A preocupação com o momento que o Brasil vive, de incerteza
e intranquilidade, marcou a etapa de hoje da CORRIDA POR MANOEL, que começou em
frente ao monumento em homenagem aos mortos e desaparecidos políticos durante a
ditadura militar, no parque Ibirapuera.
“É importante resgatar a memória de Manoel Fiel Filho e dos companheiros
que tombaram na luta pela democracia, ainda mais neste momento em que ela se vê
outra vez ameaçada”, disse o Eduardo Suplicy, secretário municipal de Direitos
Humanos e Cidadania e convidado especial na jornada deste sábado.
De fato, o país assiste a cenas que lembram o que ocorria no
período da ditadura militar, vê fatos que parecem nascer em um regime de
exceção, não em uma democracia.
Na véspera de nossa corrida, por exemplo, uma manifestação
realizada na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de Diadema foi invadida por
soldados da Polícia Militar armados até com metralhadoras.
De acordo com o deputado estadual Luiz Fernando (PT), que estava
no local, dois policiais armados invadiram o sindicato, enquanto outros
policiais e viaturas esperavam do lado de fora do prédio.
"Teve um grande tumulto. Eles não tinham mandado e
também não souberam explicar os motivos de estarem lá. Foi claramente um ato de
tentar intimar a militância", disse ele à reportagem da “Folha de S. Paulo”.
Havia cerca de 2.000 pessoas no ato de solidariedade ao ex-prefeito de Diadema,
José Filippi Júnior, e ao ex-presidente Lula, ambos conduzidos a prestar
depoimentos durante a 24ª fase da Operação Lava Jato.
Na manhã de hoje, não houve polícia nem violência. Éramos
cerca de uma dezena de corredores, desde
jovens que se sensibilizam pela recuperação da memória brasileira até gente
veterana.
Foto Ayrton Vignola Jr. |
Vários do grupo nem conheciam o monumento, que foi instalado em 2014 pela
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania e estampa os nomes de 436 mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura.
O psiquiatra Pedro Braga, um dos
participantes da corrida de hoje, emocionou-se ao ver ali o nome de um primo,
Zoé Lucas de Britto Filho, e de um contemporâneo de escola, Emmanuel Bezerra
dos Santos.
“Meu primo fazia movimento estudantil. Foi morto aqui em São Paulo nos
anos de chumbo”, disse Braga.
Com o grito de paz “Para que não se esqueça e nunca
mais aconteça”, largamos. Saímos para uma volta
no parque Ibirapuera, um dos mais belos recantos da cidade.
Com projeto criado por Oscar
Niemeyer mais os arquitetos Ulhôa Cavalcanti, Zenon Lotufo, Eduardo Kneese de
Mello, Ícaro de Castro Mello e o paisagista Augusto Teixeira Mendes, o parque
foi inaugurado em 21 de agosto de 1954 durante as comemorações do 4º Centenário
de São Paulo.
O parque tem cerca de 500 espécies
de plantas, de árvores gigantes a vegetais rasteiros. Tem bicho às pampas –são 218
espécies cadastradas, de borboletas a morcegos, de cágados e cobras a sabiás e
papagaios.
Tem 1,6 milhão de metros
quadrados, mas o que interessa, para os corredores, são as trilhas, ruas e
caminhos que nos servem de rota de treino e disputa.
Fotos Eleonora de Lucena |
Os percursos mais
conhecidos são a “volta de seis” ou “da cerca”, que acompanha o perímetro do
parque e tem a maior parte do trajeto em chão batido, e a “volta de três”, toda
no asfalto, mais no coração do parque.
Fizemos hoje uma variante do
percurso interno, conversando enquanto seguíamos pelos caminhos sombreados.
Alguns corredores ou passantes lançaram palavras de provocação ao senador
Suplicy, outros vinham cumprimentá-lo.
Faz parte da vida política e da luta democrática, ainda que
algumas manifestações tivessem o ranço fedido e virulento dos tempos da
ditadura.
Foi durante a ditadura militar, por sinal, que Suplicy, hoje
com 74 anos, ingressou na vida política parlamentar.
Em 1976, quando morreu Manoel Fiel Filho, o eterno senador
de São Paulo já era um economista reconhecido, professor universitário e
articulista da “Folha” –antes, fora editor de economia da revista especializada
“Visão”.
“Eu estava muito ligado à importância de nós
garantirmos as liberdades democráticas, a liberdade de imprensa, que estava
sendo objeto de restrições, como naquele episódio em que houve a morte de
Vladimir Herzog. Ele foi morto por tortura. Eu me lembro muito bem da notável
mobilização que começou a acontecer”, me disse Suplicy em um entrevista que
fizemos dias antes de nossa CORRIDA POR MANOEL.
Ele segue: “Três meses após a morte de
Vladimir Herzog houve a morte deste trabalhador metalúrgico que pelo fato de
ser uma assinante, leitor, de um jornal do Partido Comunista, resolveu ser
perseguido e levado ao DOI-CODI, e lá torturado, e infelizmente faleceu. Isto
causou novo impacto em todos nós que queríamos muito assegurar o direito à
liberdade de pensamento, à liberdade de imprensa, liberdade de associação, de
formação de partidos, de tudo aquilo que acabou resultando. Esses episódios
foram fazendo com que a consciência nossa, pelas liberdades democráticas, fosse
aumentando. Eu, por exemplo, em 1976, participei com diversos amigos,
voluntariamente, da campanha para eleger um jovem, Flávio Flores da Cunha, para
vereador pelo MDB [Movimento Democrático Brasileiro]”.
Fazia política, mas não deixava de cuidar da boa forma.
Gostava de praticar boxe, esporte que aprendeu a praticar ainda menino –“Com
dez, 11, 12 anos, eu fui campeão de boxe na minha categoria”, lembra ele em
nossa conversa.
Corria só para garantir a movimentação no ringue. Em 1988,
quando se elegeu o vereador mais votado de São Paulo, concorrendo pelo PT,
festejou a passagem do ano correndo a São Silvestre.
Já lá se vão quase 30 anos. De qualquer forma, Suplicy se
garantiu bem na volta que fizemos no Ibirapuera –quem sabe, com um pouco mais
de treino, ele se anime a enfrentar novamente a São Silvestre.
No caminho, fizemos uma parada estratégica para beber uma
água de coco. Não foi apenas um momento de descanso, mas também de mergulho em
outra história de lutas, a da construção da Cooperativa dos Vendedores Autônomos
do Parque Ibirapuera.
Paramos no carrinho de dona Antonia Celeide de Oliveira, cearense
de 51 anos, presidenta da entidade, que reúne 115 associados. Ela nos contou
como a união e a organização dos ambulantes mudou a vida de cada um, de seus filhos
e netos.
Foto Rodolfo Lucena |
“Hoje a gente é respeitada, antes não era”, disse Antonia. “Muitas
pessoas não acreditavam, porque ambulantes ou marreteiros são discriminados. Mas
nós acreditávamos”.
Foi uma parada longa, mais de dez minutos. Parava gente para
ouvir Suplicy e dona Antonia, para cumprimentar. Um ou outro, depois de passar, gritava, às
escondidas, “Fora PT”. Para um deles, Suplicy
respondeu: “O PT vai continuar, amigo”.
A quem perguntasse na boa, porém, ele respondia que nossa
corrida ali era suprapartidária, uma manifestação em defesa dos direitos
humanos, uma homenagem a quem lutou pela democracia no Brasil.
E assim seguimos, de volta ao monumento que foi criado por
Ricardo Ohtake e está instalado próximo ao portão dez do parque.
Festejamos a conclusão do circuito, que acabou sendo um pouco
mais longo que o esperado –Suplicy vem treinando três quilômetros com a
regularidade possível. Depois de um brado de “Manoel Fiel Filho, presente!”,
saímos cada qual para cuidar da vida.
Eu fiquei mais um pouco, revendo os nomes gravados nas
folhas de aço. Ainda bem, porque logo chegava ali Rogério Sottili, secretário
especial de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e
dos Direitos Humanos.
Não conseguiu aparecer antes, mas fez questão de levar seu
apoio à CORRIDA POR MANOEL. E deu um breve depoimento, destacando o quão necessária
é a recuperação da memória das lutas democráticas em nosso país.
Eis a palavra de Sottili:
“Lembrar hoje os 40 anos da morte do Manoel Fiel Filho é
muito importante por vários motivos, porque nós estamos vivendo no Brasil um
momento muito difícil da história de nosso país.
“Ameaças importantes à democracia estão ocorrendo, ameaças
de redução de direitos conquistados com muita luta, com muito suor, com muito
sangue pelo povo brasileiro estão acontecendo quase que diariamente no Brasil,
com muitos movimentos de ódio, movimentos de ameaça, de saudosismo à ditadura
militar.
“Tudo isso acontece porque nós não elaboramos de forma
adequada todos os processos de violência na história do Brasil; entre eles, a
ditadura militar. Nós não elaboramos porque, ao invés de fazermos justiça, nós
fizemos homenagens aos torturadores, homenagens aos ditadores, como o viaduto
Costa e Silva, o viaduto 31 de Março, como várias avenidas e ruas da cidade de
São Paulo.
Ao homenagearmos essas figuras, nós sinalizamos para as populações
futuras que as pessoas podem cometer qualquer crime que serão impunes.
“Relembrar os 40 anos da morte de Fiel Filho significa a
gente sinalizar que nós ainda queremos justiça, para que nunca mais venham a
ocorrer ditaduras, mortes e torturas.
“É isso que estamos fazendo neste momento na história do
Brasil: é relembrar, mudar nomes de ruas, promover mudanças importantes para
que a gente possa, definitivamente, virar essa página da história e viver num
país com liberdade, com democracia e, fundamentalmente, com direitos humanos.”
CORRIDA POR MANOEL – 22ª etapa
Destino de hoje: Monumento em Homenagem aos Mortos e
Desaparecidos Políticos na Ditadura Militar, percurso de 3,36 km realizado em 29min30.
Distância percorrida até agora: 217,02 km
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