Maria
Sierra morreu de tristeza e dor. Não deixou herdeiros, não tinha marido.
Tivera.
Dona
Maria era viúva do tenente José Ferreira de Almeida, assassinado pela ditadura
militar em agosto de 1975 na mesma cela em que, dois meses depois, seria morto
o jornalista Vladimir Herzog. Como no caso Herzog, a versão oficial foi de que
o militar se enforcara com um cinto.
Na
última vez em que viu o marido com vida, no prédio do Dops de São Paulo, não
pode sequer abraçar o companheiro.
“Estou muito dolorido”, disse ele à mulher e
à sobrinha –filha aditiva, a bem dizer--, segundo registra reportagem de Paula
Sacchetta publicada em “O Estado de S. Paulo” em 2012.
Maria
e Nazareth, então com 28 anos, voltaram várias vezes ao prédio do Dops.
Esperavam por horas, até que alguém lhes mandava embora, dizendo que ele não
poderia receber visitas ou que não estava ali naquele dia –de fato, durante o
mês em que esteve preso, Almeida transitou entre as celas e as câmaras de
tortura do Dops, na região central de São Paulo, e do DOI-Codi, na zona sul.
“Piracaia”, como era conhecido o tenente
nascido naquela cidade do interior paulista, se entregou à polícia política no
dia 7 de julho de 1975.
Vinha
sendo procurado havia vários dias. Sua casa, na rua Ibirajá, zona sul de São Paulo,
tinha sido diversas vezes “visitada” por policiais. Finalmente um deles ameaçou
Nazareth, a sobrinha-filha adotiva de Almeida: “Ou ele se entrega ou levamos
você”.
Almeida,
então com 63 anos, decidiu se entregar.
Ele
era diretor de Clube de Oficiais da Reserva. Para a repressão, era um perigoso
membro do Partido Comunista Brasileiro. A família, porém, nega relações de
Piracaia com o PCB: “Só tinha ideia avançadas demais para o período”, disse
Nazareth à repórter Paula Sacchetta.
O
certo é que era um líder classista, defendia sua categoria e fazia
reivindicações em nome dos trabalhadores na Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Foi preso com outros militantes, soldados e oficiais da PM, acusados de
pertencerem ao PCB.
Reprodução de imagem publicada no portal Memórias da Ditadura |
No
seu livro “A Ditadura Encurralada”, o jornalista Elio Gaspari registra: “Descobrira-se
uma base do Partidão dentro da Polícia Militar paulista. Ela estivera invicta
desde sua montagem, em 1946. Funcionava sob as rígidas normas de segurança do
Setor Militar, ligando-se diretamente a um representante pessoal do
secretário-geral do PC. Segundo o CIE, conseguira infiltrar um sargento no DOI
por dois anos. Na sua liquidação, prenderam-se 63 policiais. Entre eles, nove
oficiais da ativa, inclusive um tenente-coronel, e doze da reserva”.
O
tenente Almeida sobreviveu às torturas durante um mês.
A
farsa montada pela ditadura, atribuindo sua morte a suicídio, foi desmascarada
quase imediatamente. Durante o velório, apesar da proibição imposta pela
autoridades da repressão, familiares abriram o caixão, constatando marcas de
tortura no corpo.
Logo
em seguida, militantes de resistência à ditadura distribuíram panfletos
denunciando o caso. Um deles ficou nos arquivos do Dops e vai aqui reproduzido na
íntegra:
“Faleceu no dia 07 do
corrente nas dependências do DOI, segundo consta, em hora incerta, o 2º Tenente
José Ferreira de
Almeida, da Polícia Militar, Diretor do Clube dos Inativos e do centro dos
oficiais da reserva da P.M. Casado com 63 anos de idade, havia sido preso no
dia 07 de julho p.p. e encaminhado
para o DOI. Dalí foi removido para o DOPS e novamente voltou ao DOI. Sua esposa
pôde vê-lo uma única vez, quando da quebra da incomunicabilidade. Havia sido
espancado, submetido a choques elétricos, socos e pontapés. Tiraram-lhe também
os dentes da frente (uma pequena ponte móvel) prometendo-lhe que a mesma só lhe
seria devolvida quando estiver morto. Sua casa foi vasculhada. José Ferreira de Almeida sofria de úlcera
duodenal e necessitava de tratamento médico. Em virtude das torturas a que foi
submetido e considerando o seu estado de saúde e a sua idade este soldado
MORRE.
“Sua morte, decretada pela repressão reinante no
País é justificada perante a família como o caso
de um suicídio por estrangulamento ou asfixia. Com a frieza de ditadores que
detêm o poder sobre a vida humana, um militar comunica a notícia à família,
“por ordem superior”. Nenhuma noticia se tem sobre o suspeito “suicídio”. Testa
a necropsia não se evidenciaram sinais no pescoço. A morte de José Ferreira de Almeida inaugura uma nova
forma de assassinato sem qualquer prurido frente à opinião pública e ao mundo
dos homens livres. A repressão assume essa morte no território de outras tantas
mortes - a Oban (DOI-Codi). Já não há mais preocupação em forjá-las nas
ruas sob a forma de eventuais acidentes.
“Na
medida em que em nosso País tais fatos se sucedem e se acumulam de forma tão
acelerada é impossível a qualquer brasileiro menos avisado acreditar nas
promessas de distensão política, de busca de desenvolvimento pacífico e de
redemocratização para a família brasileira. Não há falas presidenciais nem
discursos ministeriais que possam encobrir a ditadura vigente. Ela está presente
na cidade e no campo, penetra na nossa casa, amordaça nossas bocas, algema
nossas mãos, tira nossas vidas.
“Para
os brasileiros conscientes que lutam pelos Direitos Humanos e pelas liberdades
Políticas o nome de José Ferreira de Almeida entra para a História como um
combatente que COMBATEU UM BOM COMBATE!.”
A morte de Piracaia foi analisada pela Comissã da
Verdade do Estado de São Paulo, que concluiu: “Diante
das circunstâncias do caso e das investigações realizadas, pôde-se concluir que
a vítima foi executada por agentes do Estado brasileiro, restando desconstruída
a versão oficial de suicídio divulgada à época dos fatos”.
E recomendou: “Retificação do atestado de óbito, identificação e
responsabilização dos agentes envolvidos na prisão, tortura e morte de José
Ferreira de Almeida nas dependências do DOI-Codi/SP”.
A
cidade de São Paulo homenageia o tenente José Ferreira de Almeida com uma rua
na zona sul de São Paulo. Fui visitá-la hoje, na 16ª etapa da CORRIDA POR
MANOEL.
Trata-se,
de fato, de uma ruazinha, uma ruela, pouco mais do que uma viela de uns 120
metros de comprimento, sufocada entre duas outras vias.
A
maior parte de um dos lados da rua é tomada por um muro, que cerca condomínio
de vários prédios. Do outro lado, casas modestas, alguns sobrados.
No
asfalto, sobram algumas lembranças do início do século, marcas de desenhos
feitos provavelmente na época da Copa do Mundo de 2002 --há bandeiras do Brasil e do Japão que,
junto com a Coreia do Sul, sediou a competição daquele ano.
Na
única placa que identifica a rua, na esquina com a rua José Gervásio Artigas, a inscrição
está incompleta, não dá para saber que o homenageado era militar.
Numa linha,
sobra apenas uma letra “a”. Na segunda linha, parte da primeira palavra está
apagada; resta apenas: “te. José Ferreira de Almeida”.
É
pouco.
CORRIDA
POR MANOEL – 16ª etapa
Destino
do dia: Rua Tenente José Ferreira de Almeida, percurso de 16,62 km realizado em
2h13min37
Distância
total: 152,83 km
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