O
assassinato de Manoel Fiel Filho deixou enlouquecidos os carcereiros, os
torturadores, os chefetes e até o comandante do II Exército, para não falar do
próprio general então presidente da República, Ernesto Geisel.
A
equipe de plantão no DOI-Codi quando Manoel foi morto foi detida na semana
seguinte “para averiguações”. O comandante do destacamento, tenente-coronel
Audir Santos Maciel, foi transferido para o Rio de Janeiro. O subcomandante,
tenente Dalmo Cirilo, foi mandando para Brasília.
O
até então aparentemente todo-poderoso general Ednardo D`Ávila Melo, comandante
supremo do II Exército e, portanto, do DOI-Codi, foi exonerado de suas funções.
Não
aceitou a transferência. Pediu para passar à reserva e, no dia 20 de janeiro de
1976, viajou para o Rio de Janeiro, levar vida privada. Na noite anterior,
reuniu-se com jornalistas que cobriam o II Exército, segundo conta o repórter
Carlos Alberto Luppi.
Bebericando
copos de uísque, dizia:
“Vocês
me conhecem bem. Não sou partidário da violência. Eu nem estava em São Paulo.
Exorbitaram. Não me deixaram agir. Eu iria tomar providências. Antes disso, me
tiram do Comando. Assim, sem mais nem menos. Acho uma deselegância. Por isso
não vou aceitar o cargo que me oferecem. Vou para a reserva. Não pretendo
voltar mais à vida pública.”
Claro
está que o general não informou se também achava “deselegância” a prática de
torturas e o assassinato de presos sob sua guarda.
O
general Ednardo nunca chegou a responder criminalmente pela morte de Manoel
Fiel Filho. Morreu de câncer em 1984, aos 73 anos, no Rio de Janeiro. Foi
enterrado sem honras militares –“a pedido da família”, segundo notícia da
“Folha de S. Paulo”. Geisel morreu em
setembro de 1996, aos 89 anos.
Ao
longo do período da ditadura, os demais envolvidos no
crime nunca foram molestados. Mesmo depois da redemocratização do
país, o processo de investigação dos crimes contra a humanidade –não
prescritíveis mesmo depois de anistia—tem sido lento e cheio de fracassos.
Sabe-se
quem são os criminosos, um por um. No 30º aniversário da morte de Manoel, o
site Centro de Mídia Independente publicou texto produzido pelo PCB que afirma
o seguinte:
“A Casa das Torturas no DOI-Codi era comandada pelo tenente
coronel Audir Santos Maciel, tendo como subcomandante o major Dalmo Lucio Muniz
Cirylo. O oficial do dia era o tenente da PM Tamoto Nakao. Os carcereiros do
dia eram Alfredo Umeda e Antonio Jose Nocete, ambos soldados da PM. A equipe de
interrogadores era composta pelo tenente Nakao e os delegados Harim Sampaio
d´Oliveira e Edevard José. O interrogador pessoal de Fiel Filho foi o sargento
Luiz Shinji Akaboshi. O enfermeiro de plantão era o sargento Moacyr Piffer, que
era a autoridade para dizer se o preso ainda suportaria ser torturado ou não.”
Em junho de 2015, 39 anos depois do assassinato do metalúrgico, o
Ministério Público Federal apresentou denúncia contra sete ex-agentes do
DOI-Codi envolvidos no crime.
Notícia publicada na “Folha” diz: “O procurador Andrey Borges de
Mendonça, autor da denúncia, pede a condenação do militar reformado Audir
Santos Maciel, à época chefe do DOI. Para o Ministério Público, embora ele não
estivesse na unidade durante os dias em que Fiel ficou preso, tinha "pleno
conhecimento e domínio" do que ocorria lá. Tamotu Nakao, Edevardo José, Alfredo
Umeda e Antônio José Nocete são acusados de homicídio triplamente qualificado
--por motivo torpe, sob tortura e sem chance de defesa para a vítima. Já
Ernesto Eleutério e José Antônio de Mello são acusados de fraudar laudos para
forjar o suicídio de Fiel”.
Quatro décadas se passaram entre a morte e a acusação; para
exonerá-los do crime, porém, a Justiça foi rápida.
A denúncia foi rejeitada dois meses depois de ter sido
apresentada, por decisão do juiz Alessandro Diaféria,
da 1ª Vara Federal Criminal em São Paulo.
Em seu despacho, ele afirmou: "Não se trata,
aqui, de acobertar atos terríveis cometidos no passado, mas sim de pontuar que
a pacificação social se dá, por vezes, a duras penas, nem que para isso haja o
custo, elevado, de sensação de 'impunidade' àqueles que sofreram na própria
carne os desmandos da opressão".
Há quase quarenta anos, porém, quando estavam em
plena vigência os tais “desmandos da opressão”, advogados se muniram de coragem
para enfrentá-los. E houve juízes que julgaram com base nos autos dos
processos.
Não que a ditadura militar não tenha usado todo
seu poder para se defender, mesmo estando consciente dos crimes que eram
praticados sob a justificativa da defesa do regime.
Em alguns momentos, chegou a ficar baqueada pela
própria violência que cometia.
A morte de Manoel Fiel Filho foi um desses
momentos.
Tanto é verdade que, logo depois do assassinato,
mais de dez presos no DOI-Codi –lá detidos de forma ilegal e submetidos a
torturas—foram soltos sem nenhuma explicação, conforme registra o livro de
Carlos Alberto Luppi.
“Após a morte de Fiel Filho foram imediatamente
soltas dos xadrezes do DOi-Codi as seguintes pessoas: Manoel Dias Veloso,
Geraldo Castro da Silva, José Teixeira da Silva, Sebastião de Almeida, Manoel
Guilherme Neto, João Daniliauskas, Rivaldo Giraud, José Hamilton Rodrigues,
Antonio de Albuquerque Oliveira Teixeira, Rosália Amado Andrade, Francisco
Ramos Filho e Francisco Daniel de Souza.”
“Ele morreu para salvar todo mundo que estava
lá dentro”, me disse a viúva de Manoel, dona Thereza Fiel, em entrevista
realizada em Bragança Paulista, onde vive hoje. “O Geisel falou: Soltem tudo,
não quero mais mortes aqui.”
Aparecida, primogênita de Manoel, hoje com 60
anos, conta que alguns dos presos que foram liberados na época eventualmente
buscaram a família. “Agradecemos ao seu pai porque senão podia ter sido nós
também”, disseram alguns, segundo Aparecida, que avalia: “Essa coisa toda parou
na morte do meu pai”.
O calvário da família, porém, apenas começou naquele dia. A
busca por justiça foi frustrada logo nos meses seguintes ao crime, com o
arquivamento quase sumário do Inquérito Policial Militar. A família resistiu e,
apoiada pelo advogado Belisário dos Santos Júnior, tentou o desarquivamente do
processo: queriam que o governo assumisse o crime, encarasse suas
responsabilidades.
Nada.
Márcia, a filha caçula, hoje com 56 anos, resume:
“Tentamos entrar com um processo contra a União, porém nenhum advogado
particular queria o caso. Todo mundo tinha medo. A minha mãe ficou sabendo que
tinham entrado com um processo [caso Rubens Paiva], foi no mesmo tempo. A causa
criminal. A gente queria saber como ocorreu a morte. Depois, os advogados
abriram o processo no civil”.
Como apoio da Cúria Metropolitana e de dom Paulo
Evaristo Arns, a família finalmente encontrou advogados que aceitaram enfrentar
a ditadura nos tribunais. O processo foi julgado por um juiz que não se dobrou às
pressões exercidas de forma sorrateira por agentes da ditadura.
A 35ª jornada da CORRIDA POR MANOEL busca lembrar
o trabalho desses homens que, em lados diferentes do processo judicial,
trabalharam com honestidade e respeito à lei.
Marco Antônio caminha ao meu lado, de calça jeans; no centro, as filhas de Manoel, Aparecida e Márcia - foto Eleonora de Lucena |
Conversei com os advogados Marco Antônio Rodrigues
Barbosa e Samuel Mac Dowell de Figueiredo, que até hoje militam juntos e
dividem escritório na zona sul de São Paulo. A menos de dois quilômetros dali
trabalha Jorge Tadeo Flaquer Scartezzini, o juiz que cuidou
da ação impetrada em abril de 1979.
Por conta de suas atividades, não puderam
participar da jornada –em outro dia da CORRIDA POR MANOEL, Marco Antônio foi a
Bragança Paulista se reunir com a família de Manoel, somou-se à caminhada que
fizemos na cidade.
Procurei trilhar percurso que advogados e juiz
faziam naquela época: meu destino foi a região central da cidade, onde todos
trabalhavam naquela época.
Era tudo pertinho. O escritório de Samuel e Marco
Antônio ficava na avenida Ipiranga, no edifício Itália; a Justiça Federal estava
instalada em um prédio na praça da República, na esquina com a avenida Vieira
de Carvalho.
Samuel e Marco Antônio sabiam de cor o caminho, iam e voltavam quase de forma automática: foram eles os advogados do caso Herzog, representando a família do jornalista contra a União. As ações de um e outro foram diferentes, explica Samuel:
"Quando a Clarice [Herzog] nos procurou, ela tinha muito claro na cabeça que a ação dela era política. Não era uma ação em busca de uma indenização em dinheiro. Ela pediu tão somente no processo Justiça, a declaração da responsabilidade da União pela prisão ilegal, pelas torturas, e pela morte do Vladimir Herzog. Quando chegou o caso do Fiel, essa questão se colocava, mas o papel político já tinha sido cumprido pela primeira ação; não precisava ser repetido. Isso era um risco processual. Não era muito claro que se pudesse entrar com a ação judicial apenas para obter essa declaração, não pleiteando a condenação na indenização. Havia o risco de dizerem: tudo bem, entendo tudo, mas você não tem direito a fazer uma ação somente por isso. Não havia razão para a Thereza correr esse risco no processo do Fiel. Por esta razão a ação deveria ser condenatória. A União era declarada igualmente responsável pela prisão ilegal, pelas torturas e pelo assassinato do Fiel Filho, mas era condenada a indenizar. E a Thereza precisava. Thereza tinha uma condição econômica diferente da Clarice. Ela necessitava, pessoalmente ela necessitava, ela deixou de ter o concurso do salário do Fiel Filho para manutenção da família. Por isso a gente efetivamente entrou com a ação de declaração da responsabilidade, mas também de condenação da União para pagar uma indenização.”
Os processos era
uma espécie de tiro no escuro. Os advogados sabiam que tinham razão, que houve
crime, que o Estado era responsável. Mas o Brasil vivia sob o tacão da
ditadura, ainda que ele começasse a dar sinais de fraqueza, como lembra Samuel:
“Era um estado
quase de suspensão do processo. Você não tem nenhuma noção do que iria ocorrer.
Você não tinha nem condições de avaliar a independência dos juízes, porque não
tinham chegado os momentos de decisão do processo. A partir daqui é que a coisa
mudou. Por dois motivos, primeiro a história do Brasil continuou andando, mesmo
com o processo parado. O Regime Militar já estava apodrecendo. Você já se
sentia com mais autoridade para fazer coisas que eram normais, tanto quanto
respirar. Se você precisasse de autoridade para respirar. No estado de exceção
você achava que era uma grande coisa fazer uma coisa que não era nada além do
natural.”
Foi, portanto,
preciso determinação para seguir adiante.
“Havia uma condição
em princípio desfavorável ao andamento do processo, ao andamento regular, de
acordo com a Lei. Em princípio era desfavorável, então dependeu muito da
postura individual dos juízes que os processos tomassem seus cursos
regularmente. Nós tivemos juízes pessoalmente independentes. Nesses dois casos,
Herzog e Fiel Filho, os juízes atuaram com
independência.”
Lembrando o caso, o então juiz federal Jorge Tadeo Flaquer
Scartezzini acha que não fez mais do que sua obrigação. Diz que não teve nenhum
tipo de punição pela sua decisão de condenar a União; seguiu a carreira, virou
desembargador, foi presidente do Tribunal regional federal da 3ª Região e
ministro do Superior Tribunal de Justiça.
“O Scartezzini impediu que o processo fosse retardado por incidência,
agiu com firmeza, deu prazos para a União. Ou a União se comportava no processo
ou o processo andava de qualquer maneira. Foi fundamental. Não houve ameaças,
que a gente saiba, e se aconteceram não surtiram o menor efeito”, afirma
Samuel.
Hoje consultor da firma de advogacia em que atuam seus filhos,
Scartezzini diz que não sofreu pressões oficiais durante o processo. Houve,
porém, um caso curioso, ainda que sem consequências.
Edifício onde funciona o escritório de Samuel e Marco Antônio na década de 1970 |
“Um dia chegou à minha
sala um indivíduo que teve um corportamento muito estranho. Ele pede para falar
comigo, eu o recebo, ele mostra uma carteirinha dizendo que era do Ministério
da Guerra, e queria algumas informações a respeito do processo do Fiel Filho.
Perguntei: O senhor é advogado? Qual o seu interesse nesse caso? Ele respondeu:
“Eu estou aqui a mando do Comando do Exército”. Então lhe disse: “O senhor
aguarde meia hora que eu vou ligar para o Comando do Exército para saber qual é
a sua função, o que o senhor está pretendendo aqui, e o que eles querem, para
depois atendê-lo”. Ele foi embora, fugiu. Quando vi, ele não estava mais lá.”
Quaisquer que
tenham sido as pressões, elas não surtiram efeito. Ainda que não tenha sido
esse o objetivo, a sentença condenatória do processo nº 1298666, registrada em
17 de dezembro de 1980, é um relato desabrido dos crimes da ditadura e das
manobras que o governo fez para tentar fugir às suas responsabilidades.
Apesar do
jurisquiquês que aparece em muitos pontos –e é de lei, digamos assim--, as 139
páginas podem ser lidas como se fossem uma grande reportagem, um livro em que a
história vai sendo construída tijolo por tijolo até chegar à elucidação da
trama e à punição dos culpados.
A pena, porém, só
foi ser cumprida quase 20 anos mais tarde. Só em 1997 a viúva Thereza Fiel
recebeu a indenização a que teve direito, conquistada na Justiça com muita luta
e coragem –da família, dos advogados, dos juízes.
Em junho daquele
ano, o jornalista Elio Gaspari publica em sua coluna na “Folha” uma nota
dizendo que o dinheiro dos atrasados devidos já estava depositado. E resume
assim a epopeia da família de Manoel Fiel Filho:
“Thereza Fiel
enviuvou aos 42 anos, com duas filhas. Ajudada pela Arquidiocese de São Paulo,
processou a União. Teve ganho de causa em 1980, mas não viu a cor do dinheiro
porque juízes medrosos engavetavam o caso. A cada sentença a União interpôs um
recurso, um deles demorou sete anos (...).”
Sofridos 17 anos
depois de passada a sentença, Thereza recebeu seu direito. Ao saber da notícia,
sua reação veio em uma só frase: “Vou me livrar do aluguel”.
CORRIDA POR MANOEL –
35ª etapa
Destino: caminhos
das advogados da família Fiel, percurso de 7,40 km realizado em 1h36
Distância total
percorrida: 372,06 km
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