Às oito horas da manhã de hoje, enquanto o
ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva estava sendo ouvido pela Polícia
Federal na delegacia do aeroporto de Congonhas (zona sul de São Paulo), eu me
encontrei com o ex-preso político Maurice Politi para mais uma jornada da
CORRIDA POR MANOEL.
Estava com minha mulher, Eleonora, e minha
filha mais velha, Laura, que vêm trabalhando comigo nesse projeto.
Na entrada de
um prédio da avenida Brigadeiro Luiz Antonio, quase na esquina com a Paulista,
nós nos encontramos com Politi, que nasceu no Egito e é mais brasileiro do que
muita gente que anda por aí enrolada em bandeira verde-amarela.
Com ele chegou a
jovem historiadora Ana Paula Brito, diretora do Núcleo Memória, organização
criada por ex-presos políticos para manter viva a memória das lutas travadas
durante o período da ditadura militar.
Todos nós estávamos ainda sem saber o que
acontecia em São Paulo. As notícias da manhã era de que Lula havia sido levado
pela Polícia Federal; até aquela hora, não havia muito ais informação.
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Politi, Eleonora e Laura |
Mal sabia eu que nosso mergulho na história
das perseguições políticas ocorridas durante a ditadura se encontraria com a
história quente, vivida hoje mesmo, de perseguições a líderes do movimento dos
trabalhadores.
Nosso destino era o prédio onde, durante a
ditadura, funcionou a Auditoria Militar –de fato, as auditorias militares, pois
havia uma do Exército, outra da Marinha, outra da Aeronáutica. A do Exército
era mais ativa.
A auditoria funcionava como juizado, era ali
que aconteciam os julgamentos dos presos políticos –quando os presos não eram
mortos sob tortura, como aconteceu com tantos, do operário Manoel ao jornalista
Vladimir, do sindicalista Virgílio ao tenente Piracaia.
“O Casarão Amarelo em estilo eclético foi
adquirido em 1938 pelo Exército para abrigar a Auditoria da Justiça Militar,
órgão responsável pelos julgamentos dos inquéritos militares. Com o golpe de
1964 e a perseguição a civis considerados “inimigos do Estado”, o local passou
a funcionar como elemento chave da propaganda de “justiça” na ditadura”, ensina
texto produzido pelo Memorial da Resistência.
O texto coloca a palavra “justiça” entre
aspas porque o que ocorria lá era mesmo uma farsa, um arremedo de processo.
Vários dos juízes militares tinham sido torturadores, como declarou o ex-preso
político Ismael de Souza em entrevista ao Programa Coleta Regular de
Testemunhos do Memorial da Resistência.
“Naquela farsa de montar o interrogatório já
em Tribunal [...] tinha cinco conselheiros que iam julgar a gente,
que eram todos oficiais do Exército, major, capitão, coronel que faziam
parte do conselho de Auditoria. [...] o sargento Roberto, que era
escrivão na Auditória, foi torturador, me torturou me pendurou de cabeça
para baixo lá [...] [referindo se ao DOI-Codi]. [...] O capitão
Danilo foi fazer parte também do Conselho, lá da 2ª Auditoria
Militar [...]. Veja bem, ele era um torturador, interrogador aqui no DOPS,
veio fazer parte do Conselho também, pra nos julgar, lá 2ª
Auditoria.”
Nestes nossos dias de hoje, o prédio das
farsas jurídicas será transformado em Memorial da Luta Pela Justiça, um projeto
da Ordem dos Advogados do Brasil e do Núcleo Memória –Maurice Politi é um dos
participantes do trabalho.
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Laura, Ana Paula, eu e Politi; ao fundo, o prédio que abrigou as auditorias militares - Foto Eleonora de Lucena |
Foi lá que terminou nossa jornada de hoje. E
Maurice contou um pouco das experiências que viveu no prédio.
“Quando fui julgado aqui eu tinha 23 anos e
já estava preso havia dois anos. Quer dizer: você só era julgado depois de dois
anos de prisão. Para mostrar o ridículo da coisa.
“Eu estava incluído em um artigo de Lei de
Segurança Nacional que daria de dois a quatro anos de prisão.
“Meu advogado garantiu para minha família,
que na época estava todo o dia aí, garantiu que, se eu fosse condenado à pena
mínima, sairia da auditoria para a rua, livre. Se fosse condenado a uma pena
maior que dois anos, voltaria para o presídio, entraríamos com pedido de
livramento condicional e eu sairia depois de uns 15 dias.
“Então imagine a euforia da família, que veio
ver o julgamento pensando que eu sairia.
“Eu fazia parte de um processo em que havia
mais de cem pessoas sendo julgadas, era o chamado Processão da ALN (Ação
Libertadora Nacional), porque tinha muita gente. Nós chegamos aqui de manhã, e
o julgamento só terminou à meia-noite. Ficamos o dia inteiro.
“E meu pai, minha mãe aqui –minha mãe já morreu.
Ela estava aí, firme, todas essas horas, esperando.
“Nós fomos julgados por um Conselho de
Guerra, como eles chamavam, e o Conselho de Guerra era formado por um juiz
togado, um juiz-juiz, um civil, que estudou para advogado, foi juiz, fez
concurso, e quatro militares, tenentes, capitães, que não tinham nada de
advogado, mas eles faziam parte do Conselho, eles que nos julgavam.
“Então eles decidiram mudar o artigo da lei
no qual eu estava incurso e puseram mais artigos. Com isso, minha sentença foi
de dez anos de prisão.
“Eu estava na frente, os réus ficavam na
frente, e atrás ficava a família, em bancos de madeira.
“Eu só lembro que, quando o cara falou dez
anos de prisão, anunciou minha sentença, eu virei para trás e eu vi minha mãe
desfalecer.
“Quando eu entrei aqui pela primeira vez
depois do julgamento, em 2013, vim com o Marcos da Costa, presidente da OAB de
São Paulo, com o pessoal da Superintedência do patrimônio da União e outras
autoridades. Nós fomos fazer o reconhecimento do prédio, eu fui, eu e mais duas
pessoas, como testemunhas, contando: aqui foi isso, aqui foi aquilo...
“Eu entrei nessa sala e eu vi minha mãe. E
ela morreu faz 15 anos. Eu vi ela. Eu entrei aqui há dois anos atrás e eu vi
esse momento. Esse episódio foi a recordação mais... Foi muito forte. Foi um
momento que me marcou, mais forte que no Dops e outros lugares em que eu
fiquei.”
Maurice se cala, como a lembrar aquele
momento. E volta a contar como funcionavam os julgamentos na Auditoria Militar.
“A chegada dos presos aqui era espalhafatosa,
principalmente quando eram muitos, como no meu processo.
“Quando eram duas ou três pessoas sendo
julgadas, eles traziam numa viatura policial, com sirene, tal, mas não tinha
muito alarde.
“Quando vinham muitos presos, homens e
mulheres juntos, vinham aqueles camburões, lá dentro cabem 20 ou 30 pessoas,
mais a polícia.
“As mulheres faziam questão de virem muito
bem arrumadas, muito bem vestidas. Porque eles fechavam a rua, não deixavam
ninguém passar. E aí juntava aquela população curiosa, que ia ver o que estava
acontecendo, todo o trânsito estava parado.
“A gente descia abaixo de uma guarda de
metralhadores, como se fôssemos... E aí a população começava a gritar: “Os terroristas,
os terroristas!” Por isso as mulheres iam sempre bem arrumadas, para mostrar
que eram gente como qualquer um. Não era um bicho...
“A gente ia lá para o fundo, havia uma
edícula onde a gente ficava até ser chamado para o julgamento. Até lá a gente
ia algemado. Na sala de julgamento, eles tiravam as algemas e aí a pessoa era
julgada.”
Mesmo depois do período do enfrentamento
armado contra a ditadura, o regime militar manteve a estrutura judicial de
fancaria, afirma Maurice Politi. Um dos muitos episódios que evidenciaram o
arremedo de justiça envolveu o ex-presidente Lula –na época, presidente do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.
Enquanto, no bar em que conversávamos,
noticiário da TV falava da ação da Polícia Federal contra Lula, Maurice Politi
contava outro caso de trapaça, tramoia, enganação ocorrido na Auditoria Militar.
“O Lula foi julgado aqui em 1982, se não me
engano, quando ele foi preso devido à greve do ABC, assim como vários outros
sindicalistas.
“Na época em que eu fui preso tinha mais
gente de luta armada. Mas, depois disso, quando arrefeceu a luta armada e
começou todo o movimento social, dos sindicalistas, muitos deles foram presos e
julgados aqui.
“E era uma farsa, era tudo uma farsa.
“Sentenças era feitas antes, como aconteceu
no caso do Lula. O Luiz Eduardo Greenghalg, que era um dos advogados do Lula,
conta que veio aqui quatro dias antes do julgamento do Lula e a sentença estava
sendo escrita, datilografada.”
O mesmo prédio que abrigou tanta enganação e
covardia também viu episódios de bravura indomável. Presos que não baixavam a
cabeça e fazia do tribunal militar palco de denúncias das atrocidades cometidas
pelos militares e pela polícia política.
Um deles foi o cabo Mariani, lembra Politi,
que esteve preso no Dops com o militar.
“O cabo José Mariani Ferreira era um cabo do
Exército que tinha saído do Exército junto com o Lamarca. Formaram um grupo de
soldados e sargentos que saíram do Exército para se afiliar a uma organização
revolucionária chamada VPR (Vanguarda Popular Revolucionária).
“Esses militares, quando eram presos, a
tortura sobre eles era muito maior. Os militares achando que eles eram
traidores da pátria. A tortura contra eles foi muito violenta, todos eles
apanharam muito. Teve um que enlouqueceu...
“O cabo Mariani era muito jovem e foi muito
torturado porque eles queriam que ele dissesse onde estava Lamarca. Ele não
sabia.
“Na Operação Bandeirantes, fizeram um tipo de
tortura com ele que poucos casos ocorreram no Brasil de torturas similares.
“Simplesmente pegaram ele nu, pegaram os órgãos
genitais dele, puseram numa gaveta e fecharam a gaveta. Com isso, os testículos
dele se arrebentaram. Com isso ele ficou impotente.
“Você imagina: um rapaz de vinte e poucos
anos não tinha mais ereção. Ele percebeu isso logo em seguida. Na época da prisão
ele falava nisso.
“Ele veio aqui, na Auditoria Militar, no dia
do julgamento, e denunciou isso. Falou: “Eu fui torturado e eu fui torturado
dessa forma: puseram meus testículos numa gaveta, fecharam a gaveta, com golpes”.
“Os militares que estavam julgando e o próprio
juiz ficaram tão surpresos com essa notícia que reagiram: “O senhor está
mentindo. O Exército não faz isso. Nós não fazemos isso. O senhor está
mentindo. Isso é mentira!”.
“E ele me contou, contou a mim, que ali o
juiz Nélson da Silva Machado Guimarães, que era um famigerado juiz da 2ª
Auditoria Militar, diante dessa polêmica entre os militares e o juiz, falou: “Suspenda-se
o julgamento! Leve-se o réu para que reflita sobre o que vai falar”.
“Então levaram ele o cabo Mariani para essa
edícula onde a gente ficava e lá ele apanhou. Esse foi um dos casos de tortura
que aconteceram nesse lugar.”
O ex-juiz, em depoimento à Comissão Nacional
da Verdade, afirmou que sabia das torturas, mas que não encaminhava as
denúncias recebidas “porque não ia dar em nada”.
Além disso, havia uma razão ideológica,
política, para não fazer o encaminhamento, segundo ele disse à CNV: “encaminhar
as denúncias, conforme ele disse à CNV em 2014: “Pedi várias vezes [a apuração
das denúncias de tortura], em outras ocasiões era inútil e iria favorecer os
guerrilheiros treinados fora do Brasil para fazerem aqui a guerra psicológica.
Eram denúncias de tortura e de morte também. Na guerra se mata e se tortura dos
dois lados. A estupidez de um extremismo acaba gerando, naquele que deveria se
opor a essa estupidez de maneira legal, um outro tipo de estupidez. Isso é
história”.
Pois para manter a história viva, o Núcleo
Memória tratou de reivindicar ao governo federal a preservação do prédio, para que
ele fosse convertido em sítio de consciência.
Em 2013, a Superintendência do Patrimônio da
União em São Paulo repassou a cessão do prédio para a Ordem dos Advogados, que
em parceria com o Núcleo Memória irão administrar o Memorial da Luta
“Nós achamos que faz parte da história do
povo brasileiro, esses prédios fazem parte de nossa história. A gente precisa
preservar para saber o que ocorreu”, diz Politi.
Ele continua: “O que aconteceu na época da
ditadura, nos 21 anos de ditadura, está expresso em prédios simbólicos, como os
do Dops, do DOI-Codi, em todos os Estados, não só em São Paulo. São prédios em
que ocorreram torturas, mortes, desaparecimentos, violações dos mais
elementares direitos humanos, humilhações. Isso tem de ser conhecido,
principalmente pela juventude. A juventude tem de saber o que ocorreu, porque
nos livros de história não diz nada sobre isso”.
Trata-se de, como diz o slogan do Núcleo
Memória, de “conhecer
o passado, entender o presente, construir o futuro”.
CORRIDA POR MANOEL – 15º dia
Destino: prédio em que funcionaram
as auditorias militares durante a ditadura militar, percurso de 1,26 km
realizado em 20min21
Distância total acumulada: 136,21 km
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