4.3.16

Sentença contra Lula estava escrita antes do julgamento na Auditoria

Às oito horas da manhã de hoje, enquanto o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva estava sendo ouvido pela Polícia Federal na delegacia do aeroporto de Congonhas (zona sul de São Paulo), eu me encontrei com o ex-preso político Maurice Politi para mais uma jornada da CORRIDA POR MANOEL.

Estava com minha mulher, Eleonora, e minha filha mais velha, Laura, que vêm trabalhando comigo nesse projeto.

Na entrada de um prédio da avenida Brigadeiro Luiz Antonio, quase na esquina com a Paulista, nós nos encontramos com Politi, que nasceu no Egito e é mais brasileiro do que muita gente que anda por aí enrolada em bandeira verde-amarela. 

Com ele chegou a jovem historiadora Ana Paula Brito, diretora do Núcleo Memória, organização criada por ex-presos políticos para manter viva a memória das lutas travadas durante o período da ditadura militar.

Todos nós estávamos ainda sem saber o que acontecia em São Paulo. As notícias da manhã era de que Lula havia sido levado pela Polícia Federal; até aquela hora, não havia muito ais informação.

Politi, Eleonora e Laura

Mal sabia eu que nosso mergulho na história das perseguições políticas ocorridas durante a ditadura se encontraria com a história quente, vivida hoje mesmo, de perseguições a líderes do movimento dos trabalhadores.

Nosso destino era o prédio onde, durante a ditadura, funcionou a Auditoria Militar –de fato, as auditorias militares, pois havia uma do Exército, outra da Marinha, outra da Aeronáutica. A do Exército era mais ativa.

A auditoria funcionava como juizado, era ali que aconteciam os julgamentos dos presos políticos –quando os presos não eram mortos sob tortura, como aconteceu com tantos, do operário Manoel ao jornalista Vladimir, do sindicalista Virgílio ao tenente Piracaia.

“O Casarão Amarelo em estilo eclético foi adquirido em 1938 pelo Exército para abrigar a Auditoria da Justiça Militar, órgão responsável pelos julgamentos dos inquéritos militares. Com o golpe de 1964 e a perseguição a civis considerados “inimigos do Estado”, o local passou a funcionar como elemento chave da propaganda de “justiça” na ditadura”, ensina texto produzido pelo Memorial da Resistência.

O texto coloca a palavra “justiça” entre aspas porque o que ocorria lá era mesmo uma farsa, um arremedo de processo. Vários dos juízes militares tinham sido torturadores, como declarou o ex-preso político Ismael de Souza em entrevista ao Programa Coleta Regular de Testemunhos do Memorial da Resistência.

“Naquela farsa de montar o interrogatório já em Tribunal [...] tinha cinco conselheiros que iam julgar a gente, que eram todos oficiais do Exército, major, capitão, coronel que faziam parte do conselho de Auditoria. [...] o sargento Roberto, que era escrivão na Auditória, foi torturador, me torturou me pendurou de cabeça para baixo lá [...] [referindo se ao DOI-Codi]. [...] O capitão Danilo foi fazer parte também do Conselho, lá da 2ª Auditoria Militar [...]. Veja bem, ele era um torturador, interrogador aqui no DOPS, veio fazer parte do Conselho também, pra nos julgar, lá 2ª Auditoria.”

Nestes nossos dias de hoje, o prédio das farsas jurídicas será transformado em Memorial da Luta Pela Justiça, um projeto da Ordem dos Advogados do Brasil e do Núcleo Memória –Maurice Politi é um dos participantes do trabalho.

Laura, Ana Paula, eu e Politi; ao fundo, o prédio que abrigou as auditorias militares - Foto Eleonora de Lucena

Foi lá que terminou nossa jornada de hoje. E Maurice contou um pouco das experiências que viveu no prédio.

“Quando fui julgado aqui eu tinha 23 anos e já estava preso havia dois anos. Quer dizer: você só era julgado depois de dois anos de prisão. Para mostrar o ridículo da coisa.

“Eu estava incluído em um artigo de Lei de Segurança Nacional que daria de dois a quatro anos de prisão.

“Meu advogado garantiu para minha família, que na época estava todo o dia aí, garantiu que, se eu fosse condenado à pena mínima, sairia da auditoria para a rua, livre. Se fosse condenado a uma pena maior que dois anos, voltaria para o presídio, entraríamos com pedido de livramento condicional e eu sairia depois de uns 15 dias.

“Então imagine a euforia da família, que veio ver o julgamento  pensando que eu sairia.

“Eu fazia parte de um processo em que havia mais de cem pessoas sendo julgadas, era o chamado Processão da ALN (Ação Libertadora Nacional), porque tinha muita gente. Nós chegamos aqui de manhã, e o julgamento só terminou à meia-noite. Ficamos o dia inteiro.


“E meu pai, minha mãe aqui –minha mãe já morreu. Ela estava aí, firme, todas essas horas, esperando.

“Nós fomos julgados por um Conselho de Guerra, como eles chamavam, e o Conselho de Guerra era formado por um juiz togado, um juiz-juiz, um civil, que estudou para advogado, foi juiz, fez concurso, e quatro militares, tenentes, capitães, que não tinham nada de advogado, mas eles faziam parte do Conselho, eles que nos julgavam.

“Então eles decidiram mudar o artigo da lei no qual eu estava incurso e puseram mais artigos. Com isso, minha sentença foi de dez anos de prisão.

“Eu estava na frente, os réus ficavam na frente, e atrás ficava a família, em bancos de madeira.

“Eu só lembro que, quando o cara falou dez anos de prisão, anunciou minha sentença, eu virei para trás e eu vi minha mãe desfalecer.

“Quando eu entrei aqui pela primeira vez depois do julgamento, em 2013, vim com o Marcos da Costa, presidente da OAB de São Paulo, com o pessoal da Superintedência do patrimônio da União e outras autoridades. Nós fomos fazer o reconhecimento do prédio, eu fui, eu e mais duas pessoas, como testemunhas, contando: aqui foi isso, aqui foi aquilo...

“Eu entrei nessa sala e eu vi minha mãe. E ela morreu faz 15 anos. Eu vi ela. Eu entrei aqui há dois anos atrás e eu vi esse momento. Esse episódio foi a recordação mais... Foi muito forte. Foi um momento que me marcou, mais forte que no Dops e outros lugares em que eu fiquei.”

Maurice se cala, como a lembrar aquele momento. E volta a contar como funcionavam os julgamentos na Auditoria Militar.

“A chegada dos presos aqui era espalhafatosa, principalmente quando eram muitos, como no meu processo.

“Quando eram duas ou três pessoas sendo julgadas, eles traziam numa viatura policial, com sirene, tal, mas não tinha muito alarde.

“Quando vinham muitos presos, homens e mulheres juntos, vinham aqueles camburões, lá dentro cabem 20 ou 30 pessoas, mais a polícia.

“As mulheres faziam questão de virem muito bem arrumadas, muito bem vestidas. Porque eles fechavam a rua, não deixavam ninguém passar. E aí juntava aquela população curiosa, que ia ver o que estava acontecendo, todo o trânsito estava parado.

“A gente descia abaixo de uma guarda de metralhadores, como se fôssemos... E aí a população começava a gritar: “Os terroristas, os terroristas!” Por isso as mulheres iam sempre bem arrumadas, para mostrar que eram gente como qualquer um. Não era um bicho...

“A gente ia lá para o fundo, havia uma edícula onde a gente ficava até ser chamado para o julgamento. Até lá a gente ia algemado. Na sala de julgamento, eles tiravam as algemas e aí a pessoa era julgada.”

Mesmo depois do período do enfrentamento armado contra a ditadura, o regime militar manteve a estrutura judicial de fancaria, afirma Maurice Politi. Um dos muitos episódios que evidenciaram o arremedo de justiça envolveu o ex-presidente Lula –na época, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.

Enquanto, no bar em que conversávamos, noticiário da TV falava da ação da Polícia Federal contra Lula, Maurice Politi contava outro caso de trapaça, tramoia, enganação ocorrido na Auditoria Militar.

“O Lula foi julgado aqui em 1982, se não me engano, quando ele foi preso devido à greve do ABC, assim como vários outros sindicalistas.

“Na época em que eu fui preso tinha mais gente de luta armada. Mas, depois disso, quando arrefeceu a luta armada e começou todo o movimento social, dos sindicalistas, muitos deles foram presos e julgados aqui.

“E era uma farsa, era tudo uma farsa.

“Sentenças era feitas antes, como aconteceu no caso do Lula. O Luiz Eduardo Greenghalg, que era um dos advogados do Lula, conta que veio aqui quatro dias antes do julgamento do Lula e a sentença estava sendo escrita, datilografada.”

O mesmo prédio que abrigou tanta enganação e covardia também viu episódios de bravura indomável. Presos que não baixavam a cabeça e fazia do tribunal militar palco de denúncias das atrocidades cometidas pelos militares e pela polícia política.

Um deles foi o cabo Mariani, lembra Politi, que esteve preso no Dops com o militar.

“O cabo José Mariani Ferreira era um cabo do Exército que tinha saído do Exército junto com o Lamarca. Formaram um grupo de soldados e sargentos que saíram do Exército para se afiliar a uma organização revolucionária chamada VPR (Vanguarda Popular Revolucionária).

“Esses militares, quando eram presos, a tortura sobre eles era muito maior. Os militares achando que eles eram traidores da pátria. A tortura contra eles foi muito violenta, todos eles apanharam muito. Teve um que enlouqueceu...

“O cabo Mariani era muito jovem e foi muito torturado porque eles queriam que ele dissesse onde estava Lamarca. Ele não sabia.

“Na Operação Bandeirantes, fizeram um tipo de tortura com ele que poucos casos ocorreram no Brasil de torturas similares.

“Simplesmente pegaram ele nu, pegaram os órgãos genitais dele, puseram numa gaveta e fecharam a gaveta. Com isso, os testículos dele se arrebentaram. Com isso ele ficou impotente.

“Você imagina: um rapaz de vinte e poucos anos não tinha mais ereção. Ele percebeu isso logo em seguida. Na época da prisão ele falava nisso.

“Ele veio aqui, na Auditoria Militar, no dia do julgamento, e denunciou isso. Falou: “Eu fui torturado e eu fui torturado dessa forma: puseram meus testículos numa gaveta, fecharam a gaveta, com golpes”.

“Os militares que estavam julgando e o próprio juiz ficaram tão surpresos com essa notícia que reagiram: “O senhor está mentindo. O Exército não faz isso. Nós não fazemos isso. O senhor está mentindo. Isso é mentira!”.

“E ele me contou, contou a mim, que ali o juiz Nélson da Silva Machado Guimarães, que era um famigerado juiz da 2ª Auditoria Militar, diante dessa polêmica entre os militares e o juiz, falou: “Suspenda-se o julgamento! Leve-se o réu para que reflita sobre o que vai falar”.

“Então levaram ele o cabo Mariani para essa edícula onde a gente ficava e lá ele apanhou. Esse foi um dos casos de tortura que aconteceram nesse lugar.”

O ex-juiz, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, afirmou que sabia das torturas, mas que não encaminhava as denúncias recebidas “porque não ia dar em nada”.

Além disso, havia uma razão ideológica, política, para não fazer o encaminhamento, segundo ele disse à CNV: “encaminhar as denúncias, conforme ele disse à CNV em 2014: “Pedi várias vezes [a apuração das denúncias de tortura], em outras ocasiões era inútil e iria favorecer os guerrilheiros treinados fora do Brasil para fazerem aqui a guerra psicológica. Eram denúncias de tortura e de morte também. Na guerra se mata e se tortura dos dois lados. A estupidez de um extremismo acaba gerando, naquele que deveria se opor a essa estupidez de maneira legal, um outro tipo de estupidez. Isso é história”.


Pois para manter a história viva, o Núcleo Memória tratou de reivindicar ao governo federal a preservação do prédio, para que ele fosse convertido em sítio de consciência.

Em 2013, a Superintendência do Patrimônio da União em São Paulo repassou a cessão do prédio para a Ordem dos Advogados, que em parceria com o Núcleo Memória irão administrar o Memorial da Luta

“Nós achamos que faz parte da história do povo brasileiro, esses prédios fazem parte de nossa história. A gente precisa preservar para saber o que ocorreu”, diz Politi.


Ele continua: “O que aconteceu na época da ditadura, nos 21 anos de ditadura, está expresso em prédios simbólicos, como os do Dops, do DOI-Codi, em todos os Estados, não só em São Paulo. São prédios em que ocorreram torturas, mortes, desaparecimentos, violações dos mais elementares direitos humanos, humilhações. Isso tem de ser conhecido, principalmente pela juventude. A juventude tem de saber o que ocorreu, porque nos livros de história não diz nada sobre isso”.

Trata-se de, como diz o slogan do Núcleo Memória, de “conhecer o passado, entender o presente, construir o futuro”.

CORRIDA POR MANOEL – 15º dia

Destino: prédio em que funcionaram as auditorias militares durante a ditadura militar, percurso de 1,26 km realizado em 20min21

Distância total acumulada: 136,21 km 

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