na televisão, já lera muitos de seus escritos,
acompanhara várias de suas entrevistas.
Mas
nunca a tinha visto assim, na luta, na mobilização. Tinha fogo nas palavras,
juntava o saber acadêmico com uma para mim inesperada capacidade de agitação.
Foi
clara e sintética –apesar de falar por 13 minutos, e não breves instantes, como
prometera no início, sendo saudada por risadas incrédulas da plateia.
Ela
advertiu: "Existe hoje um perigoso caldo de cultura nas ruas, onde se
forjam ditaduras e tiranias".
Também
afirmou: "É um cenário complicado, complexo, no qual nós temos que ter nós
também varias frentes de luta, não vai bastar que a gente vá à rua dizer não
vai ter golpe, nós temos que ter formas de luta, intervir no legislativo,
intervir no judiciário, trabalhar todo o campo da opinião pública que não foi
ainda tomado por essa avalanche da extrema direita."
O
ato terminou com o ator Sérgio Mamberti cantando a capella o Hino da
Legalidade, de autoria de Lara lemos e do ato Paulo Cesar Pereio.
Em
1961, “esse hino abria as transmissões da Cadeia da Legalidade, formada a
partir de uma emissora que funcionava no próprio Palácio Piratini, que
convocava o povo a resistir ao golpe militar contra a posse de Goulart”, ensina
o site Conexões Política, de Franklin Martins.
O
hino diz: “Avante brasileiros de pé, unidos pela liberdade, marchemos todos
juntos com a bandeira que prega a igualdade. Protesta contra o tirano, recusa a
traição, que um povo só é bem grande se for livre sua Nação”.
CORRIDA
POR MANOEL – 27ª etapa
Destino
– Teatro Tuca, Ato Pela Legalidade
Democrática,
percurso de 3,58 km, realizado em 44min38
Distância total já percorrida: 284,87 km
PS.:
Incluo a seguir o manifesto divulgado pelos organizadores do ato
Manifesto
pela legalidade democrática
CA
DIREITO PUC-SP·QUARTA, 16 DE MARÇO DE 2016
O
Brasil ainda é uma jovem democracia. O período democrático inaugurado pela
Constituição Federal de 1988 não cumpriu nem 30 anos e já passa por um perigoso
período de crise que coloca em risco os direitos conquistados e efetivados nas
últimas décadas em nosso país. Esta casa, e principalmente as professoras,
professores, alunas e alunos que por aqui passaram, foi essencial no debate
deste novo marco constitucional, dos princípios e garantias basilares da nossa
Constituição Cidadã.
Hoje,
o Centro Acadêmico 22 de Agosto, respaldado pelo seu histórico de luta e defesa
da democracia, centro de referência e resistência durante a ditadura militar de
1964, se coloca na linha de defesa da legalidade democrática e denuncia as
tentativas de golpe que sofre a democracia brasileira. São nos momentos de
crise que a Constituição deve ser fortemente defendida e aplicada, correndo-se
o risco de graves rupturas democráticas caso isso não aconteça.
É
preocupante o momento de crise política e econômica atual, agravadas por
decisões inaceitáveis do STF, como a que ao tentar agradar a opinião pública,
limitou o princípio da presunção de inocência dobrando-se ao punitivismo penal.
A espetacularização da justiça, com a fama inflada pela mídia de juízes e
promotores estrelas, vazamento seletivo de delações premiadas e informações
sigilosas de processos, é uma afronta ao devido processo legal e ao Estado de
Direito.
No
vale-tudo processual as conduções coercitivas são utilizadas sem respaldo legal
e a relativização de princípios constitucionais é autorizada pelo desejo
sedento de combate à corrupção aliado ao alto índice de falta de confiança nas
instituições políticas nacionais. Se há a quebra de um direito fundamental para
um ex-presidente da República, o que falar dos milhares de presos em prisões
provisórias ilegais, dos flagrantes forjados e dos ataques aos direitos da
população pobre e periférica? Neste sentido, a Lei Antiterrorismo é um grande
retrocesso, mas um claro sintoma do recrudescimento dos aparatos repressivos do
Estado.
De
fato, a corrupção é um problema estrutural nas instituições políticas nacionais
atingindo tanto a esfera pública como a esfera privada, mas a seletividade nas
acusações e processos penais não resolverá este problema. Apenas uma discussão
sincera sobre a Reforma Política, aliada a uma ação sem seletividade da Policia
Federal, do Ministério Público Federal e da Justiça Federal, indicará caminhos
novos para a consolidação da democracia brasileira e resolverá a crise de
representatividade que atinge o país.
A
mesma mídia que apoiou o Golpe de 1964 hoje se articula como justiceira por
impeachments sem base real em crime de responsabilidade, na perseguição de
figuras públicas e criação de heróis nacionais, e na desinformação da
população, gerando ainda mais crise e uma perigosa polarização de opiniões.
O
momento atual é histórico e decisivo, cobrando de cada cidadã e cidadão,
estudantes e profissionais do direito, um compromisso pela legalidade e pela
democracia. Só assim conteremos a ameaça de retrocessos históricos e os perigos,
que todos conhecemos, de uma ruptura democrática.
Assina: Centro
Acadêmico 22 de Agosto – Direito PUC
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