16.3.16

O dia em que me encontrei com Luiz Carlos Prestes

Conheci Luiz Carlos Prestes. Não que eu tenha sido amigo do Cavaleiro da Esperança nem que eu tenha participado da heroica peregrinação patriótica da coluna por ele comandada. Mas o conheci, assim, de carne e osso, ao vivo e em cores.

Era baixinho e atarracado, menor do que eu o imaginava. Também, faltavam poucos dias para seu aniversário de 82 anos, muitas décadas de luta e de padecimento –jornadas em terreno adverso, tortura, prisão, exílio.

Depois de anos abrigado e protegido na então União Soviética, Prestes voltara ao Brasil em outubro de 1979, dois meses depois de promulgada a anistia.

E voltara fazendo barulho, desafinando o coro dos contentes, chamando o povo para a briga, criando marola e fazendo onda, chacoalhando as estruturas de seu Partido Comunista Brasileiro.

Galvanizou a atenção da militância mais jovem e de muitos que, dentro do PCB, queriam mais ação para avançar nas lutas democráticos. Esse povo era chamado de “prestistas”, seguidores de Prestes, apoiadores do “prestismo”.

Diversas outras agremiações clandestinas viram ali uma oportunidade de se aproximar da legendária figura, fazer acordos, buscar trabalhos e ações conjuntas. Afinal, ele estava defendendo uma frente ampla oposicionista.

Vai daí que o extinto MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) achou por bem divulgar as ideias do Cavaleiro da Esperança. A melhor maneira seria publicar no “Hora do Povo”, o jornal do partido, uma grande reportagem com Prestes.

Depois das emoções de seu retorno ao Brasil, o líder comunista passou a fazer uma peregrinação pelo país para conversar com o pessoal de seu partido que estava descontente com as lideranças de então e para abrir diálogo com outros grupos e instituições.

Em dezembro de 1979, ele estava em Porto Alegre e abriu um espaço na sua agenda para conversar com o “Hora do Povo”. E quem era o responsável pela sucursal gaúcha do HP? Este que vos fala.



As tratativas foram feitas pelos capa-preta dos dois grupos, sei lá como. O certo é que marcaram dia e hora, e lá nos fomos nós, eu e mais dois colegas.

Não sei a data exata. Era o final do ano, um calor de rachar em Porto Alegre, sol para mais de metro.

A casa onde ele estava hospedado ficava na zona sul, perto do Guaíba. Povavelmente era de algum dos advogados do PC –na época, em Porto Alegre, havia vários advogados importantes entre os prestistas.

A memória engana, talvez haja mais criação do que fato nas minhas lembranças, mas a imagem que me vem a mente é de uma casa de alvenaria baixa, em cores claras, branco ou gelo, azul claro.

Quem nos abriu a porta foi a mulher de Prestes, Maria. Forte, maior que ele –pelo menos, foi a minha impressão--, cabelão superpreto, recebeu as flores que levamos. Eram rosas vermelhas, creio eu --de vez em quando, pensando e repensando, acho que era um buquezão de flores do campo.

Ela nos levou os três para uma sala, sentamos a uma mesa oval, de madeira escura. Prestes entrou e sentou em um cabeceira, depois dos cumprimentos de praxe.



Havia uma certa liturgia para a entrevista, algo meio teatral em todo o encontro. Os horários eram rígidos, ele nos concederia um tempo exato –meia hora, talvez--, havia que aproveitar cada minuto.

Fizemos toda a cerimônia, mas, conversa vai, conversa vem, acho que ele acabou gostando da gente, ficamos muito mais que o combinado. Só de entrevista gravada, segundo publicamos no jornal, foram 45 minutos.

Ele falava com voz rouca, cavernosa, pausada. Não sei ou não lembro se fumava, mas a impressão que me ficou é de uma voz machucada. O que dizia, porém, era aço puro para machucar profundamente o governo e para mexer com os brios das forças internas.

“As multinacionais é que mandam no Brasil” foi a manchete da entrevista que fizemos com ele. 

Antes do texto, um preâmbulo (que a gente chama de “olho” e que não fui eu quem escreveu) coloca as coisas em contexto: “O líder do Partido Comunista Brasileiro, Luiz Carlos Prestes, esteve no Rio Grande do Sul fazendo contato com suas bases políticas, participando de comícios e concedendo entrevistas à imprensa. Ao Hora do Povo, Prestes dedicou 45 minutos de declarações exclusivas sobre a sua visão de conjuntura, a tática do PCB, o Eurocomunismo, e propõe a União dos Comunistas para fortalecer a Frente de Oposição à Ditadura”.



O texto da entrevista está dividido por tópicos e ocupa quase meia página do jornal, no tempo em que as páginas eram grades mesmo, e as letras pequeninas.

Destaco alguns dos pontos da entrevista realizada em dezembro de 1979 e publicada na edição do HP de 4 a 11 de janeiro de 1980 (Prestes fez 82 anos no dia 3 de janeiro). Ajuda a ver as coisas em perspectiva.

Conjuntura: “Vivemos sob uma ditadura militar, um governo ilegítimo (...) A primeira vitória do povo foi a conquista da anistia. (...) Os estudantes em 77 anularam na prática o decreto 477, passaram a fazer política na Universidade. (...) Em maio de 78 era a classe operária que passava por cima da lei de greve.”

Contra o Eurocomunismo: “Nós combatemos o eurocomunismo. É uma expressão inadequada, que a burguesia criou para separar os comunistas: os comunistas do ocidentes dos comunistas dos países socialistas. Hoje alguns dirigentes adotam essa expressão como sendo a luta por um socialismo democrático. Todo o socialismo é democrático, porque a democracia é inerente ao socialismo.”

Frente: “Nós convocamos a todos os patriotas, a todos os democratas, que são contra a ditadura, que queiram dar um passo conosco na luta contra a ditadura, a nos unirmos em uma ampla frente de oposição”.

Inimigo: “O imperialismo já não é hoje apenas um inimigo externo, é um inimigo que está dentro da estrutura econômico-social brasileira. (...) As empresas multinacionais são quem manda aqui no Brasil”.

E por aí segue a entrevista. Para mim, foi um momento profissional e político marcante, emocionante, que agora revivo nesta CORRIDA POR MANOEL.

Na jornada de hoje, fui visitar o parque Luiz Carlos Prestes, um recanto de paz e verde no Butantã, zona oeste de São Paulo. Com mais precisão, digo que se trata de uma revisita.



Descobri o parque há uns quatro anos, em um treino pelas ruas da cidade, sem rumo, sem direção. Eu estava lutando comigo mesmo, tentando colocar ideias e emoções em ordem, temperando raiva com medo (ou seria o contrário?), imaginando o futuro, criando cenários, vivendo um turbilhão de vidas ao mesmo tempo.

Foi a primeira corrida que consegui fazer em vários dias. Saí atrás de meu nariz, tentando não tropeçar nas próprias pernas, desviando das armadilhas que a cidade monta para o corredor. A gente tem de olhar para frente, mas não pode nunca descuidar do chão. De vez em quando, dá para olhar para o alto e para cima.

Numa dessas olhadas, notei a placa que anunciava a proximidade do parque Luiz Carlos Prestes. Embiquei na direção, me fui.

Escrevi um texto sobre o encontro, publicado no blog que eu tinha no site da “Folha de S. Paulo”. O título dizia “Luiz Carlos Prestes está vivo e mora no Butantã”.

A certo trecho, comento: “O Luiz Carlos Prestes de hoje, o parque, lembra muito o Prestes homem. Tal como ele, é pequeno. (...) Mas a aparência miúda se agiganta quando o parque mostra sua alma.

“Escondida pelos verdes, há uma escadaria de madeira, degraus feitos de troncos, madeira de demolição encravados na terra para uma escaladas rústica a um outro platô; depois, mais outra ainda. O parque é feito em pequenos andares de mata, pequeno e atarracada como o ser que homenageia.

“Tem de um tudo: parquinho para a gurizada, área para descanso, para fazer um piquenique, uma estufa para plantas em que são preparadas mudas de árvoras, duas quadras de futebol de salão.”


Hoje notei ainda mais: no primeiro “andar” do parque –que se divide em três platôs aproveitando o movimento da colina em que está instalado--, há tabuleiros em meses de pedra, para jogos de dama ou xadrez.




Num canto, equipamentos rústicos para musculação, uma barra de ferro com pesos de cimento nas pontas (nem tentei mexer naquilo).


Atrás do parquinho infantil, no platô principal, o do segundo andar, há uma área com uma bela churrasqueira. Bela e concorrida: as reservas para uso são feitas no dia primeiro de cada mês, para o mês seguinte; desde as quatro da matina já tem gente na fila, segundo me disse hoje um funcionário do parque.


Com a chuvarada da noite passada, o parque estava ainda úmido; havia poças em alguns lugares. Na manhã cinzenta, havia poucos visitantes, apenas duas ou três pessoas levando seus cachorros. E eu, lembrando Manoel Fiel Filho e saudando Luiz Carlos Prestes, que ainda viveu o bastante para ver o fim da ditadura -morreu em 1990, aos 92 anos.



CORRIDA POR MANOEL – 25ª etapa

Destino – Parque Luiz Carlos Prestes, percurso de 10,01 km, realizado em 1h39min27

Distância total já percorrida: 263,74 km

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