18.3.16

Breve caminhada até o tempo presente, nas trincheiras da luta democrática dos dias de hoje

A rua João Ramalho, no bairro das Perdizes, zona oeste de São Paulo, tem uma lomba de respeito. Trata-se de uma subida curta, mas portentosa, especialmente se o caminhante parte dos baixios da avenida Sumaré.

Em apenas três quarteirões, a subida totaliza mais de 50 metros de altura.

A gente enfrenta isso com o corpo inclinado, tentando diminuir a área de resistência, procurando montar uma estrutura mais aerodinâmica para romper a barreira do ambiente poluído que aqui em São Paulo alguns chamam de ar livre.

Fisioterapeutas e especialistas em movimento provavelmente vão criticar essa postura. Para andar para a frente e para o alto, ensinam alguns desses conhecedores, há que empurrar o chão, colocar os pés sob o corpo e deixar o tronco levemente inclinado, mas não dobrado...

Eu tinha tudo isso na cabeça, mas já passava das seis da tarde, eu tinha feito uma corrida de mais de dez quilômetros de manhã, no dia anterior havia rodado 18 quilômetros... Resfolegava, mas subia.

O prêmio seria grande. Iria até o Tuca, o Teatro da Pontifícia Universidade Católica, o teatro da Puc, ou só Tuca mesmo, palco de grande momentos da luta democrática no período da ditadura militar e, hoje, ambiente de encontro de homens e mulheres, partidos e movimentos sociais, ONGs e celebridades que se dispõem a enfrentar o golpe contra a democracia em curso nos dias de hoje, a tentativa de solapar as instituições e romper a ordem constitucional.

Desta vez, portanto, a jornada da CORRIDA POR MANOEL não faz um mergulho no passado, buscando recompor memórias de luta e de resistência democrática. É que a luta e a resistência democrática estão à nossa porta, voltaram a dominar a ordem do dia, são exigências do tempo presente.

Foto Jornalistas Livres


Vai daí que, na tarde de 16 de março de 2016, quase 52 anos depois do golpe militar que colocou o Brasil na trilha do atraso, da barbárie e do terror, dos assassinatos políticos e das covardes encenações de suicídio –como aconteceu com Manoel Fiel Filho e Vladimir Herzog--, mulheres e homens de bem deste país retornam às trincheiras em defesa da democracia reconquistada.

Minha caminhada até o Tuca foi curta, pouco mais de três quilômetros. Ganhei muito, porém, ouvindo a sabedoria de gente como o jurista Pedro Serrano e a professora Marilena Chauí.

Serrano, do alto de seu saber acadêmico, deu uma verdadeira aula sobre as origens psicossociais da turba que vocifera nas ruas seus gritos de ódio, açulada por figuras autoproclamadas impolutas e defensoras da ordem.

Quando ele começou a falar, quase que me desliguei para não prestar atenção, pois o início mais parecia outra daquelas perorações de gente vive nos ambientes professorais de ar refrigerado. Depois, porém, ele mostrou a que veio.

Iniciou, de fato, com fala erudita, citando a filósofa Hannah Arendt, para trabalhar o conceito de ralé. Explicou que, ao contrário do povo, que defende a democracia, a ralé busca a ordem: “Ela quer a ordem e expressa essa ordem não pelo sentimento da razão, mas pelo sentimento do ódio”.

Por isso mesmo, falou, esse grupo busca idolatrar figuras como o juiz, o promotor, o delegado, símbolos de autoridade e segurança.

Para a ralé, a democracia é muito complicada. O jogo democrático é inseguro, instável, exige capacidade para enfrentar o movimento dos contrários, exige espaço para o contraditório.

Serrano foi um dos tantos que ganharam aplausos quentes e carinhosos da multidão. Éramos muitos na noite calorosa: o auditório de 700 lugares estava lotadaço; na ruas, assistindo a tudo por um telão, estávamos em outras tantas centenas.



“Não vai ter golpe” era o grito que cantávamos, assim como a palavra de ordem que vem da história das lutas pela democracia no planeta Terra: “Não passarão”.

A atmosfera de camaradagem só foi quebrada algumas vezes por algumas pessoas que, escondidas por cortinas e venezianas, batia panelas em andares altos de um prédio de apartamentos em frente ao Tuca. Alguém mais raivoso chegou a jogar ovos na massa de democratas, mas a provocação não prosperou.

Enquanto isso, as lideranças democráticas presentes ao ato convocados pelos estudantes do Centro Acadêmico 22 de Agosto (Direito-PUC) e pelo coletivo Fórum 21 se sucediam no palco.

Professores e acadêmicos falaram ao lado de dirigentes sindicais e de movimentos populares: lá estavam a CUT e a UNE, o líder dos sem teto de São Paulo e comandantes de organizações de ex-presos políticos, além de agremiações de mulheres e jornalistas pela democracia --aliás, muito boa a fala da representante dos jornalistas.

Cantando seu protesto e anunciando sua participação nas trincheiras legalistas, a galera do funk também disse presente.

Depois da festa funkeira, foi a vez de a professora Marilena Chauí dar seu recado.

Eu nunca a tinha visto desse jeito. Já acompanhara algumas de suas participações em debates acadêmicos, já a vira na televisão, já lera muitos de seus escritos, acompanhara várias de suas entrevistas.

Mas nunca a tinha visto assim, na luta, na mobilização. Tinha fogo nas palavras, juntava o saber acadêmico com uma para mim inesperada capacidade de agitação.

Foi clara e sintética –apesar de falar por 13 minutos, e não breves instantes, como prometera no início, sendo saudada por risadas incrédulas da plateia.

Ela advertiu: "Existe hoje um perigoso caldo de cultura nas ruas, onde se forjam ditaduras e tiranias".

Também afirmou: "É um cenário complicado, complexo, no qual nós temos que ter nós também varias frentes de luta, não vai bastar que a gente vá à rua dizer não vai ter golpe, nós temos que ter formas de luta, intervir no legislativo, intervir no judiciário, trabalhar todo o campo da opinião pública que não foi ainda tomado por essa avalanche da extrema direita."

O ato terminou com o ator Sérgio Mamberti cantando a capella o Hino da Legalidade, de autoria de Lara lemos e do ato Paulo Cesar Pereio.

Em 1961, “esse hino abria as transmissões da Cadeia da Legalidade, formada a partir de uma emissora que funcionava no próprio Palácio Piratini, que convocava o povo a resistir ao golpe militar contra a posse de Goulart”, ensina o site Conexões Política, de Franklin Martins.

O hino diz: “Avante brasileiros de pé, unidos pela liberdade, marchemos todos juntos com a bandeira que prega a igualdade. Protesta contra o tirano, recusa a traição, que um povo só é bem grande se for livre sua Nação”.



CORRIDA POR MANOEL – 27ª etapa

Destino – Teatro Tuca, Ato Pela Legalidade 
Democrática, percurso de 3,58 km, realizado em 44min38

Distância total já percorrida: 284,87 km       

PS.: Incluo a seguir o manifesto divulgado pelos organizadores do ato

Manifesto pela legalidade democrática

CA DIREITO PUC-SP·QUARTA, 16 DE MARÇO DE 2016

O Brasil ainda é uma jovem democracia. O período democrático inaugurado pela Constituição Federal de 1988 não cumpriu nem 30 anos e já passa por um perigoso período de crise que coloca em risco os direitos conquistados e efetivados nas últimas décadas em nosso país. Esta casa, e principalmente as professoras, professores, alunas e alunos que por aqui passaram, foi essencial no debate deste novo marco constitucional, dos princípios e garantias basilares da nossa Constituição Cidadã.

Hoje, o Centro Acadêmico 22 de Agosto, respaldado pelo seu histórico de luta e defesa da democracia, centro de referência e resistência durante a ditadura militar de 1964, se coloca na linha de defesa da legalidade democrática e denuncia as tentativas de golpe que sofre a democracia brasileira. São nos momentos de crise que a Constituição deve ser fortemente defendida e aplicada, correndo-se o risco de graves rupturas democráticas caso isso não aconteça.

É preocupante o momento de crise política e econômica atual, agravadas por decisões inaceitáveis do STF, como a que ao tentar agradar a opinião pública, limitou o princípio da presunção de inocência dobrando-se ao punitivismo penal. A espetacularização da justiça, com a fama inflada pela mídia de juízes e promotores estrelas, vazamento seletivo de delações premiadas e informações sigilosas de processos, é uma afronta ao devido processo legal e ao Estado de Direito.

No vale-tudo processual as conduções coercitivas são utilizadas sem respaldo legal e a relativização de princípios constitucionais é autorizada pelo desejo sedento de combate à corrupção aliado ao alto índice de falta de confiança nas instituições políticas nacionais. Se há a quebra de um direito fundamental para um ex-presidente da República, o que falar dos milhares de presos em prisões provisórias ilegais, dos flagrantes forjados e dos ataques aos direitos da população pobre e periférica? Neste sentido, a Lei Antiterrorismo é um grande retrocesso, mas um claro sintoma do recrudescimento dos aparatos repressivos do Estado.

De fato, a corrupção é um problema estrutural nas instituições políticas nacionais atingindo tanto a esfera pública como a esfera privada, mas a seletividade nas acusações e processos penais não resolverá este problema. Apenas uma discussão sincera sobre a Reforma Política, aliada a uma ação sem seletividade da Policia Federal, do Ministério Público Federal e da Justiça Federal, indicará caminhos novos para a consolidação da democracia brasileira e resolverá a crise de representatividade que atinge o país.

A mesma mídia que apoiou o Golpe de 1964 hoje se articula como justiceira por impeachments sem base real em crime de responsabilidade, na perseguição de figuras públicas e criação de heróis nacionais, e na desinformação da população, gerando ainda mais crise e uma perigosa polarização de opiniões.

O momento atual é histórico e decisivo, cobrando de cada cidadã e cidadão, estudantes e profissionais do direito, um compromisso pela legalidade e pela democracia. Só assim conteremos a ameaça de retrocessos históricos e os perigos, que todos conhecemos, de uma ruptura democrática.


Assina: Centro Acadêmico 22 de Agosto – Direito PUC 

No comments:

Post a Comment