Carlos Marighella, Carlos Lamarca, Olga Benário, Sandino, Joaquim Câmara
Ferreira, Pedro Pomar, Steve Biko, Rubens Paiva, todos eles, juntos e
misturados, se encontram em esquinas, conversam atrás de praças, batem papo
lomba acima e lomba abaixo.
Revolucionários estrangeiros e brasileiros são homenageados no Jardim Elisa
Maria, na zona norte de São Paulo, onde emprestam seus nomes para uma série de
ruas.
Encontro das ruas Carlos Mariguella e Olga Benário; a foto foi feita a partir da rua Patrice Lumumba |
Uma delas lembra Virgílio Gomes da Silva, o comandante Jonas, líder do grupo que sequestrou, em 1969, o embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, em uma das mais audaciosas e surpreendentes ações de enfrentamento à ditadura militar.
Foi o primeiro preso político assassinado na Operação Bandeirante, a
Oban, precursora do DOI-Codi. Os criminosos esconderam seu corpo, que até hoje
nunca foi encontrado –Virgílio é o primeiro desaparecido do regime militar.
“Preso no dia 29 de setembro de 1969, cerca de três semanas depois do
sequestro, Jonas foi barbaramente torturado numa sessão de dez horas de
pau-de-arara, afogamentos, choques elétricos, espancamentos, queimaduras etc.
Recusou-se a ceder qualquer informação a seus torturadores, enfrentando-os a
socos, pontapés e xingamentos. Como não puderam vencê-lo, os torturadores
resolveram destruí-lo. Mataram-no selvagemente, batendo sua cabeça contra a
parede até reduzi-la a uma pasta. No local do crime, restou uma poça de sangue,
que os torturadores, eufóricos e excitados, exibiram a outros presos políticos
como troféu de guerra” –o relato é do jornalista Franklin Martins, um dos
participantes do sequestro do embaixador, em artigo publicado no jornal “O
Globo”.
Apesar da tentativa dos agentes da ditadura de apagar a existência de
Virgílio, sua memória está preservada em livros, documentos, na ação de amigos,
nos seus filhos e netos e nas homenagens que o Brasil continua prestando a ele.
Cartaz com foto de Virgílio produzido para homenagem feita a ele pelo Sindicato dos Químicos, categoria em que militou com líder sindical |
Nascido em Sítio Novo, no sertão do Rio Grande do Norte, em 15 de agosto
de 1933, foi morto aos 36 anos em São Paulo –cidade que hoje o tem como cidadão
honorário e nome de rua.
Foi para lá que partimos hoje na 13ª jornada da CORRIDA POR MANOEL. Do
coração da zona oeste, saímos eu e Gregório Gomes da Silva, o filho mais novo
de Virgilio –depois dele há ainda uma moça, Isabel. Nosso percurso lembraria a
vida do companheiro Jonas, os ensinamentos que deixou para os filhos.
Eu e Gregório no caminho para a zona norte; até cruzar os trilhos fomes bem; depois nos perdemos um pouco |
Gregório, um engenheiro civil de 49 anos, casado, pai de duas moças, tem
lembranças difusas do pai. “Quando eu nasci, ele já estava na clandestinidade,
estava em Cuba, fazendo treinamento”, conta.
As lembranças que têm Virgílio são difusas, indiretas, é um “imaginário
construído, vários retalhos que vou emendando a partir da valoração de terceiros”.
O maior período de convivência que o menino que mal começava a caminhar
teve com o pai foi de alguns meses, do final de 1968 a meados de 1969.
Viviam então em um sítio em Ribeirão Preto, para onde foram Virgílio e a
esposa, Ilda, e os três filhos –Vladimir, nascido em 1962, Virgílio, de 1961, e
Gregório, de 1967. A caçula, Isabel, nasceu enquanto a família estava no sítio,
e foi batizada em honra da mãe de Virgílio, que também morava com a família.
O ambiente doméstico servia de fachada para as verdadeiras funções do
local, que era um centro de treinamento da ALN. Ali os militantes aprendiam a
manusear armamento, “montar e desmontar armas”, segundo Gregório. “A ideia da
ALN na época era partir para a luta armada rural.”
Também havia exercícios casca grossa, treinos de sobrevivência na mata.
Virgílio em treinamento - foto Álbum de Família |
“Praticavam corrida, treinavam flexões e pular corda”, diz ele enquanto
corremos pelas ruas de São Paulo. Virgílio colocava os dois garotos, de sete e
oito anos, para lutar boxe; num rio próximo,
ensinou os meninos a nadar.
“Todo revolucionário tem de estar fisicamente preparado”, era o que
costumava dizer, afirma Gregório. “E levava isso bem a sério. Cultuava muito o exercício
físico”, diz o filho.
Bem que fazia o jovem sertanejo, retirante do Rio Grande do Norte que
aportou por São Paulo. Graças à sua grande resistência física, ganhou fama em
São Paulo.
Quando a operária Ilda Martins da Silva o conheceu em carne e osso,
durante a grande greve da Nitro Química em 1957, já tinha a ficha da figura:
era o “Louco do Rádio”.
Ela o chamava assim porque Virgílio havia participado, tempos antes, de
um concurso da rádio Record, o Resistência Carnavalesca. Vencia quem ficasse
mais tempo dançando, dia e noite, sem comer nem dormir. “Virgílio não gostava
muito de dançar, mas resistiu por 78 horas”, registra o livro “De Retirante a
Guerrilheiro”, de Edileuza Pimenta e Edson Teixeira.
Virgílio e sua bicileta - Álbom de Família |
Na hora do sério, também ia com tudo. Líder sindical e já na época militante
do Partido Comunista Brasileiro, levou à vitória o movimento grevista da Nitro
Química, a mais importante empresa da São Miguel Paulista, na zona leste de São
Paulo.
Casamento de Ilda e Virgílio - Reprodução |
E ainda arranjou uma namorada, a já citada Ilda, com quem se casou em 21
de maio de 1960. A noiva começou o casório fazendo uma concessão ao parceiro
–como era mais alta que Virgilio, tirou os sapatos na hora da foto oficial da
cerimônia.
As alegrias foram cortadas pelo golpe militar. Líder sindical, Virgílio
foi preso em dois de outubro de 1964. Foi solto uma semana depois, no dia 9,
mas ficou mais complicado ganhar a vida.
Tratou de montar um bar na região onde vivia, em São Miguel. Para
celebrar sua paixão pelo boxe, batizou a casa de “Galo de Ouro”, homenagem a
Éder Jofre, na época ainda campeão mundial peso galo (título que manteve até
1965).
Durante a semana, vendia bebidas e salgadinhos. Nos fins de semana, diz
Gregório enquanto corremos pela cidade, cruzamos o trilhos e atravessamos a
marginal Tietê, Virgílio saía para longas caminhadas.
Ia para a Serra do Mar, se embrenhava na mata em busca de orquídeas, uma
de suas paixões. Em casa, cultivava as flores com carinho. “É uma planta que
parece muito delicada, mas é resistente para caramba. Talvez ele visse nelas
alguma semelhança com o ser humano”, filosofa o filho do comandante Jonas.
O certo é que Virgílio tinha muito carinho por suas plantas. Quando se
aproximou a hora em que teria de mergulhar na clandestinidade –tinha rompido
com o PCB para acompanhar Carlos Marighella na ALN--, tratou de deixar as
orquídeas com quem fizesse bons uso delas. “Levou as flores para o Viveiro
Manequinho Lopes, fez doação de suas orquídeas”, me conta Gregório.
Com as plantas protegidas e a família também em segurança, Virgílio foi
cumprir suas tarefas. Depois do treinamento em Cuba, participou de várias ações
armadas da ALN.
Ainda que no fogo da batalha, tratava de dar uma olhadinha na família
quando possível. Disfarçado, percorria as ruas de São Miguel Paulista,
cumprimentava de longe a mãe.
Voltou a se reunir com a mulher e os filhos no sítio em Ribeirão Preto,
de onde saiu para comandar o sequestro de Elbrick. Meses depois, a prisão, a
tortura e a morte.
Foi preso na rua Duque de Caxias, na região central de São Paulo, quando
ia a um encontro com um companheiro da ALN. Ferido a bala, foi levado para
Oban, na rua Tutóia, onde deu entrada às 10h.
Abaixo de pancada, foi colocado no pau-de-arara, onde seguiu apanhando e
levando choques elétricos.
“Retirado do pau de arara por volta das 12h30, Virgílio surpreendeu seus
assassinos, tentando reagir as agressões”, segundo conta Antonio Carlos Fon,
ex-militante da ALN e ex-preso político, em seu livro “Tortura: A História da
Repressão Política no Brasil”.
O relato segue: “Mãos e pés amarrados, ele foi, então, derrubado em um
canto da sala e, durante os vinte minutos seguintes, massacrado a pontapés. As
manchas de sangue permaneceram durante meses na câmara de torturas da Operação
bandeirantes –uma pequena sala, de 4 x4 metros, no fundo do corredor do segundo
andar do 34º [NR.: de fato, 36º] Distrito Policial de São Paulo”.
Os responsáveis pelo crime, segundo o livro de Fon, foram os capitães
Benone de Arruda Albernaz, Homero Cesar Machado e Dalmo Luiz Cirillo, o major
Inocêncio Fabrício de Mattos Beltrão e o sargento PM Paulo Bordini.
Os assassinos não ficaram satisfeitos. Dias depois, a viúva de Virgílio
foi presa em São Sebastião. Sem saber da prisão e morte do marido, Ilda
organizava as coisas da família para sair do país.
“Na cadeia, minha mãe soube que tinham matado meu pai”, conta Gregório.
“Como forma de tortura da minha mãe, colocavam gravações de sessões de tortura
de meu pai.”
“Ilda foi retirada do pau de arara e amarrada a cadeira do dragão [NR.:
outro equipamento de tortura]”, diz Fon em seu livro, em que também relata a
barbárie a que foi submetida a dona de casa.
“Os mesmo homens que mataram seu marido levaram para a câmara de
torturas uma mesa, onde foi colocada Isabel Gomes da Silva, filha de Ilda e
Virgílio, de apenas quatro meses de idade. Eles faziam perguntas a Ilda e, quando
ela dizia não saber as respostas, davam choques na criança.”
As crianças foram conduzidas para um Juizado de Menores, de onde uma
tia, Creuza, as resgatou dias depois. Ilda foi transferida de cadeia, como
conta Gregório durante nossa corrida até a zona norte de São Paulo.
“Minha mãe ficou nove meses presa no presídio Tiradentes, junto com a
Dilma [NR.: a hoje presidenta Dilma
Rousseff], eram companheiras de cela, também a Rose Nogueira, que também é
jornalista. Boa parte desse tempo ficou incomunicável. Depois um belo dia,
soltaram ela, sem julgamento, sem pedir desculpas, sem nada, foi um sequestro
mesmo.”
Em liberdade, Ilda tentou seguir a vida no Brasil. Uma dureza: “Era
seguida, sempre tinha alguém diferente por perto dela, não arrumava emprego, tinha
quatro filhos para criar”, diz Gregório.
Para segurança de todos, a organização decidiu tirar a família Gomes da
Silva do país. Em 1972, vão para o Chile, onde ficam um ano: em março de 1973,
seguem para o destino final, Cuba.
São recebidos como amigos. Apesar das dores e das memórias sofridas,
tratam de seguir a vida.
As crianças vão estudar –Gregório já está então em idade de começar o
primário, é alfabetizado em espanhol. Ilda vai trabalhar em uma fábrica de
roupas, onde também completa seus estudos: ela tinha apenas os primeiros anos
do primeiro grau.
“Muitas vezes fizemos pesquisas juntos”, lembra Gregório. Mãe e filho
faziam ao mesmo tempo o mesmo curso, ele na escola, ela na fábrica.
Fizeram amigos, cresceram, se apaixonaram. Vladimir, Virgílio Jr. e
Maria Isabel se casaram em Cuba, onde também fizeram faculdade –geologia para o
mais velho e a mais moça, dois cursos para Virgilinho, engenharia de produção e
engenharia mecânica. Gregório, meu parceiro nessa corrida pela memória,
formou-se em engenharia civil.
Na ilha, a prática de esportes fazia parte do cotidiano dos filhos do
companheiro Jonas.
“Em Cuba todos nós praticávamos esporte. A corrida quem começou foi o
Vladimir, eu achava que era coisa de doido, o Virgílio também. Ele corria lá seus
dez quilômetros, foi o precursor. O Virgílio nadava muito, eu também nadava,
jogava bola”, diz Gregório enquanto a gente se perde pela zona norte de São
Paulo.
Familiares de Virgílio recebem na Cãmara Municipal o título de Cidadão Paulistano concedido ao líder revolucionário - Reprodução de imagem publicada em revista da Adusp |
Demos um baita perdido mesmo. Em vez de cruzar a Marginal Tietê pela
ponte que dá na avenida Inajar de Souza, como eu tinha planejado, rodamos
vários quilômetros além. Atravessamos a ponte para subir a avenida Edgar Facó e
tratamos de recalcular então nosso percurso.
Um errinho besta, que nos deu vários quilômetros a mais e ainda
subidonas inesperadas pelas ruas Marilândia e Itaquara –essa aí é sangue ruim
mesmo!—para chegar à avenida Itaberaba e conseguir voltar ao trajeto
inicialmente planejado.
Ainda bem que Gregório nos últimos anos retomou a fidelidade aos
ensinamentos do pai e tem se dedicado com afinco a manter a forma.
Bem mais do que isso, na verdade. Depois de ter superado os cem quilos,
em meados da década passada, tratou de começar a correr.
Primeiro aos pouquinhos. Depois, aos bastantinhos. Hoje já contabiliza
cinco maratonas no currículo e, como se não bastasse, ainda se dedica ao
triatlo de longa distância --no ano passado, fez um meio Ironman.
Para quem não conhece, dizer “meio Ironman” pode parecer pouca coisa.
Não é. A prova inclui 1.900 metros de natação, 90 quilômetros de ciclismo e
21,1 quilômetros (meia maratona) de corrida, um depois do outro, sem descanso.
“Eu entendo o esporte como um excelente meio de formar a disciplina e
estimular o trabalho coletivo, mesmo nas modalidades individuais, além dos
comprovados benefícios no bem-estar e na saúde”, diz Gregório.
Vista geral da rua Virgílio Gomes da Silva |
E a corrida é também uma excelente forma de mergulhar na história, como
estamos vendo nessa jornada, que se encerrou na rua Virgílio Gomes da Silva,
Jardim Elisa Maria.
Circulamos os dois pelos menos de 200 metros da rua sem saída, que
começa com um bar bastante simples e termina em cunha, com várias casas se
acotovelando. Na porta de uma delas, uma vibrante pintura de um garboso e
combativo São Jorge.
Corintiano como seu pai e todos seus irmãos, Gregório faz foto
no local, posando ao lado do símbolo do time relembrado na rua que homenageia
Virgílio.
Conversamos com uma moradora do bairro que não tinha a menor ideia de
quem fora Virgilio Gomes da Silva e se espantou ao saber que Gregório era filho
do nome da rua: “Você deve se orgulhar de ter um pai importante”.
Já estávamos saindo felizes e satisfeitos da rua, prontos para pegar um
ônibus de volta, quando percebemos uma pichação nos muros da escola Jardim
Santa Tereza, na confluência das ruas Virgilio Gomes da Silva e Augusto César
Sandino, revolucionários do Brasil e da Nicarágua.
“Cotó # Luto Cotó mais um# ASSASSINOS DE FARDA”.
“Continua”, Gregório comentou apenas.
Quem passava por ali na hora disse não saber quem era Cotó. Pesquisando
na internet, também não identifiquei o caso.
Mas descobri que a violência
policial está muito presente no Jardim Elisa Maria, uma comunidade que em 1992
resolveu homenagear em suas ruas combatentes pela liberdade (o decreto da então
prefeita Luiza Erundina identifica o loteamento como Jardim Thereza).
Vista da zona norte a partir da rua Virgílio Gomes da Silva |
As ruas do bairro já foram palco de terríveis chacinas. Em 2 de
fevereiro de 2007, sete jovens que conversavam nas escadarias da rua Olga
Benário foram fuzilados com dezenas de tiros –minutos depois, carros da Rota, a
tropa de elite da PM de São Paulo, chegaram para recolher as cápsulas de bala.
A chacina foi realizada pelos Matadores do 18, grupo de extermínio cujo
nome faz referência ao batalhão da PM em que os militares eram lotados. Sete
policiais foram presos acusados de envolvimento na chacina do escadão.
A coisa não parou. De lá para cá aconteceram outras mortandades, sempre
com suspeita de envolvimento de policiais.
Em 2014, cinco moradores do bairro foram mortos e três ficaram feridos
em ações semelhantes, segundo reportagem publicada no ano passado pela edição
brasileira do “El País”.
“Sabemos que isso vai continuar acontecendo. E o que choca é que todo mundo conhece alguém que morreu numa situação dessas”, disse Valmir Rodriguez, 37, diretor de videoclipes ouvido pelo repórter Gil Alessi. “A ditadura está presente no nosso dia a dia. Se depender da PM e do Governo estamos fodidos."
“Sabemos que isso vai continuar acontecendo. E o que choca é que todo mundo conhece alguém que morreu numa situação dessas”, disse Valmir Rodriguez, 37, diretor de videoclipes ouvido pelo repórter Gil Alessi. “A ditadura está presente no nosso dia a dia. Se depender da PM e do Governo estamos fodidos."
Destino: Rua Virgílio Gomes da Silva,
percurso de
12,5 km realizado em 1h53
Distância total: 123,42 km
PS.: Depois de publicado esse texto, consegui as duas fotos em preto e branco do Virgílio fazendo exercício e segurando sua bicileta. Segundo me disse Gregório, um fotógrafo que analisou as imagens afirma que elas foram produzidas pelo próprio Gregório, usando câmera fotográfica com disparador programável --uma espécie de "selfie" dos anos 1960
Caro, Rodolfo.
ReplyDeleteO texto é tão impecável quanto tua parceria na corrida.
Muito obrigado pela oportunidade de participar, e incluir a homenagem ao meu pai, dentro do teu projeto Corrida por Manoel.