Duas orquídeas brancas enfeitam uma árvore magra e alta, de
copa bem verde, em frente ao número 815 da alameda Casa Branca, nos Jardins,
bairro rico de São Paulo.
Sob a árvore, um marco de pedra informa: ali foi executado
em emboscada Carlos Marighella, comandante da resistência armada ao regime
militar.
Passei por lá na manhã de hoje, um dia cinzento, chuvadonho.
Meu caminho tinha como destino a área de quartéis no Ibirapuera; ia correr em
volta do Quartel General do Segundo Exército, a primeira instituição a sofrer
as ondas do abalo sísmico provocado no regime pelo assassinato de Manoel Fiel
Filho em 17 de janeiro de 1976.
Àquela altura, o general-presidente Ernesto Geisel
encaminhava o que chamava de “distensão”, mais tarde transformada em “abertura
lenta e gradual, porém segura”. Supostamente, queria encaminhar o processo de
redemocratização do país; para isso, precisava conter o superextremistas que se
aninhavam nas esferas de poder, eram o poder, compartilhavam o poder.
Ao longo de 1975, os terroristas que se aninhavam nas
estruturas governamentais tinham assassinado em São Paulo o tenente PM José
Ferreira de Almeida e o jornalista Vladimir Herzog.
Apesar de toda a repressão, o povo não aguentou calado o
crime. Mais de 8.000 pessoas lotaram a catedral da Sé no culto ecumênico por
Herzog –ali tomava corpo uma mobilização que já tinha se expressado nas urnas,
no ano anterior, quando o regime fora fragorosamente derrotado.
Geisel não queria saber de resistência, queria tudo sob
controle. A violência de seus subordinados, porém, podia chacoalhar seus
propósitos. Pelo menos, é que contou Paulo Egydio Martins, então governador de
São Paulo, em depoimento à Globonews em 2012.
Ele testemunhou encontro entre Geisel e o general Ednardo D`Ávila
Mello, que comandava o Segundo Exército, pouco depois do assassinato de
Vladimir Herzog. Assim transcorreram os fatos, segundo Paulo Egydio:
“Eu já tinha me recolhido com o presidente Geisel para a ala
residencial do Palácio dos Bandeirantes. Estávamos sentados na biblioteca.
Ednardo subiu para a ala residencial. Quando apareceu na porta, fiz um gesto de
me levantar. Não ia ficar presente a uma reunião do Presidente da República com
o comandante do II Exército, os dois generais. Geisel virou para mim e
disse: “Não, não, Paulo. Quero que você
fique aí e escute”. E o general Ednardo D`Ávila Melo, perfilado, em posição de
sentido, na frente de Geisel e na minha, ficou ouvindo Geisel se dirigir a ele
assim: “Ednardo, você me conhece muito
bem. Você sabe do meu passado. Você sabe da minha história. Não vou admitir que
fatos como esses que ocorreram aqui no II Exército se repitam. Quero que você
saiba que vou tomar medidas. Você vai tomar conhecimento pelo seu ministro do
Exército e pelo Diário Oficial. Vou tornar isso um decreto: proibir que alguém
seja preso antes de uma comunicação ao meu gabinete – ao gabinete militar, ao
SNI ou a mim, pessoalmente. Só depois dessa comunicação é que posso admitir que
um preso político seja levado ao recinto de um quartel do Exército. O senhor
está me ouvindo? Está entendendo? “. E o general: “Sim, senhor Presidente; sim, senhor Presidente”. Geisel:
“Pode se retirar”. Escutei tudo aquilo quieto e calado. Meses depois, houve o
caso de Manoel Fiel Filho – que contrariou juridicamente, formalmente e
hierarquicamente todas as determinações do Presidente da República,
comandante-em-chefe das Forças Armadas do Brasil. Consequência: o general, fiel
às palavras que tinha proferido na minha frente, exonerou um general de quatro
estrelas do comando do II Exército, fato inédito na história do Exército
brasileiro”.
A tortura e os crimes praticados no DOI-Codi, que era
subordinado ao comandante do Segundo Exército, eram sobejamente conhecidos.
Houve militares que, sabendo das diferenças internas da estrutura de comando,
tentaram até se aproveitar disso, segundo relato do ex-governador Paulo Egydio
na mesma entrevista à Globonews:
“Quando o coronel Erasmo Dias ( secretário de segurança ) me
procurou, me disse o seguinte: “Governador, o general Marques me procurou, nervosíssimo,
extremamente tenso, porque um sargento e um cabo, integrantes da equipe do
DOI-Codi, foram a ele pedindo um volume de dinheiro. Senão, iriam delatar para
a imprensa o que se passava dentro do DOI-Codi. E ele ficou sem saber o que
fazer. Veio me pedir se eu podia arranjar esse dinheiro da verba secreta da
Secretaria de Segurança.
“Quando eu assumi o governo, extingui a verba secreta do
gabinete do governador. E disse a Erasmo que a verba secreta da Secretaria de
Segurança era de responsabilidade dele. Jamais eu iria intervir. Virei para ele
e disse: “Erasmo, a decisão é sua, sobre se vai atender ao Marques ou se não
vai atender. Chantagem só tem duas respostas: “Ou você mata ou você morre”.
Porque qualquer tentativa de aceitar chantagem é horrível, é péssima. É minha
reação pessoal. Você faz o que você quiser fazer.
“Nunca mais tive retorno dessa conversa. Nada aflorou dessa
chantagem. Mas ela mostra o que significa, como quebra de hierarquia militar: a
gravidade deste episódio. Porque, quando um cabo e um sargento procuram um
general comandante do Estado Maior de um Exército e chantageiam pedindo
dinheiro para não contar o que estava se passando dentro do recinto pertencente
a esse mesmo Exército, acabou qualquer hierarquia militar, qualquer espírito
militar. Isso é absoluta e totalmente incompreensível e inaceitável”.
O comandante Ednardo sabia de tudo, aprovava e defendia. Em
pelo menos uma vez, apareceu pessoalmente nas salas de tortura do DOI-Codi, a
cerca de três quarteirões do Quartel general do Segundo Exército.
Quem conta é uma prima dele, Sarita D`Ávila Mello, militante
do Partido Comunista, que esteve presa nas câmaras de tortura da rua Tutóia.
Em depoimento à Comissão Municipal da Verdade, Sarita relatou
que o general Ednardo D’Ávila Mello chegou à sala quando ela estava começando a
receber choques elétricos. Segundo ela, o general pediu aos torturadores que
preservassem a vida da moça.
Não foi torturada naquele dia nem nos dias seguintes em que
esteve presa. Sua libertação, no dia 24 de outubro de 1975, não significa,
porém, que o esquema de tortura no DOI-Codi tinha sido abrandado ou contido: no
dia seguinte Vladimir Herzog foi assassinado.
Apesar das ordens dadas por Geisel a Ednardo, a fúria brutal
dos ultradireitistas continuou.
Menos de três meses depois do assassinato de Herzog, Manoel
Fiel Filho é morto sob tortura. A tentativa de disfarçar o crime, transformando
assassinato em suicídio, não serviu nem para as “internas”, conforme descobriu
o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Claudio Fonteles, analisando
documentos guardados no Arquivo Nacional. Eis o que ele relata em entrevista a Luciana
Lima, do site Ig:
“No caso da morte do operário Manoel Fiel Filho, preso num
episódio periférico, distribuindo panfletos, há no Arquivo Nacional um bilhete
manuscrito informando que o general Ednardo (D’Ávila Mello, comandante do então II Exército, São Paulo)
manda prender e manter incomunicável toda a equipe (um tenente, dois delegados
e dois agentes) que participou do interrogatório. Mostra que o Estado sabia que
ele havia sido morto (sob tortura) pelos agentes e não se suicidado (por
enforcamento), como informaria a versão oficial (a alegação de que o operário
usara as meias para se enfocar, segundo o bilhete, deixara o general
“preocupado, contrariado e constrangido” antes que o assunto tivesse sido
noticiado.”
Mais contrariado ainda ficou o general-presidente, que soube
da morte na noite de domingo, dia 18 de janeiro de 1976, mais de 24 horas depois
do crime ter ocorrido. Foi avisado pelo governador de São Paulo, Paulo Egydio,
por telefone.
“Presidente! Matando-se assim, um por mês, no DOI-Codi do
Segundo Exército, não ganharemos eleição em São Paulo”, disse o governador,
segundo registra Sylvio Frota, então ministro do Exército, em seu livro “Ideais
Traídos”.
As traições foram em penca, naqueles dias, a crer no relato
de Frota –mais tarde também defenestrado por Geisel.
Frota, por sinal, diz ter sido o último a saber: foi informado apenas na manhã de segunda-feira. O subchefe do Centro de Informações do Exército, que estava de plantão no fim de semana, não achara necessário informar ao ministro quando soube do assassinato do operário em São Paulo.
O próprio comandante do Segundo Exército, de acordo com o
livro, só teria sabido na manhã de segunda-feira –Manoel fora preso na sexta e
morto no sábado. O então chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações),
general João Baptista Figueiredo, mais tarde sucessor de Geisel também só recebeu
a informação na manhã do dia 19.
Eram indicadores de que a divisão e a discórdia reinavam no
interior do regime. Geisel decidiu pela exoneração de Ednardo –a notícia foi
publicada na terça-feira, na mesma página da Folha de S. Paulo em que saiu uma
nota oficial do Segundo Exército dando conta da morte de Manoel.
Ainda que as Forças Armadas aceitassem o comando de Geisel, a situação era instável. Para Frota e muitos
aliados dele, “o Governo estava traindo a Revolução, insultando o Exército e
estimulando a subversão”.
Cinco generais chegaram a oferecer a Frota suas tropas. Pelas
propostas, o ministro do Exército deveria se demitir e tomar a frente de um
movimento de reação ao governo de Geisel.
No livro, Frota não explica por que não aceitou a chamada
para um golpe de ultradireita em uma ditadura já de superdireita. O certo é
que, naquele momento, ficaram mais evidentes e expostas as fissuras no regime.
Para muitos analistas, a morte de Fiel Filho é um divisor de
águas. O cineasta Jorge Oliveira, que produziu um documentário sobre o caso,
deixa claro sua opinião no próprio título do filme: “Perdão, Mr. Fiel – O Operário
Que Derrubou a Ditadura no Brasil”.
Isso provavelmente é um exagero. Mas não muito, como analisa
o ex-presidente Lula em declaração ao documentarista: “Depois da morte [de
Fiel] começou o processo de democratização no país e não parou nunca mais”.
CORRIDA POR MANOEL – 20ª etapa
Destino: QG do Segundo Exército, percurso de 13,71 km
realizado em 1h47min08
Distância percorrida até agora: 209,08 km
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