Conheci Luiz
Carlos Prestes. Não que eu tenha sido amigo do Cavaleiro da Esperança nem que
eu tenha participado da heroica peregrinação patriótica da coluna por ele
comandada. Mas o conheci, assim, de carne e osso, ao vivo e em cores.
Era baixinho
e atarracado, menor do que eu o imaginava. Também, faltavam poucos dias para
seu aniversário de 82 anos, muitas décadas de luta e de padecimento –jornadas em
terreno adverso, tortura, prisão, exílio.
Depois de
anos abrigado e protegido na então União Soviética, Prestes voltara ao Brasil em
outubro de 1979, dois meses depois de promulgada a anistia.
E voltara
fazendo barulho, desafinando o coro dos contentes, chamando o povo para a
briga, criando marola e fazendo onda, chacoalhando as estruturas de seu Partido
Comunista Brasileiro.
Galvanizou a
atenção da militância mais jovem e de muitos que, dentro do PCB, queriam mais
ação para avançar nas lutas democráticos. Esse povo era chamado de “prestistas”,
seguidores de Prestes, apoiadores do “prestismo”.
Diversas
outras agremiações clandestinas viram ali uma oportunidade de se aproximar da
legendária figura, fazer acordos, buscar trabalhos e ações conjuntas. Afinal,
ele estava defendendo uma frente ampla oposicionista.
Vai daí que
o extinto MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) achou por bem divulgar
as ideias do Cavaleiro da Esperança. A melhor maneira seria publicar no “Hora
do Povo”, o jornal do partido, uma grande reportagem com Prestes.
Depois das
emoções de seu retorno ao Brasil, o líder comunista passou a fazer uma
peregrinação pelo país para conversar com o pessoal de seu partido que estava
descontente com as lideranças de então e para abrir diálogo com outros grupos e
instituições.
Em dezembro
de 1979, ele estava em Porto Alegre e abriu um espaço na sua agenda para
conversar com o “Hora do Povo”. E quem era o responsável pela sucursal gaúcha
do HP? Este que vos fala.
As
tratativas foram feitas pelos capa-preta dos dois grupos, sei lá como. O certo
é que marcaram dia e hora, e lá nos fomos nós, eu e mais dois colegas.
Não sei a
data exata. Era o final do ano, um calor de rachar em Porto Alegre, sol para
mais de metro.
A casa onde
ele estava hospedado ficava na zona sul, perto do Guaíba. Povavelmente era de
algum dos advogados do PC –na época, em Porto Alegre, havia vários advogados
importantes entre os prestistas.
A memória
engana, talvez haja mais criação do que fato nas minhas lembranças, mas a
imagem que me vem a mente é de uma casa de alvenaria baixa, em cores claras,
branco ou gelo, azul claro.
Quem nos
abriu a porta foi a mulher de Prestes, Maria. Forte, maior que ele –pelo menos,
foi a minha impressão--, cabelão superpreto, recebeu as flores que levamos. Eram
rosas vermelhas, creio eu --de vez em quando, pensando e repensando, acho que
era um buquezão de flores do campo.
Ela nos
levou os três para uma sala, sentamos a uma mesa oval, de madeira escura. Prestes
entrou e sentou em um cabeceira, depois dos cumprimentos de praxe.
Havia uma
certa liturgia para a entrevista, algo meio teatral em todo o encontro. Os
horários eram rígidos, ele nos concederia um tempo exato –meia hora, talvez--,
havia que aproveitar cada minuto.
Fizemos toda
a cerimônia, mas, conversa vai, conversa vem, acho que ele acabou gostando da
gente, ficamos muito mais que o combinado. Só de entrevista gravada, segundo
publicamos no jornal, foram 45 minutos.
Ele falava
com voz rouca, cavernosa, pausada. Não sei ou não lembro se fumava, mas a
impressão que me ficou é de uma voz machucada. O que dizia, porém, era aço puro
para machucar profundamente o governo e para mexer com os brios das forças
internas.
“As
multinacionais é que mandam no Brasil” foi a manchete da entrevista que fizemos
com ele.
Antes do texto, um preâmbulo (que a gente chama de “olho” e que não
fui eu quem escreveu) coloca as coisas em contexto: “O líder do Partido
Comunista Brasileiro, Luiz Carlos Prestes, esteve no Rio Grande do Sul fazendo
contato com suas bases políticas, participando de comícios e concedendo
entrevistas à imprensa. Ao Hora do Povo, Prestes dedicou 45 minutos de
declarações exclusivas sobre a sua visão de conjuntura, a tática do PCB, o
Eurocomunismo, e propõe a União dos Comunistas para fortalecer a Frente de Oposição
à Ditadura”.
O texto da
entrevista está dividido por tópicos e ocupa quase meia página do jornal, no
tempo em que as páginas eram grades mesmo, e as letras pequeninas.
Destaco
alguns dos pontos da entrevista realizada em dezembro de 1979 e publicada na
edição do HP de 4 a 11 de janeiro de 1980 (Prestes fez 82 anos no dia 3 de
janeiro). Ajuda a ver as coisas em perspectiva.
Conjuntura: “Vivemos
sob uma ditadura militar, um governo ilegítimo (...) A primeira vitória do povo
foi a conquista da anistia. (...) Os estudantes em 77 anularam na prática o
decreto 477, passaram a fazer política na Universidade. (...) Em maio de 78 era
a classe operária que passava por cima da lei de greve.”
Contra o
Eurocomunismo: “Nós combatemos o eurocomunismo. É uma expressão inadequada, que
a burguesia criou para separar os comunistas: os comunistas do ocidentes dos
comunistas dos países socialistas. Hoje alguns dirigentes adotam essa expressão
como sendo a luta por um socialismo democrático. Todo o socialismo é democrático,
porque a democracia é inerente ao socialismo.”
Frente: “Nós
convocamos a todos os patriotas, a todos os democratas, que são contra a
ditadura, que queiram dar um passo conosco na luta contra a ditadura, a nos
unirmos em uma ampla frente de oposição”.
Inimigo: “O
imperialismo já não é hoje apenas um inimigo externo, é um inimigo que está
dentro da estrutura econômico-social brasileira. (...) As empresas
multinacionais são quem manda aqui no Brasil”.
E por aí
segue a entrevista. Para mim, foi um momento profissional e político marcante, emocionante,
que agora revivo nesta CORRIDA POR MANOEL.
Na jornada
de hoje, fui visitar o parque Luiz Carlos Prestes, um recanto de paz e verde no
Butantã, zona oeste de São Paulo. Com mais precisão, digo que se trata de uma
revisita.
Descobri o
parque há uns quatro anos, em um treino pelas ruas da cidade, sem rumo, sem
direção. Eu estava lutando comigo mesmo, tentando colocar ideias e emoções em
ordem, temperando raiva com medo (ou seria o contrário?), imaginando o futuro,
criando cenários, vivendo um turbilhão de vidas ao mesmo tempo.
Foi a
primeira corrida que consegui fazer em vários dias. Saí atrás de meu nariz,
tentando não tropeçar nas próprias pernas, desviando das armadilhas que a
cidade monta para o corredor. A gente tem de olhar para frente, mas não pode
nunca descuidar do chão. De vez em quando, dá para olhar para o alto e para
cima.
Numa dessas
olhadas, notei a placa que anunciava a proximidade do parque Luiz Carlos
Prestes. Embiquei na direção, me fui.
Escrevi um
texto sobre o encontro, publicado no blog que eu tinha no site da “Folha de S.
Paulo”. O título dizia “Luiz Carlos Prestes está vivo e mora no Butantã”.
A certo trecho, comento: “O Luiz Carlos Prestes
de hoje, o parque, lembra muito o Prestes homem. Tal como ele, é pequeno. (...)
Mas a aparência miúda se agiganta quando o parque mostra sua alma.
“Escondida pelos
verdes, há uma escadaria de madeira, degraus feitos de troncos, madeira de
demolição encravados na terra para uma escaladas rústica a um outro platô;
depois, mais outra ainda. O parque é feito em pequenos andares de mata, pequeno
e atarracada como o ser que homenageia.
“Tem de um tudo: parquinho para a gurizada, área
para descanso, para fazer um piquenique, uma estufa para plantas em que são
preparadas mudas de árvoras, duas quadras de futebol de salão.”
Hoje notei ainda mais: no primeiro “andar” do
parque –que se divide em três platôs aproveitando o movimento da colina em que
está instalado--, há tabuleiros em meses de pedra, para jogos de dama ou
xadrez.
Num canto, equipamentos rústicos para musculação,
uma barra de ferro com pesos de cimento nas pontas (nem tentei mexer naquilo).
Atrás do parquinho infantil, no platô principal, o
do segundo andar, há uma área com uma bela churrasqueira. Bela e concorrida: as
reservas para uso são feitas no dia primeiro de cada mês, para o mês seguinte; desde
as quatro da matina já tem gente na fila, segundo me disse hoje um funcionário
do parque.
Com a
chuvarada da noite passada, o parque estava ainda úmido; havia poças em alguns
lugares. Na manhã cinzenta, havia poucos visitantes, apenas duas ou três
pessoas levando seus cachorros. E eu, lembrando Manoel Fiel Filho e saudando
Luiz Carlos Prestes, que ainda viveu o bastante para ver o fim da ditadura -morreu
em 1990, aos 92 anos.
CORRIDA POR
MANOEL – 25ª etapa
Destino –
Parque Luiz Carlos Prestes, percurso de 10,01 km, realizado em 1h39min27
Distância
total já percorrida: 263,74 km
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