Quem
sai da região do Ibirapuera, na zona sul de São Paulo, e sobe a rua do Livramento
chega direto na pontinha do paredão que cerca o conjunto de prédios onde
funcionou o DOI-Codi, a sucursal da inferno ou a “Casa da Vovó”.
Talvez
seja ilação meio doida deste corredor que roda a cidade em busca de algum
sentido que venha das ruas. Quem deu o nome à rua do Livramento, imagino eu,
nem pensava na ironia urbana feita no encontro dela com a rua Tutóia, número
921.
Quem
estivesse nas celas traseiras de qualquer um dos prédios do conjunto talvez pudesse
ver, ao longe, as árvores da rua do Livramento. Que, por outra ironia, é de mão
única: nelas, os carros só vão para longe, se afastam do prédio maldito, rodam
sempre na direção dos ares mais benfazejos do Ibirapuera.
Notícias
de jornal, conversas de políticos e até textos acadêmicos já se acostumaram a
usar sempre a sigla como identificador do mais brutal serviço de repressão que
atuou durante a ditadura militar.
É
bom lembrar, porém, seu nome completo e sobrenome, para que ninguém esqueça e
nunca mais aconteça. O Destacamento de Operações de Informação - Centro de
Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) faz parte da história de um sem número
de brasileiros que lutaram pela liberdade.
Nas
suas celas foi torturado até a morte o operário Manoel Fiel Filho. Vou deixar
para mais tarde o relato das barbaridades que Manoel lá enfrentou; hoje, 14º
dia desta jornada jornalístico-esportiva em homenagem a Manoel, apresento tão
somente o prédio e o serviço de atrocidades que lá se instalou.
Na
minha corrida, tratei de fazer uma amarração no conjunto de edifícios onde hoje
funciona o 36º Distrito Policial. Dei duas voltas completas no bloco, que não é
um quarteirão bem formado: o desenho que fica é irregular, estrambótico, parece um rim machucado.
Assim
também foram as decisões envolvendo a criação do DOI-Codi. Ele é a versão legalizada
de um organismo criado em São Paulo depois da decretação do Ato Institucional
nº 5, o AI-5: era a Oban, Operação Bandeirantes.
O relatório da Comissão Nacional da Verdade resume a encrenca:
“A
partir de uma Diretriz para a Política de Segurança Interna expedida em 2 de
julho de 1969, o comandante do II Exército, general José Canavarro Pereira,
juntamente com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, chefiada por
Hely Lopes Meirelles, resolveu unificar “os esforços” do Exército, da Polícia
Federal e das polícias estaduais, civil e militar do estado de São Paulo para o
combate aos opositores do regime, criando a Oban. O governador Abreu
Sodré transformaria as dependências do 36º Distrito Policial, localizado na
esquina das ruas Tomás Carvalhal e Tutóia, em um centro de torturas e
assassinatos. Na Polícia Civil havia um grupo de policiais chefiados pelo
delegado Sérgio Paranhos Fleury, da Delegacia de Roubos, que se notabilizou
pela prática do extermínio (“Esquadrão da Morte”), transplantando seus métodos
para a Oban, com o apoio do governo estadual. Por sua vez, a prefeitura de São
Paulo, governada por Paulo Salim Maluf, providenciou o asfaltamento da área da
Oban, reformou a rede elétrica e iluminou a região com lâmpadas de mercúrio.”
Na
Oban foi torturado até a morte Virgílio Gomes da Silva, ex-líder sindical e
comandante do sequestro do embaixador norte-americano no Brasil.
A
mão armada e assassina da ditadura militar teve o apoio entusiasmado de grande
parte do empresariado, segundo documento da Comissão Nacional da Verdade. As
articulações passavam pela Fiesp, a organização que reúne os capitães de
indústria do Estado –onde completei minha jornada de hoje.
Prédio da Fiesp, na avenida Paulista |
Diz
o texto: “Um número incerto de empresários paulistas também contribuiu, já que
a arrecadação de recursos contava com o apoio ativo da Federação das Indústrias
do Estado de São Paulo (Fiesp), por meio de seu presidente, Theobaldo De Nigris”.
E
Paulo Egydio Martins, que viria a ser governador de São Paulo, afirmou, segundo
registra o jornalista Elio Gaspari: “Àquela época, levando-se em conta o clima,
pode-se afirmar que todos os grandes grupos comerciais e industriais do estado
contribuíram para o início da Oban.”
O
organismo se instalou direto no endereço da Tutóia, que também tem entrada pela
Tomás Carvalhal, 1.030.
Desde o início da década era usado como centro
policial: em 1960 foram desapropriados três lotes, num total de 2.858,40 metros
quadrados, para a instalação da Delegacia de Polícia da Vila Mariana”.
Pois
no final daquela década o local se tornou um antro de criminosos a soldo do Estado.
Talvez por sua estrutura
independente demais dos poderes executivos instituídos, a Oban não durou muito:
criada em julho de 1969, deixou de existir em setembro do ano seguinte.
Não
que tenha sido desarticulada. Foi transformada no DOI-Codi, que estava
devidamente incluído na cadeia de comando dos órgãos repressivos. O que não
significa que respeitasse a lei, como é sobejamente sabido.
Talvez
nunca se venha a saber exatamente quantas pessoas sofreram nas celas do
conjunto de prédio da Tutóia.
O artigo “Estatísticas do DOI-CODI”, assinado por
Pedro Pomar e publicado na Revista da Adusp, lança alguma luz sobre esses
números tão escondido.
O
texto cita um relatório secreto do Exército dando conta da morte de que 50 pessoas sob custódia do DOI-CODI, além
da passagem de 6.700 pessoas por ali num período que vai entre 1970 e 1975 e
detalhados no Relatório Periódico de Informações 6/75 (RPI 6/75), datado de
junho de 1975.
Claro
que esse não foi o número total de mortos. Há pelo menos mais três casos conhecidos
de assassinatos depois de junho de 1975: o tenente José Ferreira de Almeida, o Piracaia,
foi morto em agosto; em outubro Vladimir Herzog foi assassinado e, em janeiro
de 1976, a vítima foi Manoel Fiel Filho.
O
jornalista Marcelo Godoy, em seu livro “A Casa da Vovó”, em que faz uma espécie
de biografia do DOI-Codi, crava 66 mortes, das quais 39 sob tortura após a
prisão e outras 27 depois de gravemente baleadas durante a detenção.
Os
crimes do regime militar acabaram contribuindo para sua derrocada.
A
revolta contra a barbárie foi um dos combustíveis que ajudaram a retomado do
movimento popular, das lutas sindicais e da oposição política à ditadura. O
regime militar ainda sobreviveu por quase uma década, mas acabou enterrado.
Muitos
algozes daquela época trataram de esconder documentos e provas de seus crimes. Por
outros motivos, a tentativa de esquecimento da barbárie, até gente que combateu
a ditadura pensou em botar abaixo a central de tortura.
Nana
nina.
Há que “conhecer o passado, entender o presente, construir o futuro”,
como diz o slogan do Núcleo Memória, entidade que reúne ex-presos políticos.
Em
2010, Ivan Seixas, um de seus fundadores e então integrante da Conselho de
Defesa da Pessoa Humana, entrou com pedido de tombamento do conjunto de prédios
onde funcionou a sucursal do inferno.
A
reivindicação, apoiada por diversas entidades de direitos humanos e de vítimas
da ditadura, saiu vitoriosa: em janeiro de 2014 o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), órgão estadual de
preservação, aprovou o tombamento.
A instrução do processo foi feita por
uma jovem historiadora, Deborah Neves, que atua na Unidade de Preservação do
Patrimônio Histórico da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo..
Eu pedi para outra jovem historiadora,
Laura Lucena –que é minha filha e tem me ajudado enormemente na pesquisa e na produção deste projeto
CORRIDA POR MANOEL--, conversar com a Deborah. Trocaram várias mensagens por
e-mail,e o resultado você acompanha a seguir.
LAURA LUCENA - O que te motivou a estudar o DOI-CODI?
DEBORAH NEVES - Sou
historiadora no Condephaat desde setembro de 2010, período em que estava com um
projeto de mestrado pronto.
Nesse mesmo ano, havia
ingressado aqui um pedido de tombamento formulado pelo Núcleo Memória, na
figura de Ivan Seixas e outros coletivos de defesa de direitos humanos. Quando
soube que havia esse pedido em andamento aqui, pedi à Diretora para que eu
pudesse fazer a instrução do processo, já que o tema era diretamente
relacionado ao tema de minha pesquisa de mestrado.
O processo foi aberto no ano
de 2012, quando estava no segundo ano de meu mestrado e então a minha pesquisa
e a elaboração do parecer acabaram influenciando um ao outro. Foi muito
importante na minha formação profissional e acadêmica e tenho colhido muitos
frutos de ambos.
Imagem incluída no texto sobre o tombamento do conjunto de prédios do DOI-Codi publicado no Diário Oficial de São Paulo |
Quais os principais desafios enfrentados no
processo de tombamento?
Alguns desafios foram
impostos. O primeiro deles era criar uma argumentação que desse consistência à
proposta de tombamento que não considerasse os aspectos estéticos e
arquitetônicos dos edifícios como motivação principal para a preservação.
Por outro lado, era
importante assegurar que os poucos locais identificados como próximos do
"original" permanecessem preservados pelo tombamento. Era necessário
convencer 26 conselheiros --muitos deles arquitetos e outros habituados à
preservação por razões estéticas mais do que históricas-- de que o DOI CODI,
uma edificação ordinária, merecia preservação por sua relevância para a
história do país, muito além que para a história de São Paulo.
O desafio seguinte foi justamente identificar a história da construção: datar quando foi construído cada um dos edifícios e se havia muitas transformações externas e internas nele.
O primeiro passo foi coletar
imagens de mapas históricos da região e fotografias aéreas. Depois a pesquisa
em Diários Oficiais que levassem a compreender como a edificação foi
idealizada e depois transformada em DOI CODI, e por fim, identificar outros
documentos administrativos que dessem conta da história desses prédios, pois
sobre a estrutura já havia trabalhos conhecidos.
Nesse momento tive a ajuda de
um investigador da Polícia Civil --que não trabalhou ali, ele é bem mais jovem-
e que por curiosidade coletou algumas informações importantíssimas sobre o
prédio.
A partir da colaboração dele
e de alguns documentos "soltos" que ele me forneceu, encontrei
processos junto à Procuradoria do Patrimônio Imobiliário que deram conta de
revelar muitos pormenores importantes do uso pelo Exército. Foi determinante
para datar e identificar como se deu a cessão do espaço do Governo do estado
para o II Exército. A colaboração da Polícia Civil também foi importante, pois
cederam algumas plantas do prédio da delegacia que foram determinantes para
compreender como era a edificação, quais foram as alterações e a partir daí
elaborar uma proposta de preservação.
Com isso, um terceiro desafio
foi imposto: levar e ouvir as pessoas que ali ficaram detidas ou que ali
trabalharam para fazer uma identificação in loco. Esse talvez tenha sido o
momento mais importante do processo.
Separamos as pessoas por ano
de detenção para que pudessem explicar como era o prédio no momento em que
estiveram presos, pois sabia que internamente as disposições mudaram de acordo
com as "necessidades" do DOI-CODI.
Esse momento foi bastante
desafiador por algumas razões: a primeira era reunir o maior numero de pessoas para
termos diversidade de informações; a segunda, pela sensibilidade de as pessoas
ali retornarem depois de tantos anos.
Todas ficaram bastante
emocionadas, mas as reações foram distintas: houve quem falasse muito, numa
espécie de catarse, houve quem se resignou, houve quem chorou, houve quem se
revoltou, mas todos, ao final, sentiam que aquele era um momento importante
para sua própria história, por estar em uma outra posição nesse momento.
O terceiro desafio era manter
o trabalho com o caráter técnico --havia o receio de que essa
"incursão" com ex-presos tivesse uma conotação excessivamente
política. Embora eu tenha tentado contatar ex-funcionários do DOI-Codi, nunca
localizei nenhum.
Onde funcionava cada organismo, de acordo com croqui publicado no Diário Oficial de SP |
Quais os benefícios desse tombamento?
Sob o meu ponto de vista, esse
tombamento talvez seja o mais importante como registro da história da ditadura
no Brasil.
Foi neste DOI-CODI que nasceu
a estratégia militar de repressão, foi aqui que nasceu o modelo que se espalhou
pelo país.
É um edifício emblemático
para compreender como o estado lidou com a oposição e quais forças mobilizou em
nome de um projeto.
É um espaço de morte, de dor,
de censura, repressão e desaparecimento que ainda envolve as forças de
segurança do país. É um modelo que, embora extinto em 1983, perpetuou uma
mentalidade. Portanto, é um tombamento que nos conta sobre o passado mas nos
explica ainda mais sobre o presente.
É também um reconhecimento
simbólico do Estado que um dia torturou e matou pessoas por discordarem de um
sistema. Uma reparação à sociedade e também aos perseguidos e suas famílias.
Pode vir a ser um compromisso
com a interrupção desse modelo de segurança pública, mas aí já é uma esperança
e uma construção que cabe a todos nós.
Por fim, é a preservação de
um espaço em que se cometeram atrocidades e que pode permitir, através de sua
visitação, que cada indivíduo tire suas conclusões a partir da percepção
individual sobre o que ali aconteceu. A experiência de estar no local em que
tantos crimes ocorreram é única e individual.
CORRIDA POR MANOEL – 14º dia
Destino –
Prédio onde funcionou o DOI-Codi e passagem em frente à Fiesp, percurso de
11,58 km realizado em 1h36min48
Distância total:
135 km
Rodolfo e Laura
ReplyDeleteMuito obrigada pela oportunidade de participar de um projeto tão nobre.
Nesse momento tão intrigante da história do nosso país, relembrar o que aconteceu de forma tão lúdica e simbólica faz-se não só necessária, mas urgente, para que não permitamos repetições.
um abraço e parabéns pelo lindo projeto.