A rua
Quararibeia, na zona sul de São Paulo, tem pouco mais de 600 metros e o asfalto
manchado de sangue. Sob a poeira do tempo, não se veem mais as marcas vermelhas
–elas estão gravadas na história das lutas dos trabalhadores.
Foi lá, em
frente à antiga fábrica da lâmpadas Sylvania, no número 242 da ruazinha com
nome de árvore, que Santo Dias da Silva foi assassinado.
Homem de
paz, religioso, católico fervoroso, estava armado apenas com suas convicções. Liderança
dos grevistas, tinha sido chamado para a Sylvania para reforçar um piquete –iniciada
dois dias antes, a greve fraquejava.
A Wikipedia
registra assim aquele momento: “No primeiro dia da paralisação, 28 de outubro,
as subsedes do sindicato, abertas para abrigar os comandos de greve, foram
invadidas pela Polícia Militar, que prendeu mais de 130 pessoas. Sem o apoio do
sindicato e com a intensa repressão policial, os metalúrgicos passaram a se
reunir na Capela do Socorro, na Zona Sul da cidade de São Paulo - a região de
maior concentração de operários da categoria. No dia 30, Santo Dias, como parte
do comando de greve, sai da Capela do Socorro para engrossar um piquete na
frente da fábrica Sylvania e discutir com os operários que entrariam no turno
das 14h”.
“Viaturas da
PM chegam e Santo Dias tenta dialogar com os policiais para libertar um
companheiro preso. A polícia agiu com brutalidade e o PM Herculano Leonel
atirou em Santo Dias. Ele foi levado pelos policiais para o Pronto Socorro de
Santo Amaro, mas já estava morto. O corpo de Santo Dias só não
"desapareceu" por conta da coragem de Ana Maria, sua esposa. Ela
entrou no carro que transportava seu corpo para o Instituto Médico Legal; apesar
de abalada emocionalmente, e mesmo pressionada pelos policiais a descer, não
cedeu.”
Paulista de
Terra Roxa, filho de agricultores sem terra, Santo tinha 37 anos quando foi assassinado, em 1979, e se tornou um mártir do movimento operário brasileiro. Deixou viúva e um casal
de filhos.
Para
homenagear esse grande militante –e, de certa forma, também líder religioso--,
escolhi visitar não o ponto de sua morte, mas um local em que sua herança de
luta é mantida viva, presente.
Na 37ª
jornada da CORRIDA POR MANOEL, estive hoje no parque Santo Dias, no coração do
Capão Redondo, o distrito onde o metalúrgico vivia e onde acabou por ser
assassinado.
Simplesmente
dizer o nome do bairro, até bem pouco tempo atrás, era sinônimo de falar em
violência policial e altos índices de criminalidade.
No final de
junho de 2012, por exemplo, foram registrados 21 homicídios em apenas 11 dias –e
as suspeitas são de que a maioria deles tenha sido responsabilidade da polícia.
A população reage, queima ônibus, protesta, picha. E segue o baile.
Em 2014, o
distrito policial que atende o bairro era o quarto em número de casos de morte.
E a ação da polícia às margens dali continuava, com PMs atacando até mesmo
manifestações culturais no bairro.
No ano
passado, um evento cultural de música jamaicana realizado com regularidade no
Bar do Saldanha se transformou em vítima da ação da Polícia Militar, como
relata reportagem publicada na “Carta Capital”:
“Por
volta das 2h30 da manhã, chegaram algumas viaturas da PM e, sem dar nenhum tipo
de justificativa ou mesmo um aviso, foi dado um tiro para o alto, anunciando a
chuva de bombas de gás lacrimogêneo. As pessoas que estavam no local, pegas
totalmente de surpresa, corriam desesperadas enquanto tentavam entender o que
estava acontecendo. Após isso, há ainda noticia de grupos que estavam indo
embora a pé (não há transporte público no horário) terem sido abordados e
agredidos, e também de viaturas que perseguiram pessoas durante um longo
percurso fazendo constantemente ameaças.”
Capão
Redondo é longe. A estação de metrô que serve a área fica a maisde 15
quilômetros da estação que tomei como ponto de partida, na zona oeste de São Paulo.
Fui
pela Francisco Moratto, passei pelo estádio do São Paulo e subi a poderosa e
longa rampa da Giovanni Gronchi. Ela é um rosário de edifícios, que mal
permitem ao passante ver o que se espraia ao longe. No alto, porém, algumas
ruelas dão vista para as encostas.
O
contraste salta aos olhos. Prédios gigantes pendurados sobre os casebres e as
casas mal ajambradas da comunidade de Paraisópolis. Ali, em cerca de um
quilômetro quadrado, vivem quase 100 mil pessoas, e há 12 mil analfabetos,
segundo informam associações da comunidade.
Passo
do topo do morro, inicio minha descida. É quando um sujeito já de idade precisa
tomar cuidado: pode tropeçar, torcer o pé, deixar doídas as costelas. Por isso,
vou com cuidado, também prestando atenção para não perder a rua que vai me colocar
na direção certeira de Campo Limpo, parada prévia a Capão Redondo.
Nem
prestando atenção, nem olhando o mapa no celular, acertei. Corrigindo meu
caminho, peguei uma ruela que me levou a uma espécie de perimetral do bairro
chamado de Vila das Belezas; pelo que vi, só pode ser ironia...
Já
era tarde, o sol batia forte, e eu estava atrasado para meu encontro, que seria
na estação Campo Limpo. Apesar de as subidas e descidas terem me deixado ainda
mais lento do que normalmente sou, cheguei a tempo de salvar o dia: minha
anfitriã estava atravessando a rua para ir embora.
Mas
deu tudo certo, e segui correndo com Marineide Santos Silva, líder comunitária
do Capão Redondo, idealizadora e coordenadora do Vida Corrida, projeto de inclusão
social e um projeto de inclusão social por meio do esporte.
Conheço
a Neide desde que comecei a correr. Ela já fazia parte da equipe onde, em 1998,
aprendi noções básicas de treinamento para provas de longa distância.
Neide
já sabia muito: corria desde os 14 anos. O esporte foi uma espécie de válvula
de escape para as durezas da vida. Nascida em 1960 em Porto Seguro, chegou a São
Paulo com a mãe retirante e cinco irmãos.
Com
seis, sete anos, a menina foi entregue em adoção –era o jeito de conseguir casa
e comida. Passou por três famílias, seguiu vivendo. Estudou, trabalhou, correu.
“Acho
que eu nasci para o esporte”, diz ela, contando que alguém já calculou que seus
treinos e maratonas –37, pela última conta—já somam quilômetros suficientes
para duas voltas ao mundo...
Pode
ser, pode não ser. O certo é que ela conhece muito o chão do Capão Redondo e já
deu milhões de passadas nas trilhas do Parque Santo Dias, para onde me leva na
manhã de hoje.
No
caminho, fazemos uma breve parada para apreciar uma obra de arte, orgulho do
bairro. Trata-se de um trabalho do mundialmente famoso grafiteiro Kobra, que
retratou num mural o grupo de rap Racionais MC`s –cria do Capão Redondo e
referência para a juventude local.
Sob
o olhar de Mano Brown, seguimos até o parque, chegando a ele por umas quebradas
só conhecidas da turma da área. O Santo Dias, com o perdão do trocadilho, é uma
área santificada no bairro.
Nascido
na mata, batizado Capão Redondo por causa de uma floresta de araucárias que
havia na região, hoje a cara do bairro é cinza, tomado por prédios, casas baixas
e pobres, asfalto, favelas. O parque, berço do bairro –é ali pertinho o marco
zero do Capão—é um das poucas áreas verdes que sobraram.
“Foi
resultado da luta da comunidade”, conta Clodoaldo Cajado, administrador do
parque e um dos integrantes da associação que, no início dos anos 1990, impediu
que a área fosse entregue à especulação imobiliária.
Hoje,
além das trilhas bem sombreadas, o parque abriga projetos comunitários, tem
diversas quadras esportivas e áreas de treino. O projeto Vida Corrida,
comandando por Neide, atende 200 adultos e 250 crianças – oferece cursos de inglês,
aulas de ioga, treinamento de corrida. E forma atletas.
Um “filho”
do Vida Corrida estará nos Jogos do Rio-2016, na Paraolimpíada. Júlio Cesar
Agripino, 25 anos, deficiente visual, vai competir nos 1.500 m e nos 5.000, e a
turma toda desde já torce por medalha.
É um
resultado do trabalho de grupo, destaca Cajado. “Hoje temos outras pessoas que,
como Santo Dias, se dedicam a trabalhar pelo coletivo, pelo bem comum.”
CORRIDA
POR MANOEL – 37ª etapa
Destino:
Parque Santo Dias, percurso de 19,10 km realizado em 2h48
Distância
percorrida até agora: 396,77 km
Correndo por Manoel, estou aprendendo admirar cada homem e mulher que fez esse Brasil melhor. Obrigada Lucena hoje corri pra ver o blog e aprender um pouco mais.
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