Elas
mexiam com pólvora o dia inteiro. Em 16 de junho de 1968, seus corações pegaram
fogo.
Como
se fossem uma, as 500 trabalhadoras da Fósforos Granada pararam, desligaram
máquinas, saíram de seus postos de trabalho, cruzaram os braços. E foram para a
rua, que já começava a ser ocupada pela polícia.
Nem
metalúrgicas eram, aquelas moças. Mal ouviam falar de sindicato, porque a
entidade dos químicos, que supostamente as representavam, estava calada,
quieta, talvez até agindo de braços com o inimigo.
As mulheres da pólvora, não.
Mesmo
sem comissão de fábrica, sem terem visto panfletos nem acompanhado discursos,
sabiam que precisavam agir, que os companheiros do outro lado da rua
necessitavam seu apoio, sua presença, sua participação.
Aquecimento em preparação para a caminhada - Fotos Eleonora de Lucena |
Em
pleno vigor da violência policial e política sobre os trabalhadores, no momento
em que qualquer atitude de rebeldia ou de protesto era recebida a borrachada,
prisão e assassinato, os metalúrgicos de Osasco se levantaram.
O
apito da Cobrasma, que dava a hora do dia para toda a cidade, tocou diferente.
Quando soou, inesperadamente, por volta das 8h30, foi o sinal para os
trabalhadores agirem.
Sem
um tiro, apenas com a força do movimento, tomaram as guaritas da fábrica,
fecharam os portões, pararam as máquinas, ocuparam o complexo fabril onde
mourejavam milhares de operários.
Construída
em silêncio, na clandestinidade, a tomada da Cobrasma transformou-se em grito pelas
ruas de Osasco.
Como
se fossem peças de dominó enfileiradas, as outras fábricas instaladas ao longo
da avenida dos Autonomistas foram caindo. Na Lonaflex, onde os trabalhares
tinham conquistado melhorias salariais e funcionais havia pouco tempo, a
paralisação foi em solidariedade.
Neto explica como eram as instalações da Lonaflex, aponta onde ficavam os prédios da fábrica |
E
foi por solidariedade que as mulheres da Fósforos Granada pararam, saíram para
a rua e seguiram em passeata até o Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco,
continuaram até a Cobrasma ocupada.
Lá
chegando, ocuparam de imediato postos de sustentação do movimento. Organizaram
uma enfermaria, trataram de botar a cozinha em ordem, ajudaram a solidificar a
infraestrutura da greve.
A
história da paralisação das químicas, de sua determinação solidária, foi
contada e recontada na manhã de hoje em Osasco, em caminhada que relembrou a
Grande Greve de 1968. Foi a 36ª etapa da CORRIDA POR MANOEL, que contou com o
apoio, a presença e a organização dos Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco.
Já
com sol forte, nossa turma se reuniu no local onde, há 50 anos, funcionava a
Lonaflex, a segunda grande fábrica a parar na greve de 68. Hoje é um enorme
shopping, mas o grande espaço aberto não impediu que grevistas da época
revivessem aquelas momentos dramáticos, emocionantes, assustadores e instigantes.
Jorge Nazareno, presidente do Sindcato dos Metalúrgicos de Osasco, comanda a caminhada da 36ª etapa da CORRIDA POR MANOEL |
Dos
mais profundos escaninhos de sua memória, um dos fundadores do Sindicato
contava como os trabalhadores se organizavam na época, como eram os prédios da
empresa.
Manoel
Dias do Nascimento, o Neto, mais tarde seria um dos quadros da Vanguarda
Popular Revolucionário, ajudando a organizar a infraestrutura do trabalho de
treinamento de guerrilha comandando pelo capitão Carlos Lamarca no Vale do
Ribeira. Preso, foi um dos libertados no sequestro do embaixador suíço, em
1970.
Isso
tudo foi depois. Agora, enquanto nos concentramos para a caminhada, Neto foca
em 68, lembra como todos se organizavam para passar por cima de eventuais
diferenças de visão política:
“O companheiro podia ser da Polop, do Partido
Comunista, do PC do B, mas, quando chegava dentro do sindicato, a palavra era:
‘Olha meu caro, a camisa aqui é do sindicato. A camisa aqui é dos
trabalhadores’”.
Blogueiro barbudo tietando Neto e Espinosa |
Foi com essa visão,
afirma, que conseguiram montar o movimento que desafiou a ditadura militar, que
colocou nas ruas a voz dos operários, que foi um precursor das grandes greves
do ABC paulista.
Movimentos
todos que deixaram grandes exemplos de luta e de lutadores, de mártires como Manoel
Fiel Filho, destacou Jorge Nazareno, o presidente do sindicato, que assumiu
também o comando de nossa jornada de hoje.
Com
faixas e cartazes, o grupo de cerca de 30 pessoas ocupou uma das faixas da
avenida dos Autonomistas e desceu para um mergulho na história das lutas
operárias.
Fizemos
breves paradas em frente aos locais onde funcionaram gigantes daquela época,
hoje não mais atuantes em Osasco, como a Asea Brown Bovery, que também faz
parte de minhas memórias como repórter.
Uma das primeiras reportagens de campo que fiz, trabalhando na revista de
informática “Dados & Ideias”, lá nos idos de 1984, incluiu uma visita à
ABB. A fabricante de turbinas para usinas elétricas era, na época, pioneira no
uso de CAD/CAM, desenho e manufatura auxiliados por computador.
Minhas
lembranças, porém, se esfarelam sob o sol forte. Há que prestar atenção nas
histórias que contam agora outros militantes dos idos de 1968.
Está
conosco ninguém menos que Antonio Roberto Espinosa, jornalista e professor
universitário que foi um dos comandantes da VPR e, mais tarde, da também
guerrilheira VAR-Palmares. Em 68, com 21 anos, estava cursando filosofia na USP
e ajudou a organizar a ocupação da Cobrasma.
“O
momento mais emocionante foi quando vi que a greve começava mesmo, que estava
dando certo. O apito tocou por volta das oito e meia, e os companheiros
ocuparam as guaritas, fecharam os portões, desligaram as máquinas.”
O
sonho da VPR era de que a greve fosse como uma faísca a incendiar o Brasil.
“Imaginávamos
que o Ministério do Trabalho levaria alguns dias para botar a polícia. Em
Contagem, em abril, eles tiveram uma tolerância de quase duas semanas, dez
dias. Nós contávamos com alguns dias.”
Com
aquele prazo, diz Espinosa, seria possível a expansão do movimento: “A gente
contava com uma ampliação para Guarulhos, com a adesão parcial de São Bernardo.
Depois, outras regiões, Cubatão, no Rio de Janeiro”.
Nada
disso aconteceu, mas a greve da Cobrasma recebeu o apoio dos trabalhadores das
outras empresas ao logno da avenida dos autonomistas, como a Braseixos e
Barreto Keller.
Na
Lonaflex, tomada pelos operários, ninguém entrava nem saía; um dos patrões
fugiu pulando o muro da firma.
Outro, segundo nos contou Neto, pediu licença
para sair à tarde, para buscar o filho na escola. Prometeu que voltaria e
cumpriu sua promessa.
No
final da tarde do dia 16, porém, a situação começou a mudar.
Diferentemente do
esperado pelos organizadores do movimento, a repressão resolveu agir. Foram
mandados soldados da Força Pública, cavalarianos, para invadir a Cobrasma e
expulsar de lá os grevistas.
Em
frente ao prédio onde funcionou a empresa, já com mais de três quilômetros de
caminhada na nossa jornada de hoje, Espinosa lembra aquele momento, nos conta o
histórico discurso de Zequinha Barreto aos militares chamados para o ataque.
Barreto
era baiano de Brotas de Macaúbas. Em 1964, aos 18 anos, deixou o seminário e veio
para São Paulo fazer o serviço militar. Serviu em Quitaúna, mesmo quartel em que
atuou Carlos Lamarca, com quem iria morrer em 17 de setembro de 1971.
Zequinha,
diz Espinosa, não tinha nada de diminutivo. “Quem ia chamar de Zequinha aquela
baiano enorme, maior que eu, que andava por aí de chinelo de dedo? Para nós,
ele era o Barretão.”
Quando
a polícia chegou, deu-se o impasse. Ataca, não ataca, vai ter morte, operários
se preparam para o choque, outros temem o pior, a soldadesca também não sabe o
que fazer...
Zequinha,
de figura grandiosa por natureza, torna-se ainda maior ao subir em um dos
portões da fábrica, olhando de frente para a cavalaria e soltando o berro: “Atenção,
soldados!”
Começou o que entraria para a história do movimento grevista brasileiro com um dos
mais emocionantes pronunciamentos de uma liderança operária. Não há registro
palavra por palavra, então vale a memória de quem estava lá, como Espinosa, que
hoje estava conosco na CORRIDA POR MANOEL.
“Zequinha
conclamou os soldados a abaixarem suas armas, que eles não poderiam sujar as
mãos com o sangue de seus irmãos, que se rebelassem. Disse que ali na empresa
havia pais, avôs dos próprios soldados, que lutavam por salários dignos, que o
movimento era de todos os brasileiros...”
A
palavra feriu mais fundo que a baioneta, os soldados pareceram baqueados,
talvez tenha até havido um movimento de insegurança –o que fazemos agora--, mas
a hierarquia e a disciplina falaram mais alto.
Zequinha
tratou então de colocar em ação movimento protelatório. Segundo a lembrança de
Espinosa, levava no bolso algo que poderia parecer uma granada –talvez fosse
mesmo. O temor de um contra-ataque violento fez com que a invasão não ocorresse
de imediato, dando tempo para que a maior parte dos operários fugisse antes da
entrada dos soldados na Cobrasma.
O
livro “Zequinha Barreto: A Trajetória de Um Revolucionário”, citado pela Comissão
da Verdade do Estado de São Paulo, diz o seguinte sobre aquele episódio:
“Barreto
viu que a situação ia ficar incontrolável e precisava tentar impedir que os
soldados avançassem para reprimi-los. Acendeu uma tocha, correu para perto do
depósito de gasolina e gritou: “Ou vocês param, ou vai todo mundo pro
inferno!”. Com essa intervenção, ele favoreceu a fuga dos grevistas. Zequinha,
muito solidário, foi ajudar os seus companheiros a pular o muro. Saiu quase por
último e terminou surpreendido pelos soldados, que o levaram preso.”
Aquele
foi o início de uma onda de prisões e enfrentamentos com a repressão. O sindicato
foi ocupado pela polícia e retomado pelos trabalhadores. Um “aparelho” da VPR
onde eram produzidos jornais e folhetos de propaganda do movimento foi
estourado pela ditadura, e o trabalho teve de ser transferido para a zona oeste
de São Paulo.
Nas
ruas, aconteciam grandes assembleias. Em uma delas, dois oficiais do Exército
que monitoravam clandestinamente a situação foram descobertos, desarmados e
expulsos abaixo de socos e pontapés.
Esse,
aliás, poderia ter sido também o fim do capitão Lamarca, caso tivesse sido
descoberto pelos grevistas. Durante a greve, ele circulou pela cidade na mesma
Kombi que depois usou para sair do quartel de Quitaúna levando um carregamento
de fuzis. Pretendia prestar ajuda a algum ferido, mas poderia ter se dado mal,
avalia Espinosa.
Depois de três dias, a greve de Osasco foi
sufocada. Apesar de derrotado o movimento, os operários não perderam –nos meses
seguintes, diz Espinosa, boa parte das fábricas acabou cedendo aumento e dando
algumas melhorias na situação funcional.
O
mais forte, mesmo, foi a herança política, na avaliação do então presidente do
sindicato, José Ibrahim, que morreu em 2013. Falando na cerimônia que celebrou
os 40 anos da greve, em 2008, ele afirmou:
“Se
não houvesse Osasco de 1968, não haveria o ABC de 78. Sinalizamos um caminho
que o movimento sindical tinha que brigar pela resistência contra a ditadura,
pela democracia. Esse foi o grande legado. Tanto é que durante todo o período
da resistência a grande referência era a greve de Osasco. Hoje, para muita gente
dentro do movimento sindical, a greve de Osasco é o grande marco.”
Um entendimento que também está presente nas palavras de
Jorge Nazareno, que falou no encerramento de nossa jornada de hoje, em frente à Meritor, uma das poucas metalúrgicas que sobrevivem no entorno da avenida dos
Autonomistas:
“Essa caminhada, relembrando a Greve de 1968, serve muito
para o momento atual. Ela é muito oportuna para a gente saber que os desafios
de 68 não terminaram ainda.”
E prosseguiu: “Nós temos de continuar firmes, perseverantes
na luta pelos direitos dos trabalhadores, pelas conquistas sociais. Esse é um
desafio de todos nós e implica que devemos todos ter participação na luta em
defesa da democracia”.
CORRIDA POR MANOEL – 36ª etapa
Destino – Circuito da greve de 1968 em Osasco, 5,61 km
realizados em 2h49
Distância percorrida até agora: 377,67 km
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